Adriano Machado/Crusoé"Temos problemas muito sérios e o Brasil precisa de um projeto"

‘Cunha e Cabral ainda posarão de heróis injustiçados’

Pré-candidato ao Planalto, o senador Alessandro Vieira critica o desmonte da Lava Jato, patrocinado pelo atual governo e por setores do Judiciário, e afirma que corruptos notórios ainda desfilarão como vítimas
24.12.21

Quase sempre um dos últimos a falar na CPI da Covid no Senado, da qual foi um suplente bastante ativo, o senador Alessandro Vieira, de 46 anos, destacou-se por destrinchar os crimes investigados pela comissão e apontar as contradições dos depoentes. Não se tratou de algo inusitado para o parlamentar. Ao longo de 17 anos, Vieira foi delegado da Polícia Civil em Sergipe, onde se sobressaiu por enfrentar destemidamente a corrupção local. Por importunar poderosos e contrariar interesses do comando do crime sergipano, o parlamentar acabou demitido do posto em 2017. O infortúnio, no entanto, foi um dos responsáveis por pavimentar seu caminho para uma inédita eleição para o Congresso.

A projeção obtida por Vieira na CPI empolgou o Cidadania, que em setembro o lançou como candidato ao Planalto em 2022. Ciente das dificuldades que terá para se tornar um candidato competitivo, principalmente por integrar um partido de estrutura modesta, o senador enxerga na pré-candidatura uma oportunidade de emplacar no debate eleitoral alguns temas que boa parte dos seus pares prefere esconder ou fingir que não vê.

Nesta entrevista a Crusoé, Vieira chama Jair Bolsonaro de “criminoso contumaz” que “age como um miliciano carioca”, critica o procurador-geral da República, Augusto Aras, por agir como “um serviçal” do presidente, afirma que o orçamento secreto “é o mensalão” do atual governo e diz que o processo de vingança desencadeado pela classe política, com o beneplácito de setores do Judiciário, contra a Lava Jato, vai fazer com que corruptos notórios, como Eduardo Cunha e Sérgio Cabral, ainda posem de heróis injustiçados.

Eis os principais trechos da entrevista:

O sr. pretende levar sua candidatura ao Planalto até o fim ou pode desistir para apoiar algum outro candidato?
A candidatura não é individual, então, essa decisão não passa só pela minha escolha. Tem que ser uma decisão do partido. No momento, a gente tem a unanimidade da Executiva Nacional pela manutenção da pré-candidatura. Mas ao mesmo tempo, em paralelo, você tem discussões de federações partidárias. Isso, claramente, vai impactar. A gente vem conversando com os demais atores da terceira via e temos o compromisso de, mais adiante, sentar para conversar na medida em que se defina qual nome tem maior viabilidade eleitoral. É um processo em construção. Talvez, por conta do processo da federação, a gente tenha essa discussão mais acelerada para meados de fevereiro ou até mesmo final de janeiro.

Com quais partidos o Cidadania estaria disposto a compor uma federação partidária?
Tem uma discussão mais antiga com PV e Rede e agora, mais recentemente, com o PSDB. Em alguns estados, como São Paulo, já há uma sintonia antiga e isso está sendo colocado na mesa.

