Flickr/7COProtesto contra lockdown em Frankfurt: governo demorou para agir com medo de perder votos

A Europa, de novo, em apuros

O risco de a pandemia causar mais 700 mil mortes no continente até março leva governos a pensar em vacinação obrigatória. Resistência às vacinas e idade mais elevada da população ampliam os riscos
26.11.21

Assim que tomou o microfone para anunciar a formação de um governo de coalizão na Alemanha, na quarta, 24, o social-democrata Olaf Scholz fez um alerta sobre uma nova e perigosa onda de Covid. “O coronavírus não foi derrotado. Novos recordes nos surpreendem a cada dia”, disse ele, para logo em seguida revelar novas medidas no sentido de acelerar a vacinação dos alemães.

A cada 24 horas, o país tem registrado cerca de 70 mil novos casos de Covid — mais do que o dobro das duas ondas anteriores, no final de 2020 e começo deste ano. Scholz substituirá a chanceler Angela Merkel, que dois dias antes foi enfática ao falar sobre a gravidade da situação: “Será pior do que tudo o que vimos até agora”. Seu ministro de Saúde, Jens Spahn, vaticinou: “No final do inverno, todo mundo na Alemanha provavelmente estará vacinado, recuperado ou morto”.

Após quase um ano do início das campanhas de vacinação contra a Covid, as declarações de governantes da Alemanha e de outros países europeus evocam as cenas trágicas da crise como a que pegou todos de surpresa no início de 2020. Em março daquele ano, o Exército italiano teve de enviar 15 caminhões refrigerados para coletar os corpos dos mortos em Bergamo, numa imagem que se tornou simbólica da gravidade da pandemia. Na Espanha, doentes que batiam à porta dos hospitais eram enviados de volta para morrer em casa. Desde esses dias sombrios, 1,5 milhão de pessoas morreram de Covid na Europa. Quatro vacinas já foram aprovadas e vêm sendo aplicadas no continente, e acumulou-se um considerável conhecimento sobre remédios e políticas sanitárias eficientes. Apesar de tudo isso, na semana passada, a Organização Mundial de Saúde, OMS, anunciou que mais 700 mil europeus podem morrer até março. É um número até superior ao dos 613 mil óbitos já confirmados no Brasil.

Na quinta, 25, cientistas alertaram para a disseminação de uma nova variante, detectada na África do Sul, que poderia levar a uma redução na eficácia das vacinas e é muito diferente das que estão em circulação. O temor é que essa nova variante substitua a cepa Delta, hoje majoritária na Europa, causando ainda mais mortes. Nesta sexta, 26, Reino Unido, França, Itália, Israel e Singapura cancelaram voos da África do Sul. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, afirmou nas redes sociais que toda a União Europeia pode interromper todos os voos da África do Sul. O ministro de Saúde da Bélgica, Frank Vandenbroucke, confirmou um caso, mas veículos de imprensa já noticiaram duas pessoas contagiadas no país.

As medidas para impedir uma nova calamidade são obviedades há muito repetidas, como a recomendação do uso de máscaras e o distanciamento social. Segundo a OMS, só 48% dos europeus usam algo para tapar o rosto ao passar pela soleira da porta da rua. A entidade insiste para que as pessoas se vacinem. Hoje, só 53% dos habitantes da Europa fizeram isso. No Brasil, o índice passou de 60% — não propriamente pela vontade de Jair Bolsonaro.

Reprodução/EuronewsReprodução/EuronewsHospital de Covid na Alemanha: 100 mil mortos até agora
Governantes também têm olhado com atenção para o que acontece na Áustria. Na segunda-feira, 22, o país promoveu um lockdown de dez dias. Creches e escolas continuam abertas, mas todos devem usar máscaras. Lojas não essenciais foram fechadas. Apenas aqueles que não podem trabalhar de casa e já se vacinaram podem ir ao escritório. No final desse período, as restrições serão suspensas apenas para os que se vacinaram. Dessa maneira, as autoridades pretendem elevar a porcentagem de imunizados, hoje em 66%. Em fevereiro, o governo estuda, como último recurso, implementar uma lei obrigando todos os cidadãos a se vacinarem. Como isso será feito ainda está sendo discutido. Por enquanto, países como Alemanha, França e Itália exigem a comprovação da vacina para que os indivíduos frequentem lugares públicos. A Áustria pensa em dar um passo além, instalando postos e controle sanitário e cobrando multas equivalentes a 20 mil reais para quem sair de casa sem ter tomado a vacina. Quem se recusar a pagar o valor poderia até ser preso.

