MarioSabino

A imprensa é um trem de subúrbio

07.09.18

Nesta semana, tivemos de enfrentar mais uma mentira espalhada por blogs sujos petistas, cumpliciados com um criminoso foragido: a de que O Antagonista tem como sócio um especulador preso por roubo em Nova York. O dado irônico é que o site foi o primeiro a publicar a notícia da prisão do sujeito. Na verdade, ele foi sócio do nosso sócio, muito antes de O Antagonista ter sido fundado.

Estou acostumado com os blogs sujos desde os meus tempos da Veja. Foram criados durante o segundo governo Lula, para tentar minar a credibilidade de jornalistas e veículos de imprensa independentes que revelaram a roubalheira do mensalão e continuam a investigar a organização criminosa que pretendia perenizar-se no poder. Não há muito o que fazer a respeito – esse tipo de lixo nasceu com a imprensa e ganhou impulso particular durante a Revolução Francesa. Os panfletos surgidos na Paris do século XVIII eram os blogs sujos da época. Deve-se à escória que os produzia as difamações de que Maria Antonieta – “L’Autrichienne”, como era chamada com desprezo – foi vítima. Inclusive a frase jamais dita por ela de que o povo deveria comer brioches, já que não tinha pão. Sobre o assunto, recomendo a leitura da biografia de Maria Antonieta escrita pela inglesa Antonia Fraser. O livro serviu de base para o filme de Sofia Coppola sobre a rainha guilhotinada.

O problema mesmo é quando você recebe um telefonema de um ministro do Supremo Tribunal que o insulta com mentiras inventadas por blogs sujos. Não faz tanto tempo, um deles, irritado com reportagens que publicamos, telefonou para xingar e, claro, ameaçar. Disse que O Antagonista “especula com a notícia” e que “enchemos o rabo de dinheiro com propina do Aécio e do João Doria”. Também disse que processaria o site. Quando tentou me intimidar, respondi que não admitia ouvir tamanhos disparates. As leviandades do ministro estão gravadas. É um procedimento obrigatório num país feroz como o Brasil, se você não quiser ter a sua cabeça cortada como a de Maria Antonieta.

A mentira desta semana veio no momento em que eu lia uma crônica de Machado de Assis, de meados do século XIX, intitulada “O jornal e o livro”. Na crônica, o Bruxo do Cosme Velho se questiona sobre se o jornal mataria o livro, assim como o livro devorara a arquitetura (na Idade Média, as Escrituras podiam ser “lidas” nos relevo e esculturas das catedrais). Ele se pergunta também sobre se o livro absorveria o jornal (o que acabaria ocorrendo no século XX, por meio das reportagens literárias de Truman Capote, Norman Mailer e Tom Wolfe, entre outros).

O fato de eu estar lendo Machado de Assis talvez seja uma demonstração de que o jornal não conseguiu matar o livro neste século XXI. Não ainda. O ponto, contudo, é outro. No momento em que a imprensa se encontra sob fogo cerrado – e merecido — no Ocidente, os títulos impressos experimentam decadência irreversível, o digital impõe corte de custos nas redações e as redes sociais se tornaram a principal fonte de informação para a maior parcela dos cidadãos, espanta o elogio ao jornal e o seu futuro brilhante. Diz Machado de Assis: “O jornal é a verdadeira forma da república do pensamento. É a locomotiva intelectual em viagem para mundos desconhecidos, é a literatura comum, universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das ideias e o fogo das convicções. O jornal apareceu trazendo em si o gérmen de uma revolução. Essa revolução não é só literária, é também social, é econômica, porque é um movimento da humanidade abalando todas as suas eminências, a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo literário, do mundo econômico e do mundo social”.

O elogio derramado espanta hoje, mas é compreensível no contexto. Impressionado com o avanço dos Estados Unidos, a nova potência mundial, Machado de Assis estava provavelmente imbuído do espírito de Thomas Jefferson — que afirmou numa carta que, entre um governo sem jornais ou jornais sem governo, “não hesitaria em preferir a segunda alternativa”. A frase ainda é muito usada em editoriais contra a censura. Outra frase que os editorialistas gostam de utilizar, mas para justificar as imprecisões e erros do noticiário, é aquela cuja autoria acabou sendo atribuída a Phil Graham, publisher do Washington Post: “O jornalismo é o primeiro rascunho da história”. Não raro, a história fica só no rascunho.

O meu rascunho de jornalista é que, passado um século e meio da publicação da crônica de Machado de Assis, o presente da nossa imprensa é menos parecido com o de uma locomotiva intelectual e mais com o de um trem de subúrbio brasileiro: atrasado, quebrado, dependente do governo (hipótese não mencionada por Thomas Jefferson) e com um monte de gente suja surfando no teto. No entanto, como precisamos sempre chegar a algum lugar, o trem de subúrbio continua imprescindível.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO