RuyGoiaba

Não é fake news se seu coração acredita

03.12.21

Ninguém gosta de notícia: eis uma das conclusões a que cheguei depois de mais de 30 anos nesta indústria vital, como diria aquele desenho do Pica-Pau (citação erudita é comigo mesmo). Os leitores não gostam, os jornalistas muito menos — toda vez que perguntam a um legítimo espécime da categoria se não leu a notícia X que saiu no seu próprio jornal, a resposta tende a ser “sou pago para escrever lá; se tiver que ler também, quero outro salário”. As pessoas gostam é de historinha, comovente ou divertida — e, em ambos os casos, que seja viralizável, bombe nas redes, faça sucesso nos grupos de WhatsApp etc. Às vezes até acontece de a notícia ser de verdade e ter potencial para historinha.

Só que, se você colocar um ser humano para optar entre uma notícia e uma historinha sobre o mesmo assunto, como um cachorro entre duas tigelas de comida, ele vai direto (e salivando) na tigela da historinha. Sim, a realidade é no mais das vezes chata e sem graça, “pior para os fatos”, “imprima-se a lenda”, todos aqueles clichês que a gente conhece: é por isso que tentar explicar aos distintos leitores que uma notícia é falsa, quando eles querem MUITO acreditar nela, é trabalho análogo a enxugar um Everest de gelo. Mas a coisa piora exponencialmente quando, num mundo de redes sociais, os jornalistas — profissionais pagos para serem os chatos do rolê, mythbusters, desmentidores de fake news — embarcam alegremente no bonde e ajudam a disseminar ficção.

Nas últimas semanas, o Bananão nos agraciou com vários exemplos. Primeiro, foi a “agência de checagem de informações” que aproveitou o Dia da Consciência Negra para fazer etimologia freestyle e listar expressões “racistas” cujo uso deveria ser evitado, como “feito nas coxas”, “doméstica” ou “criado-mudo” — segundo a agência, ligadas à escravidão. Quase toda a lista era de lendas da internet, desmentíveis se alguém no processo tivesse tido a incrível ideia de olhar um dicionário ou dar dois cliques no Google: “feito nas coxas” nada tem a ver com telhas produzidas nas coxas dos escravos (seria necessário um escravo de 4 metros de altura, imóvel por 15 dias, para fazer as telhas coloniais brasileiras), “doméstica” não se refere a “negras domesticadas” (o termo já existia com esse sentido, “da casa”, no latim da Roma antiga) e “criado-mudo” é só tradução do inglês “dumbwaiter”, o elevador usado para transportar refeições — não um “escravo emudecido”. O pedido de desculpas da agência não atenuou o vexame.

Depois disso, ainda houve a historinha “Olavo de Carvalho saindo do Brasil em avião da FAB” — disseminada por uma palpiteira metida a Xeroque Romes, em quem gente séria acreditou, e logo desmentida por reportagem do Painel da Folha mostrando que, depois de ser intimado pela Polícia Federal, o guru bolsonarista fugiu por terra, entrando no Paraguai e de lá pegando um voo para Miami. Mas a fanfic que mais conquistou corações e mentes (inclusive os meus, que não resisti a entrar na brincadeira nas redes) foi a da “noivinha do Aristides”.

É possível crer que uma passageira de um carro aleatório na via Dutra tenha sido detida pela PRF por xingar Jair Bolsonaro — que acenava aos motoristas na beira da estrada — de “noivinha do Aristides”, alegada referência a um suposto instrutor de judô do presidente no início da sua carreira militar, em vez de lançar mão do tradicional, consagrado e brasileiríssimo “filho da puta”? O santo desconfiaria, mas muita gente acreditou: a “noivinha” passou dias no alto dos trending topics do Twitter e no topo das mais lidas em sites noticiosos. Era bom demais, Nelson Rodrigues demais para ser verdade: é fácil imaginar o delegado Cunha de O Beijo no Asfalto ou o doutor Werneck de Bonitinha, mas Ordinária chamando alguém de “noivinha do Aristides” e gargalhando na sequência. Tanto que, ora vejam, não era verdade: logo advogados da mulher detida vieram a público esclarecer que o xingamento tinha sido aquele tradicional mesmo.

Moral da história, se é que há alguma: o “lado bom” da homofobia de Bolsonaro é liberar todo mundo para ser homofóbico contra ele sem peso na consciência, sobretudo esse pessoal da autonomeada “mídia progressista”. Também está totalmente ultrapassada a ideia de que existe uma distância, às vezes grande, entre o que é plausível e o que é fato: se algo pode acontecer, então aconteceu. Por fim, não é fake news se seu coração acredita nela, assim como não pode ser verdade se contraria as suas crenças. E assim vamos nós, felizes habitantes do Bananão, pendurados na janela do bonde da dissonância cognitiva sem freio.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Não houve concorrência possível desta vez: a grande campeã da semana é a “moção de repúdio” da Câmara Municipal de Ribeirão Preto à propaganda dos Correios da Noruega que mostra um Papai Noel beijando um homem, obra de um brilhante vereador desse partido de bolsominions enrustidos que é o Novo (se isso passa no tal “processo seletivo” da sigla, imagine quem tropeça no sarrafo). Duvido que a turma saiba apontar onde fica a Noruega no mapa, mas é imprescindível fazer saber aos escandinavos que há ribeirão-pretanos muito incomodados com o Papai Noel gay. Sugiro que o Brasil todo se mude para Ribeirão, já que certamente todos os problemas que mereceriam a atenção dos vereadores da cidade acabaram e o IDH de lá deixa o norueguês no chinelo.

O Papai Noel norueguês, que sai do armário em vez de descer pela chaminé

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