O sr. já se reuniu com o governador João Doria, presidenciável tucano, esteve no ato de filiação de Sergio Moro ao Podemos, atuou com a senadora Simone Tebet, do MDB, na CPI da Covid. Com qual nome da terceira via tem mais afinidade?
A gente tem conversado com todos os que se colocam neste campo da terceira via, menos com Ciro Gomes, com quem a gente ainda não teve contato direto. Mas os demais, do (ex-ministro Luiz Henrique) Mandetta ao Doria, nós conversamos com todo mundo. Todas essas conversas caminham no sentido de que, primeiro, temos de ter um bom programa de governo para o Brasil, sair dessa armadilha populista de ficar discutindo personalidades, a personalidade do Lula contra a personalidade do Bolsonaro ou do Moro. Não pode ser isso. Temos problemas muito sérios e o Brasil precisa de um projeto. Em algum momento vamos ter que sentar e chegar a algum nome. Foi essa conversa que tive mais recentemente com o Doria, mas que também já tinha tido com Eduardo Leite. O mais distante é o Ciro.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/Crusoé“Precisamos sair dessa armadilha populista de ficar discutindo personalidades”
Qual deve ser o eixo central do projeto para o país?
Ao longo desses três anos em que estou no Senado ficou muito claro para mim que é preciso recuperar a qualidade da peça orçamentária, o planejamento do orçamento. Porque, a partir daí, você vai conseguir atender às diversas necessidades que nós temos. Precisamos recuperar totalmente a Educação, que foi destruída pelo governo Bolsonaro. Tem que ter o programa de transferência de renda, que a gente conseguiu colocar na Constituição (Auxílio Brasil), e melhorá-lo, porque ele tem condições de prestar um serviço melhor à sociedade. Temos também que promover uma recuperação econômica que, necessariamente, passa pelas reformas estruturantes, em particular, a tributária. Ficaria muito feliz se tivesse algum candidato que pudesse apresentar de maneira transparente e concreta como vai trabalhar o Orçamento nos quatro anos.

O sr. considera que essa possível chapa presidencial Lula-Alckmin, que está sendo articulada, simboliza o triunfo da impunidade?
Vejo muita gente no Brasil ansiosa para encontrar soluções que evitem a permanência do Bolsonaro. Eu entendo essa ansiedade. O governo Bolsonaro é destrutivo, muito ruim, em todas as áreas. Isso está levando alguns personagens políticos a fazerem movimentos arrojados, como o de Geraldo Alckmin, que está abrindo mão da resistência à forma de trabalhar do PT para tentar dar uma base mais ampla a Lula e garantir uma suposta transição mais consistente. O problema continua sendo o mesmo: qual é o projeto? É o do Alckmin ou o do PT do Lula? Como vai ser esse governo? Porque se for só para ter foto de gente simpática que contemple um projeto de marketing, fica muito fácil. Precisa de solução, mostrar qual será a linha de governo. Vão abrir mão de âncoras fiscais, como o limite do teto de gastos, por exemplo? Essas perguntas precisam ser respondidas para sabermos para onde o Brasil vai. Não temos mais tempo para ficarmos fazendo apostas, mesmo com nomes conhecidos, mas que você não consegue saber qual é o projeto. Eu não sei qual é o projeto do Lula para o Brasil em 2023.

