Adriano Machado/CrusoéO dono da sigla de Jair Bolsonaro aluga um imóvel próprio ao PL e recebeu verbas rescisórias polpudas do partido

O fundão de Valdemar

Todo-poderoso do PL, o notório Valdemar Costa Neto lucra pessoalmente com a parte do fundo partidário que cabe à legenda: em apenas três anos, arrumou um jeito de arrecadar para ele próprio ao menos R$ 1 milhão. Parte disso, acredite, foi assinando a própria demissão
03.12.21

Em discurso durante a cerimônia de filiação ao PL na terça-feira, 30, Jair Bolsonaro disse que o  “casamento” com o partido vai gerar “70 filhos”. É justamente essa prole, ou melhor, a possibilidade de formar essa imensa bancada de deputados federais, que ajuda a explicar o interesse da legenda em abrigar o presidente. Com Bolsonaro como “cabo eleitoral”, o PL aposta que mais parlamentares serão eleitos em 2022. E, quanto maior a bancada, mais robusto é o dinheiro dos fundos partidário e eleitoral, recursos bilionários que o ínclito Valdemar Costa Neto sabe operar muito, mas muito bem.

Integrante do PL há mais de 30 anos e comandante da sigla há duas décadas, Valdemar desfruta das benesses proporcionadas por esses fundos, que pelos seus cálculos podem ser elevados em até 60% no próximo ano – em 2020, a agremiação recebeu 181,4 milhões de reais. A variada fonte de receitas repassadas pelo PL lhe rendeu pessoalmente pelo menos 1 milhão de reais em três anos. Para alcançar esse valor, Valdemar se especializou em ganhar dinheiro no varejo. Por exemplo, no ano passado, o cacique da sigla recebeu uma generosa rescisão numa, digamos, astuta troca de regime de contrato. Até 2020, Valdemar era contratado com carteira assinada com salário de 33 mil reais e foi demitido para receber as indenizações trabalhistas, que somaram 120 mil reais. No dia seguinte, foi recontratado como prestador de serviço, com o mesmo salário.

Reprodução/YouTube/PLReprodução/YouTube/PLBolsonaro afirmou que, ao lado de Valdemar e do Centrão, se sente “em casa”

Ao se debruçar sobre milhares de notas fiscais incluídas em prestações de contas do PL ao Tribunal Superior Eleitoral, a fim de verificar como o dinheiro público destinado à nova sigla de Bolsonaro é gasto, Crusoé descobriu ainda que Valdemar aluga um imóvel próprio à legenda, o que lhe garante mais uma fonte segura e permanente de receita. Trata-se da sede do PL em Mogi das Cruzes, na região metropolitana de São Paulo, terra natal do ex-mensaleiro. A casa térrea, que funciona no número 907 da Rua Coronel Souza Franco, foi comprada pelo ex-deputado em 1988. À época, “Boy”, como Valdemar era chamado na cidade, não era parlamentar, mas já ocupava cargos públicos. Os repasses ao presidente da própria sigla a título de aluguel começam a aparecer na prestação de contas do PL a partir de 2017 – quando as informações dos partidos passaram a ser incluídas no sistema do Tribunal Superior Eleitoral. Os valores somam 20 mil reais anuais. Parece pouco, mas é de repasse em repasse, ou seja, é na soma desse dinheiro picado, que o dono do PL acaba embolsando uma quantia milionária proveniente de recurso público. Em agosto, Valdemar passou a casa para o nome da filha caçula, Catarina Vidal Costa, de sete anos. A menina é fruto da relação do ex-deputado com a servidora Dana Vidal Costa, com quem se casou pouco depois de deixar a prisão.

