MarioSabino

O suicídio da consciência

03.12.21

O fanatismo é um cancelamento da consciência. Ela, a consciência, pode não ter sido despertada pela educação e pela cultura e, assim, restar adormecida num sono de morte pelo fanatismo. Esse cancelamento da consciência se dá pelo empréstimo das certezas do líder político ou religioso. Foi o que ocorreu na Alemanha nazista e ocorre hoje no fundamentalismo islâmico. No caso da Alemanha, há os que se surpreendem por tratar-se de nação avançada e, portanto, que deveria ter ficado imune a fanatismos, mesmo com todas as circunstâncias históricas da ascensão de Hitler. Mas o certo é que não se pode jamais tomar a parte pelo todo — e o todo, nos berços da civilização ocidental, é também composto por gente muito ignorante e facilmente capturável pelo fanatismo. Ele, o fanatismo, fornece certezas das quais a consciência é, necessariamente, rala — ou não seria consciência. O homem consciente é, sobretudo, um homem em permanente espanto com a falta de lógica moral intrínseca ao mundo — e que sabe que as lógicas ideológicas que impingimos a ele são provisórias. A moral imanente é a do espanto.

O que dizer, porém, do fanatismo de quem teve a consciência despertada pela educação e pela cultura — e que não deveria, portanto, deixar-se enfeitiçar por certezas alheias? Essa pergunta me ocorre hoje, no plano nacional, quando deparo com pessoas esclarecidas que embarcaram fanaticamente na defesa de políticos como Lula e Jair Bolsonaro. O primeiro atraiu intelectuais, escritores e artistas, e não estou falando dos que não merecem respeito. É verdade que o ideário de esquerda ajudou a fornecer combustível para essa idolatria. Mas não é razoável pensar que esse ideário possa ser suficientemente encobridor para que tantos ignorem por tanto tempo os crimes que foram cometidos por Lula e sejam cegos a suas contradições. Intelectuais, escritores e artistas têm ou deveriam ter no espanto com a falta de lógica moral intrínseca ao mundo — e na provisoriedade das lógicas ideológicas criadas por nós — a sua matéria-prima, ainda que tenham simpatias por esse ou aquele lado.

Quanto a Jair Bolsonaro, tem-se como dado absoluto que os seus seguidores são apenas “gado”. Não é verdade: ainda há entre os que o defendem gente com luzes o bastante para enxergar a sua sociopatia, ignorância e desonestidade — e que não estão ao seu lado porque viram nele uma oportunidade social, política ou econômica. Há, inclusive, os que o criticam em privado, mas teimam em cerrar fileiras com Jair Bolsonaro em público, no que é prova para mim da força do fanatismo, muito mais do que da do cinismo. O ideário de direita também não deveria ser motivo para a rendição, visto que existe hoje, no Brasil, uma direita que ousa dizer o seu nome e é antibolsonarista.

O fanatismo é um cancelamento da consciência, como disse no início deste artigo. A minha tese é a de que, entre as pessoas esclarecidas que sucumbem a ele, esse cancelamento é um suicídio da consciência, equivale a matar a sua própria essência. O ato final de um desvio de finalidade. É não conseguir conviver mais com o espanto diante da falta de lógica moral intrínseca ao mundo e da provisoriedade das lógicas criadas por nós. E, então, sucumbe-se à certeza fanática. Essa explicação, no entanto, não é justificativa. Essa fraqueza, contudo, não pode ser perdoada. O suicídio da consciência é um crime cometido não somente contra si próprio, é um crime cometido contra os nossos semelhantes. Mas a consciência sempre sobrevive como fantasma a assombrar quem a matou: “Minha consciência tem milhares de vozes, e cada voz me traz milhares de histórias, e de cada história sou o vilão condenado”. Ricardo III. Shakespeare.

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