ReproduçãoBolsonaro apostou no Telegram

O Telegram vai às urnas (e isso é um perigo)

Puxado por Jair Bolsonaro, o aplicativo de troca de mensagens deverá ser o vilão das eleições de 2022 no Brasil, com espaço liberado para golpes baixos e blindagem contra decisões judiciais
19.11.21

Uma empresa criada por um russo de 37 anos, que tem entre 25 e 30 funcionários e sede em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, tem tudo para ser a arena onde ocorrerão os ataques mais baixos entre os candidatos a presidente do Brasil na eleição do ano que vem. A companhia é o Telegram, do aplicativo de envio de mensagens de mesmo nome. Seu criador é o russo Pavel Durov, que não dá entrevistas e de quem se tem pouca informação. Sua fortuna passa dos 17 bilhões de dólares. Durov se orgulha de ter criado um programa livre, que não se submete às pressões dos estados e que não pratica a censura, salvo quando há incitamento à violência. Com recursos que permitem viralizar conteúdos rapidamente, essa será, muito provavelmente, a plataforma predileta dos políticos que quiserem lançar boatos contra adversários ou espalhar teorias conspiratórias para conquistar eleitores.

O Telegram está se mostrando uma plataforma bastante atrativa para a organização de grandes grupos que querem evitar restrições, pois a empresa aparentemente nem sequer atende a pedidos de informação feitos por autoridades. É como se o aplicativo funcionasse em uma dimensão paralela”, diz o advogado Danilo Doneda, professor de direito digital e membro do Conselho Nacional de Proteção de Dados e da Privacidade.

O principal propagandista do Telegram no Brasil é o presidente Jair Bolsonaro. Sua conta oficial foi criada no dia 9 de janeiro. É uma data marcante e ilustrativa das razões que levaram Bolsonaro a avançar para o novo front. Três dias antes, Twitter, Facebook e Instagram baniram o então presidente americano Donald Trump, por entenderem que ele estimulou a invasão ao prédio do Capitólio, em Washington. Para não repetir o ostracismo digital de Trump, Bolsonaro, que ganhou a eleição de 2018 com pouco dinheiro e uma participação ativa nas redes sociais, começou a buscar uma plataforma menos sujeita a “intervenções externas”. Àquela altura, o WhatsApp, uma empresa do Facebook, agora Meta, também estava pedindo a seus usuários que aceitassem uma nova política de privacidade. Apesar de não se tratar de uma mudança substancial, isso levou grupos de extrema-direita a temer a aplicação de regras que cortassem o vínculo com os seus públicos.

Nos onze meses seguintes, Bolsonaro procurou levar o maior número possível de seguidores nas maiores redes sociais para o seu canal no Telegram. Atualmente, a primeira informação que ele traz em seu perfil no Facebook é um convite para o seu canal na plataforma de mensagens. O presidente passou a propagandear constantemente o Telegram. Segundo a consultoria Bites, que monitora os políticos nas redes, o presidente citou a palavra “Telegram” 49 vezes entre janeiro e abril. Depois de maio, o ritmo aumentou e passou a ser de mais de 40 por mês.Esses números mostram claramente que Bolsonaro está promovendo um movimento estruturado de migração de seus seguidores para o Telegram”, diz André Eler, diretor-adjunto da Bites. O esforço obteve resultados. No dia 8 de outubro, Bolsonaro ultrapassou 1 milhão de seguidores na plataforma de Pavel Durov.

O movimento de Bolsonaro não tem paralelo entre os demais pré-candidatos a presidente. Lula tem um canal no Telegram desde junho, mas só começou a fazer propaganda para valer em outubro. Mesmo assim, o petista tem hoje apenas 45 mil seguidores. Ciro Gomes, do PDT, tem menos da metade disso. Todos os outros pré-candidatos estão abaixo desse patamar. O Telegram tem prosperado mesmo é nos setores do bolsonarismo. O deputado Eduardo Bolsonaro, o blogueiro Allan dos Santos e o caminhoneiro Zé Trovão têm mais de 50 mil inscritos cada.

ReproduçãoReproduçãoPavel Durov, o fundador do Telegram: orgulho por não se submeter a pressões
O apelo do Telegram está na sua capacidade de distribuir mensagens a um público vasto, sem qualquer ameaça de censura. No seu início, o aplicativo apenas oferecia a troca de mensagens entre pessoas, nos moldes do WhatsApp, mas, com o tempo, o Telegram passou a disponibilizar alguns recursos que se assemelham aos de uma rede social. O programa não tem o “feed de notícias”, em que o usuário pode visualizar as últimas publicações feitas por amigos, empresas ou outras entidades. Em vez disso, oferece canais e grupos. Para acessar um canal, o usuário precisa fazer uma busca pelo nome da pessoa que quer seguir e então entrar na sua conta, para então poder ver tudo o que ela publica. Nos canais, o número de seguidores que uma pessoa pode ter é infinito. Os usuários também podem criar e participar de grupos com até 200 mil integrantes.