Uma marca do governo Bolsonaro tem sido a interferência política em órgãos de estado, como a Polícia Federal, o Iphan e a Anvisa. Como é possível coibir isso?
Primeiro, é preciso ter uma precisão sobre o diagnóstico. Jair Bolsonaro tem uma postura miliciana, age como um miliciano carioca. Ele acha que a intimidação, a ameaça, o uso da força, são ferramentas para a ocupação e manutenção do poder. Ele faz isso desde o primeiro dia, quando buscou punir o fiscal do Ibama que multou uma pesca irregular dele em Angra dos Reis. Isso vai se repetindo mês a mês. O episódio mais recente é o das ameaças escancaradas à integridade física dos servidores da Anvisa. Em um país que estivesse funcionando razoavelmente, o procurador-geral da República teria um papel relevante nesse processo, para combater, denunciar, fazer com que as coisas funcionassem de forma mais ágil contra esses desmandos cometidos por Bolsonaro. Só que o PGR é um serviçal do governo, uma figura dedicada a agradar ao chefe e não a cumprir a sua missão, e vem postergando as medidas. Isso força vários personagens da política a entrar com ações no Supremo. Vários ministros do STF já apresentaram críticas ou reprimendas à inação ou inércia do procurador-geral da República, mas o sistema não foi concebido para lidar com gente inerte. Quando o constituinte criou os papéis, ele imaginou que o PGR seria um cara dedicado a cumprir bem sua missão, não imaginou que existiria um Augusto Aras. Isso dificulta muito a postura. O Brasil tem que lidar com um desafio muito complexo, que é o de ter um presidente da República criminoso. O nosso presidente é um criminoso contumaz, pratica crimes praticamente todos os dias. E a nossa democracia não estava preparada para esse tipo de atuação. A gente não tem ferramentas adequadas. Existe o instrumento do processo de impeachment, mas isso em tempos de orçamento secreto é impossível.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/Crusoé“Bolsonaro tem uma postura miliciana, age como um miliciano carioca”
Ainda é possível fazer algo para que o trabalho realizado pela CPI da Covid no Senado, que imputou nove crimes ao presidente Bolsonaro, não acabe em pizza?
Da parte da CPI ou do Senado, nada mais. A gente pode continuar cobrando investigações. Alguns ministros do Supremo, como Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes, já cobraram de forma ostensiva que o PGR encaminhe as tais investigações que ele diz ter instaurado, para que a gente possa verificar com transparência se efetivamente ele está apurando alguma coisa. Mas o grande feito da CPI não está na seara criminal, está no fato de ter conseguido, apesar de um governo negacionista, de um ministério covarde, ter a vacinação em andamento. Quando a CPI começou, a gente não tinha nem a garantia das compras de doses na quantidade adequada, e hoje temos. Agora esbarramos na vacinação de crianças a partir de 5 anos. O ministro da Saúde (Marcelo Queiroga) cria dificuldades para agradar ao chefe, sonhando com uma vaga no Legislativo em 2022. Provavelmente, nessa virada de ano, vai ser necessário tomar uma atitude na Justiça. A Anvisa já reconheceu a necessidade da vacinação de crianças, os principais países do mundo já fazem isso, e o Brasil retarda numa tentativa de puxar o saco de um chefe negacionista e irracional.

O sr. citou o orçamento secreto usado pelo governo Bolsonaro para comprar apoio no Congresso. No passado, o PT operou o esquema do mensalão com a mesma finalidade. Como romper com esse mecanismo de compra do Legislativo pelo Executivo?
Seguramente, a única ferramenta que nós temos para romper essa situação é por meio do Judiciário. A gente entrou com uma ação no Supremo contra o orçamento secreto. E esse tipo de recurso ao Judiciário vem acontecendo reiteradamente. A própria CPI da Covid só existiu porque nós fomos à Justiça pedir que fosse instaurada. Agora, novamente, você tem muito clara a compra de apoio político, além de desvios constitucionais gravíssimos da aplicação do recurso público. A CGU (Controladoria-Geral da União) aponta um potencial de corrupção de 10% desses contratos, o que daria 3 bilhões de reais, e não existe nenhuma providência por parte do Ministério Público. Nós conseguimos alguma transparência, mas o novo orçamento prevê um valor altíssimo para as emendas de relator, sem o devido controle, e nós teremos de ir de novo à Justiça para colocar um limite nisso. Não pode haver uma distorção tão grave. Ela afeta a democracia de uma forma fatal. O método e a forma são muito semelhantes aos do mensalão — que gerou aquelas condenações todas do PT. O orçamento secreto, de certa forma, é o mensalão do governo Bolsonaro.

Adriano Machado/CrusoeAdriano Machado/Crusoe“A CPI da Covid só existiu porque nós fomos à Justiça pedir que fosse instaurada”
Até hoje, o sr. não conseguiu aprovar no Senado a chamada CPI da Lava Toga, para investigar suspeitas envolvendo magistrados das cortes superiores. É impossível quebrar esse tabu no Brasil?
Quando cheguei no Senado, em 2019, e apresentei o requerimento da CPI, as pessoas tinham certeza de que era impossível. A gente conseguiu todas as assinaturas e a CPI só não teve andamento por uma ação combinada de Davi Alcolumbre, do Centrão, e do PT, juntamente com o próprio Bolsonaro. Eles abafaram e a CPI permanece engavetada. Não foi nem instalada nem rejeitada. Mas é preciso separar os ministros que eu entendo que precisam ser investigados e a Justiça, um poder constitucionalmente previsto. Vou recorrer ao Judiciário todas as vezes que achar necessário, mas continuo com absoluta convicção de que é preciso mudar a fórmula de preenchimento das vagas nos tribunais superiores e investigar a conduta de determinados ministros, que há muito tempo se portam muito mais como dublês de empresário e político do que como magistrados. Isso tem que mudar. É um prejuízo muito grande para a sociedade você ter ministros que não sabem se portar com o recato que a magistratura exige.