Os pedidos para a população adotar procedimentos conhecidos e com resultados comprovados têm causado revolta. Na Áustria, o anúncio de novas medidas levou 40 mil pessoas a protestar nas ruas de Viena, no sábado, 20. Assim como em outros países europeus, líderes de partidos de extrema-direita são os que mais têm exortado à rebelião. “A partir de agora, a Áustria se tornou uma ditadura”, disse o austríaco Herbert Kickl, do Partido Liberdade, que organizou o protesto. Ironicamente, ele não pôde participar porque testou positivo para a Covid dias antes e precisou ficar isolado por duas semanas. Nos protestos, austríacos levaram cartazes comparando o chanceler Alexander Schallenberg ao médico nazista Josef Mengele. Outros colavam nas roupas estrelas amarelas com a palavra “não vacinado”, parecidas com as que os judeus usavam nos campos de concentração. Na Holanda e na Bélgica, ocorreram manifestações semelhantes. Na cidade holandesa de Roterdã, carros e bicicletas foram queimados.

As explicações para o aumento de casos na Europa ajudam a entender a dinâmica da pandemia e a prever se o Brasil corre ou não risco semelhante. O primeiro fator a ser considerado é a resistência da população em se vacinar. Enquanto, em fevereiro, 88% dos brasileiros afirmavam querer tomar a vacina, segundo a Ipsos, essa porcentagem era de 80% na Espanha e na Itália, 68% na Alemanha, 57% na França e 42% na Rússia. Onde a resistência é alta, as taxas de vacinação são menores e as internações e mortes, mais comuns. Nesta terça, 23, a Comissão Europeia divulgou no Twitter um ranking de países que mostra como as nações que mais avançaram na imunização têm registrado menos óbitos. Portugal está em segundo na lista, com 92% da população adulta vacinada e 10 óbitos para cada 1 milhão de habitantes. Na lanterna está a Bulgária, com 29% da população vacinada e 325 óbitos por milhão.

No Brasil, embora apenas 60% tenham completado as duas doses, a maior parte dos que vivem nos grandes centros já se imunizou. Em São Paulo, a cidade mais populosa do Brasil, 76,4% da população total está totalmente protegida – 99,7%, quando se considera somente os maiores de 18 anos. “No Brasil, a maior parte dos não vacinados possivelmente está em áreas remotas ou não pode se vacinar porque tem dificuldade para deixar o trabalho e ir a um posto nos horários disponíveis”, diz o pesquisador Raphael Guimarães, da Fundação Osvaldo Cruz, a Fiocruz, no Rio de Janeiro. “Acredito que nós não tenhamos uma situação como a da Europa, em que há uma alta rejeição às vacinas nas grandes cidades, onde as populações se aglomeram”, acrescentou Guimarães. “Como a vacinação no Brasil está avançada, o número de mortes deverá ser menor no ano que vem. Mesmo com a chegada de uma nova onda, seria difícil que a situação de 2021 se repita”, faz coro o demógrafo José Eustáquio Alves.

CrusoéCrusoéSão Paulo já tem 99,7% da população adulta vacinada
Na Alemanha, a política ainda acabou trabalhando contra. O país teve eleições gerais no final de setembro, que definiram a composição do Parlamento e a próxima coalizão de governo. Isso atrasou as ações estatais. “Os partidos e políticos alemães evitaram adotar medidas mais duras no verão, porque acharam que isso poderia tirar votos. Assim, enquanto a França e a Itália adotaram o passaporte sanitário muito antes, a Alemanha só fez isso nesta quarta, 24”, diz a cientista política alemã Anne Kuppers, da Universidade de Jena.

Outra diferença entre europeus e brasileiros está na faixa etária da população. Um dos países que registram mais aumento de casos é a Bélgica, que tem 75% da população total vacinada. Enquanto por lá a média de idade da população é de 42 anos, no Brasil é de 33 anos.A Europa tem muitos idosos entre a população. Eles tomaram as doses iniciais há muitos meses e ninguém sabe direito por quanto tempo irá durar a proteção vacinal”, diz Julival Ribeiro, do Instituto de Gestão Estratégica de Saúde do Distrito Federal e membro da Sociedade Brasileira de Infectologia.

Não ajuda também a chegada do inverno na Europa, que leva as pessoas a se aglomerarem mais, e o afrouxamento das medidas de distanciamento social e de obrigação do uso de máscaras, que ocorreram há alguns meses. De qualquer forma, a maior causa dos apuros europeus está mesmo na resistência aos imunizantes, na leniência governamental e no desrespeito de milhões de cidadãos ao uso de máscaras e medidas de distanciamento social. A possibilidade de que uma nova variante vinda da África do Sul seja capaz de driblar a ação das vacinas torna tudo ainda mais preocupante. Com tanto conhecimento adquirido ao longo de quase dois anos e vacinas disponíveis, saber que a Europa ainda pode somar um número de mortes equivalente ao do Brasil faz descrer que o continente ainda possa arrogar-se o direito de ser chamado de berço da civilização ocidental.

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