ReproduçãoReproduçãoA sede do PL funciona em uma casa da filha de Valdemar, que recebe aluguel

Na prestação de contas do partido, outra transação imobiliária do PL chama a atenção, só que desta vez com valores bem mais generosos: a compra de uma cobertura por 8,2 milhões de reais. O imóvel, localizado no Centro Empresarial Brasil 21, o mesmo que abrigou a cerimônia de posse de Jair Bolsonaro em Brasília, foi adquirido pela Fundação Álvaro Valle, do PL, em 2013. A entidade negociou a compra com a RPA Construções e Participações, do empresário Antônio Matias de Sousa, preso em 2015 pela acusação de integrar um cartel de combustíveis na capital federal. A RPA havia comprado a cobertura um ano antes por 7 milhões de reais. Pouco depois de adquirir o imóvel, a fundação ligada ao PL passou a alugar a sala duplex ao próprio partido, pelo valor de 50 mil reais, o equivalente a 600 mil reais anuais. A reportagem conversou com corretores da região e identificou outra cobertura no mesmo andar da sala, ofertada por 60% do valor pago pelo PL. Aos partidos interessa transitar recursos pelas fundações partidárias porque a fiscalização é muito menos efetiva. Em vez da análise pelo TSE, as prestações de contas são submetidas às promotorias de fundações do Ministério Público estadual. “O controle sobre as fundações é muito menor, o MP não tem expertise ou estrutura para analisar essas contas como a Justiça Eleitoral”, afirma Marcelo Issa, presidente da organização Transparência Partidária.

Helena MaderHelena MaderA cobertura onde funciona a sede do partido em Brasília custou R$ 8,6 milhões
Reprodução

O novo partido de Jair Bolsonaro é reincidente em irregularidades. Na última prestação de contas da sigla já julgada pelo TSE, a Justiça Eleitoral identificou gastos irregulares de 2,5 milhões de reais. Entre os problemas identificados estão casos de falsidade ideológica em despesas com reconhecimento de firma e autenticações e repasses proibidos a advogados. Mesmo tendo um assessor jurídico contratado com salário de 33 mil reais, o partido gastou 473,4 mil reais para pagar a defesa de integrantes da sigla em três processos, entre eles uma ação por fraude a licitações. “Não há dúvidas de que recursos públicos não se prestam ao patrocínio de causas que constituem flagrante lesão ao patrimônio da administração pública, completamente dissociadas dos interesses partidários”, diz um trecho do acórdão da decisão que rejeitou as contas.

O PL foi criado em 1985 a partir de uma frente de dissidentes da ditadura que decidiram apoiar Tancredo Neves. Seu principal fundador foi Álvaro Valle, o mesmo que hoje dá nome à fundação do partido. Em 2006, após um fiasco eleitoral que levou à fusão com o Prona, o Partido Liberal mudou de nome e passou a ser chamado de Partido da República. Em 2019, com a pauta liberal de volta à agenda política, a sigla recuperou o nome original, em um banho de marketing que também tinha como objetivo esconder o passado recente de escândalos. O partido é um genuíno representante do Centrão e apoiou todos os governos desde a sua fundação. O PL só lançou candidato próprio à Presidência em 1989, com Guilherme Afif Domingos. Em 2002, indicou o empresário José Alencar como vice de Lula. A partir daí, a sigla ganhou ainda mais espaço nas negociações com o governo. As tratativas nada republicanas entre parlamentares da legenda e o Planalto foram reveladas durante as investigações do mensalão do PT. Em razão do escândalo, Valdemar Costa Neto foi condenado a sete anos de prisão pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. E renunciou ao mandato. É, portanto, um “ex-presidiário”, expressão usada pelo senador Flávio Bolsonaro na última terça-feira para se referir ao ex-presidente Lula. Dormir por quase um ano na cadeia representou um revés político para o então deputado, mas o cacique do PL manteve o essencial: o comando do partido e a chave do milionário cofre da legenda.

Para escolher o novo partido, Jair Bolsonaro colocou como condição ter o controle de diretórios estratégicos e autoridade para barrar e indicar candidaturas. Os requisitos travaram as negociações com quase uma dezena de siglas, cujos dirigentes também queriam atrair o presidente da República, sem, contudo, abrir mão do poder de comando. Valdemar Costa Neto temia os ônus de receber um aliado com histórico conturbado de brigas e traições, mas a cobiça sobre o potencial crescimento do fundo partidário e do fundão eleitoral falou mais alto. Ao chancelar a filiação de Bolsonaro, na última terça, Valdemar exaltou realizações do governo. “Esse é o Brasil que vamos abraçar juntos para prosperar”, disse. Diante da perspectiva de inflar os recursos públicos à sua disposição, o cacique do partido poderá, realmente, prosperar.

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