Quais mudanças deveriam ser feitas para melhorar o nível dos magistrados das cortes superiores?
É necessário fazer uma série de mudanças. Apresentamos uma delas recentemente, que é para deixar estabelecido em lei o que significa exatamente notório saber jurídico e reputação ilibada. Isso não pode ser uma coisa aleatória, solta no ar. Criar mandato para ministros das cortes superiores é outro ponto muito positivo. A maior parte dos países europeus utiliza esse método. Ter um processo de seleção mais complexo, que passe pelo Congresso, pela sociedade, pelo Executivo, e não apenas essa escolha de bolso do presidente da República, que é sabatinado pelo Senado. Temos de garantir que cheguem às cortes superiores bons profissionais sob o ponto de vista técnico e com um comportamento moral que dê para a sociedade a certeza de que a Justiça funciona. Quando a Justiça perde credibilidade, todo o sistema democrático sofre, porque você fica sem ter a quem recorrer.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/Crusoé“O custo-benefício continua sendo muito favorável para o criminoso”
O sr. acredita que a reação das elites política e econômica do Brasil à Lava Jato tem sido ainda maior do que ocorreu na Itália, depois da operação Mãos Limpas?
A gente tem a conexão de roteiro muito clara. Um momento em que a sociedade cria uma expectativa de punição aos poderosos, de que finalmente o sistema vai mudar. Mas aí você tem essa energia toda gerada no país canalizada na eleição de um populista. Lá eles elegeram (Silvio) Berlusconi, aqui nós elegemos Bolsonaro. E esse populista rapidamente se mostra aliado daquele mesmo sistema corrupto e começa a fazer um desmonte. Esse desmonte passa por mudanças nas leis, facilitando a prescrição, a impunidade, dificultando e ameaçando os profissionais que investigam e denunciam. Isso a gente teve na Itália e já teve aqui no Brasil. E então você tem a retomada do poder por algumas figuras que começam um processo de vingança, que buscam retaliação. Porque a intenção não é só gerar a impunidade de quem foi condenado, mas também inibir as futuras investigações. Mostrar que quem tenta enfrentar esse sistema corrupto vai ser perseguido duramente, vai perder seu emprego, ter sua reputação destruída. A gente vem constatando isso tudo. Você pode até discutir questões processuais relativas a algum momento da Lava Jato, mas o que você não pode discutir, porque são fatos, é que a corrupção foi violentíssima naquele período, e que essa corrupção foi provada. Provada em processo em que os acusados tiveram acesso às bancas de advocacia mais caras e foram alvos de decisões confirmadas em todas as instâncias. Até que se consegue, no Supremo, tirar da cartola um processo que estava na gaveta do ministro Gilmar Mendes por quase dois anos, aprovar a suspeição do juiz responsável, e ela acaba sendo aplicada em cascata para anular anos de condenação de vários criminosos. Eduardo Cunha e Sérgio Cabral ainda posarão de heróis injustiçados. Isso destrói a crença na Justiça. É muito grave o momento que estamos vivendo e infelizmente não temos energia para poder reagir à altura.

Os corruptos venceram?
A corrupção nunca vai acabar. O que você vai conseguir, com instituições fortes, é inibi-la, aumentar o custo para as pessoas. O custo-benefício continua sendo muito favorável para o criminoso. Ele continua sendo tolerado nas esferas de poder e com a expectativa de reversão até de condenações em última instância. Então, nesse aspecto, é possível dizer que a corrupção está em um momento de vantagem, mas essa luta vai ser eterna. A gente estará o tempo todo tentando colocar o Brasil em um caminho de honestidade e decência e vai ter gente puxando para o outro lado, porque sobrevive melhor na criminalidade.

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