A combinação de canais e grupos é explosiva. Conteúdos publicados por canais frequentemente vão parar nos grupos e recebem centenas ou milhares de comentários. Mensagens contra as vacinas anti-Covid não são bloqueadas por princípio. “No Telegram, as pessoas podem publicamente expressar preocupações razoáveis sobre as vacinas. Os grandes canais do Telegram estão entre os poucos lugares que sobram na internet nos quais os usuários podem levantar suas vozes contra várias medidas contra a Covid, que eles acham que podem ter limitado seus direitos”, escreveu Pavel Durov, em seu próprio canal. Na verdade, ali há espaço garantido para quase tudo. Além de teorias conspiratórias sobre a pandemia, podem ser encontrados facilmente vídeos pornográficos, anúncios de produtos contrabandeados, venda de animais silvestres e assinaturas piratas de plataformas de streaming. Há mais. O grupo terrorista Estado Islâmico, por exemplo, elegeu o Telegram como seu principal veículo de comunicação. Canais foram usados para planejar e executar os atentados em Paris em novembro de 2015, que deixaram 130 mortos. Após uma explosão em uma mesquita xiita no Afeganistão, o grupo usou a plataforma para assumir a autoria do atentado. Quando um dos canais é fechado, o Estado Islâmico usa uma das funcionalidades do aplicativo que permite subir fotos e vídeos em uma nuvem de dados, para transferir o conteúdo para outro canal.

Não bastasse a falta de vontade em controlar o conteúdo, o Telegram praticamente não pede os dados pessoais de seus usuários, o que inviabiliza a responsabilização por possíveis delitos.Não é obrigatório ter uma foto ou um texto de apresentação e os usuários ainda podem esconder o número de telefone. Isso faz com que seja muito complicado alguém descobrir a identidade ou o número de telefone de outro participante”, diz Givi Gigitashvili, que trabalha na unidade de pesquisa sobre desinformação do Digital Forensic Research Lab, o DFRLab, do Atlantic Council. Escondidas pelo anonimato, essas pessoas podem criar grupos sobre qualquer tema e passar a falar com milhares de usuários. Além de seu fundador, nenhum participante de um grupo sabe quem são os outros ou mesmo quem o administra.

Para o bolsonarismo, a dinâmica fluida do Telegram funciona à perfeição. Diversos grupos foram criados sem citar o presidente Jair Bolsonaro — o que torna impossível contá-los. Exemplos são o Tempestade Conservadora e o Jornal da Cidade Online. Outros trazem nomes de personalidades bolsonaristas, como Weintraub 2022 – SP e Paulo Guedes. Esses grupos compartilham propaganda do presidente, fazem ataques a seus adversários e podem ficar ainda mais ativos na campanha. Fazem isso misturando política com diversos outros assuntos. “Em um grupo bolsonarista, é possível encontrar mensagens sobre o Holodomor, a fome que matou milhões de pessoas na Ucrânia nos anos 1930, uma teoria conspiratória sobre vacinas, ataques à maçonaria, frases religiosas, argumentos a favor da intervenção militar no Brasil e elogios a Bolsonaro”, diz Eler, da Bites. “Mais do que uma ideologia política bem definida, o bolsonarismo é um caldo de cultura, com interesses variados. É isso o que sustenta o presidente.”

Os reflexos que o Telegram pode ter na política começaram a ser mais bem estudados nos últimos dois anos. Na Belarus, controlada pelo ditador Alexsander Lukashenko, o canal Nexta, com 2,15 milhões de seguidores, foi central na organização dos protestos contra as fraudes na eleição do ano passado. Na Ucrânia, cinco canais conquistaram influência no partido do governo, o Servos do Povo. Com títulos genéricos, como “O Legítimo” e “Cavaleiro das Trevas”, ou com nomes de políticos, os canais se tornaram fortes instrumentos de pressão sobre deputados e o próprio presidente Vladimir Zelensky. Todos defendiam os interesses russos, sendo que dois deles comprovadamente estavam ligados aos serviços de inteligência do Kremlin. Em 2019, os canais conseguiram fazer com que o presidente Zelensky ordenasse a retirada das tropas do leste do país, deixando o terreno livre para os soldados russos. “O objetivo desses cinco canais era influenciar o Parlamento, os ministros e o presidente. Mas esses canais também foram bem-sucedidos em pautar a mídia tradicional em alguns momentos. Isso aumentou muito a exposição deles e gerou mudanças na opinião pública, reduzindo a aprovação do partido do governo”, diz Roman Osadchuk, também do DFRLab.

