Carlos Fernandodos santos lima

Um tapa na cara do Brasil

24.12.21

A classe política termina o ano mais uma vez com um tapa na cara da sociedade brasileira. O assalto aos cofres públicos, com a derrubada do veto presidencial ao fundo eleitoral – aceito tacitamente por Jair Bolsonaro — e a aprovação das verbas do relator no orçamento federal, resultou na apropriação pelos políticos de mais de 21 bilhões de reais dos nossos impostos para o próximo ano, quase o dobro do que a operação Lava Jato recuperou ao patrimônio público em seus seis anos de existência.

Em um orçamento engessado e com investimentos públicos previstos na casa dos 40 bilhões de reais, os mais baixos da história, é um acinte termos que financiar uma classe de privilegiados que se acham acima das leis e da própria população. O descalabro que tem acontecido no Brasil, resultado dessa gula pantagruélica dos partidos e caciques políticos por dinheiro e poder, só revela que nossa democracia encontra-se doente.

E os sintomas desse mal-estar são sentidos pela descrença da população no processo democrático, como se fosse ele o problema, e não, na verdade, a deturpação da própria essência de nossa democracia, degenerada em uma plutocracia corrupta. É esse ambiente político pestilento, cujos sinais são percebidos por toda população, especialmente após as revelações da operação Lava Jato, que fazem surgir movimentos autoritários, como o comandado por Jair Bolsonaro, que querem nos fazer crer que o problema é da democracia em si, e não de seus corruptores.

Justamente por isso é preciso manter a crença na democracia, não como um regime perfeito, mas como o menos imperfeito de todos os existentes. Mas a democracia é frágil, especialmente em um momento em que a demagogia e o populismo encontram eco em uma população cansada dos maus exemplos da classe política. Democracia não pode ser confundida com as pústulas da doença que a acomete. Assim, o que o Brasil precisa neste momento, mais que tudo, é de um remédio simples: a velha receita da democracia representativa, com mecanismos inteligentes e modernos de participação popular. Enfim, o que precisamos é revolucionar o país com mais democracia.

Mas que não se pense ser uma tarefa fácil. Muitas vezes vemos jornalistas defendendo a atual classe política simplesmente pelo fato de terem sido escolhidos pelo voto popular. A incompreensão sobre o conceito de democracia atinge os próprios (de)formadores de opinião. A decadência da imprensa, inclusive intelectual, o maniqueísmo ideológico e a incapacidade dos grandes veículos de se colocarem frente ao fenômeno das redes sociais e das fake news têm sido comorbidades que afetam significativamente as discussões públicas sobre os rumos do país. Sem liberdade de imprensa e de expressão – o que não significa irresponsabilidade como bolsonaristas desejam –, mas também sem a busca incessante de maior qualidade das opiniões, não há como se ter democracia.

A legitimidade democrática conquistada nas urnas, mesmo que imperfeita, realmente é um indicativo de legitimidade das decisões. Mas a democracia, é preciso salientar, vai bem além da escolha a cada quatro anos de nossos representantes, ao contrário do que parecem pensar muitos comentaristas políticos. O que esses deputados e senadores “podem” está limitado pela Constituição e pelas leis, e aqui a limitação se estende inclusive ao próprio processo legislativo e de emenda à Constituição.

Dessa forma, os poderes imperiais dados aos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que têm sido usados, por exemplo, para impedir o direito de obstrução das minorias parlamentares, com manipulação dos regimentos internos para fazerem passar medidas sem o devido procedimento de discussão e votação interna, vão contra o cerne de nossa Constituição. É preciso lembrar que democracia não é apenas o governo da maioria, mas o respeito aos direitos das minorias, especialmente o de também chegarem ao poder pelo convencimento público e de forçarem a discussão plena das propostas legislativas.

Outro desrespeito corriqueiro em nosso parlamento é relativo à estabilidade das regras constitucionais. Respeitar a Constituição é respeitar a sua essência. Mas o que tem acontecido nesta legislatura é a vulgarização do procedimento de emendas, com votações açodadas em dois turnos quase simultâneos, sobre matérias mal discutidas e com clara violação aos princípios constitucionais pétreos. Acreditar que a Constituição pode ser emendada, ou melhor, remendada de qualquer maneira e aos sabores de maiorias ocasionais é outro aspecto de nossa maleita democrática.

Buscando entender todo esse processo de ruína ética do parlamento brasileiro, verifica-se que sua gangrena é decorrência de uma estrutura de poder político mal delineada na Constituinte, talvez como reação ao autoritarismo dos governos da ditadura, mas cujo resultado foram governos da Nova República frágeis e paralisados, fenômeno conhecido como “presidencialismo de coalizão”, cuja busca pela construção de maiorias parlamentares se deu não por projetos ou programas, mas pela cooptação dos caciques partidários e pelo uso abusivo de verbas públicas em interesses paroquiais, quando não em corrupção pura e simples, como se viu no governo Lula.

Uma das decorrências dessa deformidade estrutural é a multiplicação de partidos políticos, a maioria construída como um negócio familiar ou patrimônio de um cacique político, sem qualquer ideologia, a menos que se considere o culto ao dinheiro e ao poder como fundamento para a existência dessas agremiações. Conjugue-se a esse mal um sistema eleitoral que coloca todos os candidatos, mesmo do mesmo partido, contra todos os candidatos e uma justiça eleitoral incapaz de enfrentar adequadamente os abusos do poder econômico, e o resultado será uma legitimidade democrática frágil dos eleitos, por serem apenas fruto de campanhas políticas caríssimas, mas não representantes reais dos desejos da população.

Resgatar nossa democracia é talvez o mais importante dos desafios para o próximo governo. E, sem dúvida, um dos mais difíceis, visto que terá que ser realizado pelo próprio sistema vicioso atual. É como se os próprios pecadores tivessem que construir a estrada de retorno à virtude. Não se deve buscar, por mais que seja tentador, qualquer solução autoritária, mesmo por inexistirem messias ou salvadores da pátria, mas apenas seres humanos imperfeitos. O que os reais democratas devem procurar é conscientizar seu entorno na busca pelo voto em pessoas dignas e com propostas. Discutir o futuro do país e sobre como podemos alcançá-lo é a única forma possível de criarmos a possibilidade dos futuros Congressos Nacionais de reconstruírem um regime político honesto, estável, tolerante e participativo.

Por fim, não é possível deixar passar impune o “presente de Natal” do Congresso Nacional aos brasileiros. Ser tolerante não significa transigir com a corrupção, o descaso, o vício e o impaludismo moral que querem impor a nós, brasileiros. Não é possível que batam na cara de cada brasileiro com suas decisões e que não sofram consequências. A reação é bastante simples: independentemente de opções ideológicas, os eleitores devem optar por pessoas honestas e probas, não reelegendo nenhum desses parlamentares que votaram pelo fundão eleitoral ou pelo orçamento secreto. O remédio contra o mal que aflige o Brasil deve ser dado nas urnas.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO