MarioSabino

A mendiga e o super-rico

10.12.21

No meio do meu trajeto a pé até a redação, mora uma mendiga faz tempo. Ela montou uma cabaninha com o plástico preto de sacos de lixo na esquina de uma igreja. A cabaninha está espremida entre o meio-fio e um canteiro que a igreja mandou fazer lá, ao redor de uma árvore, provavelmente para tentar que a mendiga mudasse de endereço. Muito cristão. Juntamente com ela, moram — se é que o verbo se aplica — quatro cachorros e um gato. Na medida do possível, parecem bem cuidados. Outros mendigos dão as caras no meu trajeto, em especial em frente a um supermercado chique e à farmácia onde, de vez em quando, faço teste para Covid. Mas eles não habitam o bairro, ao contrário da mendiga que tem quatro cachorros e um gato.

Nunca os mendigos foram tão visíveis em São Paulo. Outro dia, para o meu espanto, já que havia muito não passava pela Avenida Paulista, deparei à noite com dezenas de barraquinhas de acampamento no vão do Masp. Agora, são famílias inteiras que moram nas ruas da cidade mais rica do Brasil, numa prova inconteste da dramaticidade da crise por que passamos. O entorno do Parque Trianon também está repleto de barraquinhas. Uma tristeza.

Voltemos ao meu bairro, onde mora a mendiga na esquina da igreja. Pipocam nele prédios de luxo — luxo nunca abaixo de 12 milhões de reais por apartamento — e há muito mais carrões trafegando nas suas ruas do que, sei lá, nos arredores da Rue Saint-Honoré, em Paris. Em frente a restaurantes de uma rua que foi praticamente privatizada pelos donos dos estabelecimentos, há filas duplas de carros dos quais nem imagino o preço. Os mais baratos parecem ser BMWs. Eu só vi tantas Ferraris e Lamborghinis em Mônaco. Outro dia, o meu caçula me disse que viu uma McLaren. Respondi que só existia McLaren em Fórmula 1, mas ele me informou que não. Já lá perto da Paulista, onde funcionava o hospital Umberto Primo, estão para inaugurar um complexo de luxo — “absurdamente francês”, como consta do vídeo de venda dos imóveis — no qual os apartamentos têm metro quadrado de 50 mil reais. As Ferraris e Lamborghinis terão outro ponto de desfile, imagino, e absurdamente francês seria cortar a cabeça dos seus donos.

Não faço essas observações porque sou ressentido. Não sou. Também não sou socialista, embora haja quem me chame de “socialista fabiano”. Se não roubaram nem mataram, ricos têm o direito de sê-lo e de exibir a sua riqueza como quiserem, e não é o dinheiro ou a falta dele que conferem caráter a uma pessoa. Mas acho que a riqueza relativamente discreta é sinal de bom gosto e, no caso de países como o Brasil, com grande desnível social, de sensibilidade. Até em relação a gente como eu, de classe média. Eu, e talvez você, leitor, estou muito mais próximo financeiramente da mendiga que mora na esquina da igreja do que de um rico de McLaren.

Há algumas semanas, estive na casa de um rico. Rico, não, super-rico. A fortuna pessoal dele, me contaram, é de 2,5 bilhões de dólares. Na sala do seu apartamento, havia muitas obras de arte, a maioria delas de pintores que julgo inflacionados. Meus olhos se voltaram logo para um Chagall, de porte médio, que retratava uma festa de casamento imune à lei da gravidade (a gravidade não existe nas pinturas de Chagall, as suas figuras levitam). Pedi a ele para examinar o quadro de perto. O homem de 2,5 bilhões de dólares arregalou os olhos e me disse que eu havia sido o único a reconhecer o Chagall pendurado na sua sala. Não há nada de especial em reconhecer um Chagall. Por isso mesmo, fiquei com pena do sujeito, se é que se pode ter pena de um super-rico. Os seus 2,5 bilhões de dólares não lhe proporcionaram um amigo que reconhecesse o pintor. A mendiga que mora na esquina da igreja também não reconheceria, acho, mas ela nunca teve a chance de admirar um Chagall.

A ignorância nivela ricos e pobres no Brasil, com a diferença de que ricos poderiam remediá-la, porque têm condição para isso, cultivando o próprio espírito. Quem sabe assim adquirissem algum bom gosto que não fosse o dos decoradores e arquitetos — sempre os mesmos — que enfeitam as suas casas. Quem sabe assim mostrassem sensibilidade para que a sua exibição de riqueza fosse um pouco — um pouquinho só — mais discreta. A cultura, em geral, quando não serve ao esnobismo, aproxima as pessoas, e isso não é ruim, ao contrário do que faz crer o apartheid social em que vivemos. Aproxima porque boa parte da cultura — entenda-se, aqui, a alta cultura — é obra de gente pobre ou da classe média endividada, gente perseguida politicamente ou por pertencer a minorias, gente com alguma perturbação psicológica, gente que morreu na miséria ou foi amparada por um mecenas que, admirador do seu talento, lhe evitou a morte indigente. Gente que transformou em arte universal as suas dificuldades e enxergou no outro, inclusive em ricos e poderosos, a sua própria dor.

Além do dinheiro de fim de ano, vou dar de presente de Natal um livro com obras de Chagall para a mendiga que mora na esquina da igreja. Tão presa à gravidade, ela talvez levite juntamente com as reproduções das pinturas. Estamos todos precisando levitar.

PS: a editora Topbooks lançou Me Odeie pelos Motivos Certos, em versão impressa. Quem quiser adquirir o livro, com desconto, pode clicar neste link. Obrigado aos que já compraram e agradeço antecipadamente aos que vierem a comprar. Eu tento me aproximar das pessoas por meio do que escrevo.

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