Agência BrasilAgência BrasilFernando Francischini teve mandato de deputado estadual cassado
As inovações apresentadas pelo Telegram tornam a missão da Justiça brasileira de evitar abusos na campanha muito mais ingrata. Após três anos investigando os disparos em massa pelo WhatsApp nas eleições de 2018, o Supremo Tribunal Federal entendeu, no mês passado, que não havia provas suficientes para cassar a chapa de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão. Mesmo assim, a corte concluiu, por maioria, que houve disparos em massa organizados e executados pelo chamado Gabinete do Ódio, uma milícia digital, com o objetivo de promover Bolsonaro e atacar seus adversários. Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes, que vai presidir o TSE nas eleições do ano que vem, anunciou que irá prender quem fizer algo parecido em 2022. O STF também entendeu que o envio em massa de conteúdos com desinformação pode configurar abuso de poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação social.

A despeito das dificuldades previsíveis, o TSE já colocou o Telegram na alça de mira. No caso do WhatsApp, as cobranças das autoridades deram certo. Em abril de 2020, a empresa restringiu os compartilhamentos de conteúdo. Mensagens encaminhadas mais de cinco vezes passaram a ser rotuladas com a expressão “frequentemente encaminhadas”. Para as eleições municipais de 2020, o WhatsApp criou um canal para receber denúncias de contas suspeitas de realizar disparos em massa. Mais de mil números de telefone foram banidos. A companhia ainda tem processado empresas que vendiam o serviço de disparos de mensagens. No caso do Telegram, as autoridades sabem que a dificuldade será muito maior. Para começar, localizar os autores das mensagens com inverdades será muito mais complicado.

Para o próximo ano, o TSE pretende endurecer as regras para que as plataformas digitais tenham mais responsabilidade para conter a disseminação de fake news. Em resposta a um pedido feito por Crusoé, o tribunal afirmou que, “a respeito do Telegram, infelizmente não há representação do aplicativo no Brasil. Por isso, as tentativas de contato informal realizadas pelo Programa de Enfrentamento à Desinformação do TSE com o Telegram não tiveram sucesso”. Faz-se aquilo que é possível. A corte tem fechado parcerias com entidades da sociedade civil, instituições de ensino e empresas que realizam pesquisas e monitoramento de grupos públicos, com o objetivo de identificar e responder à desinformação contra o processo eleitoral. Uma parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais, a UFMG, será firmada para monitorar o Telegram. O TSE também quer que influenciadores divulguem conteúdos sobre o processo eleitoral e pretende criar uma rede de enfrentamento à desinformação com vista às eleições 2022. Uma portaria deve criar regras contra os disparos em massa.

A Justiça brasileira também espera demover, com ameaças, os políticos da ideia de fazer disparos em massa. Ministros têm dito que os candidatos que recorrerem a estratégias de desinformação poderão ter seus mandatos cassados.Para um político profissional, a possibilidade de perder o mandato e de ficar inelegível por oito anos realmente pode fazer com que ele evite essas estratégias arriscadas”, diz o advogado Renato Ribeiro de Almeida, professor de direito eleitoral. O precedente foi aberto no dia 28 de outubro, quando o TSE cassou o mandato do deputado estadual bolsonarista Fernando Francischini, do Paraná. Em um vídeo de 2018, Francischini afirmou ter provas de que as urnas eletrônicas tinham sido adulteradas para impedir a vitória de Bolsonaro. Após o anúncio da cassação de Francischini, Bolsonaro comparou a medida a “um estupro” e a considerou “uma violência contra a democracia”.

Enquanto a Justiça se prepara e faz ameaças, Bolsonaro tem publicado entre seis e treze mensagens por dia para seus seguidores no Telegram. O total de inscritos no seu canal segue aumentando. O presidente brasileiro se tornou a segunda maior personalidade da política mundial na plataforma, depois de ter ultrapassado recentemente o presidente iraniano, Ebrahim Raisi. O primeiro é Donald Trump. Como a distância entre Trump e Bolsonaro é de 34 mil seguidores — pouco mais que um Lula no Telegram —, o presidente brasileiro poderá em breve tornar-se o político com mais seguidores no Telegram em todo o planeta. Também nesse front, a eleição de 2022 promete.

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