O juiz de Bolsonaro (e de Gilmar)
Em meio a denúncias contra o governo de Jair Bolsonaro em organismos internacionais pela trágica condução da pandemia, surpreendeu o meio jurídico a recente eleição de um juiz indicado pelo presidente brasileiro para ocupar uma cadeira na Corte Interamericana de Direitos Humanos, encarregada de julgar casos de violação envolvendo países que integram a Organização dos Estados Americanos. O advogado Rodrigo Mudrovitsch foi o mais votado entre os sete candidatos que disputavam quatro vagas no tribunal durante a Assembleia-Geral da OEA, realizada na última semana em Washington. O resultado foi celebrado pelo Itamaraty como “o reconhecimento da atuação da política externa brasileira no sistema interamericano de direitos humanos”. Na prática, porém, a ascensão de Mudrovitsch se deve a uma forte campanha nos bastidores para se descolar do espectro bolsonarista que transformou o Brasil em pária mundial e ao apoio de figuras controversas da cena brasiliense – as mesmas que protagonizam o acordão vigente na capital.
A face mais notória desse triunfo internacional é a do ministro Gilmar Mendes, para quem Mudrovitsch advoga há anos. Foi a pedido de Gilmar que Bolsonaro indicou o jovem advogado para a corte da OEA, em dezembro do ano passado. Ao conceder o passaporte diplomático para que Mudrovitsch pudesse fazer sua campanha, o ex-chanceler Ernesto Araújo destacou como credencial do então candidato patrocinado pelo governo brasileiro o fato de ele ser professor do IDP, a faculdade fundada por Gilmar e hoje comandada pelo filho dele, Francisco Schertel Mendes. Nos agradecimentos da tese de mestrado que defendeu na Universidade de Brasília em 2013, sob orientação do ministro do STF, Mudrovitsch chamou Francisco de “amigo-irmão”. Segundo um ex-colega de turma, foi a amizade com o filho de Gilmar na faculdade que aproximou Mudrovitsch do ministro.
Hoje com 36 anos, Rodrigo Mudrovitsch fez estágio no escritório do ex-procurador da República José Roberto Santoro, amigo de Gilmar e reconhecido advogado de caciques do PSDB, antes de montar seu próprio escritório em Brasília, especializado em Direito Penal Econômico, disciplina que ele leciona no IDP. A banca cresceu nos últimos anos na esteira da Operação Lava Jato, duramente atacada por Gilmar. Mudrovitsch defendeu uma série de alvos da investigação, entre eles a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, absolvida pela Segunda Turma do STF, e o empresário Eike Batista, que foi solto por Gilmar em 2017 e fechou no ano passado um acordo de delação premiada com a Procuradoria-Geral da República. A carreira do advogado não traz grandes experiências na área em que ele atuará na corte da OEA. A “falta de conhecimento” tanto em direitos humanos quanto em direito internacional chegou a ser apontada antes da eleição por uma comissão de juristas independentes que analisa os currículos dos candidatos.
Mudrovitsch compensou as restrições apontadas no seu currículo com uma intensa campanha junto a autoridades dos 24 países votantes. Em setembro, embarcou na comitiva de Bolsonaro que foi a Nova York para participar da Assembleia-Geral da ONU, a fim de vender seu passe. Lá, fez questão de desenvolver uma agenda própria, para não ficar vinculado à desgastada imagem do presidente brasileiro no exterior. Dois meses antes, acompanhou o vice-presidente Hamilton Mourão na posse do presidente socialista do Peru, Pedro Castilho, também para estreitar relações com quem votaria neste mês na assembleia da OEA. Quadros de carreira do Itamaraty não alinhados aos ideais bolsonaristas ajudaram-no a quebrar qualquer estigma que pudesse atrapalhá-lo, destacando que ele era uma indicação do “estado brasileiro” e não do governo Bolsonaro. A estratégia deu certo. Ele recebeu 19 dos 24 votos possíveis.
O peso político também foi jogado nas cartas de apoio que Mudrovitsch apresentou aos colegas estrangeiros, assinadas pelo então presidente do Senado, Davi Alcolumbre, e por dirigentes de uma série de entidades da magistratura, de procuradores da República e, principalmente, da advocacia. Curiosamente, uma delas foi assinada pelo presidente nacional da OAB, Felipe Santa Cruz, o mesmo que quatro meses antes de endossar o indicado de Bolsonaro denunciou o governo dele à corte, por suposta violação de cinco artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos, em razão da “omissão” do Executivo diante do colapso do sistema de saúde ocorrido em Manaus no início deste ano. Pelas regras estabelecidas na corte criada em 1979, Mudrovitsch está impedido de julgar qualquer processo envolvendo o Brasil. Ou seja, não poderá votar neste ou em outros eventuais julgamentos de interesse de Bolsonaro.
Nas causas particulares de Gilmar, Mudrovitsch representou recentemente contra o promotor Daniel Zappia, acusado de assédio processual por ajuizar ações contra o ministro por infrações ambientais nas fazendas da família Mendes em Mato Grosso. Zappia foi punido com suspensão pelo Conselho Nacional do Ministério Público, o CNMP. O advogado também assina processos movidos por Gilmar contra jornalistas. Em junho deste ano, por exemplo, a dupla conseguiu uma vitória no próprio Supremo, quando a Primeira Turma rejeitou um recurso do repórter Rubens Valente contra a ordem que o obrigava a pagar 100 mil reais de indenização ao ministro.
Recentemente, Mudrovitsch se envolveu em outro caso no Supremo que guarda conexão com Gilmar. Em agosto, a banca dele entrou na defesa de uma associação de produtores de soja no julgamento do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. O julgamento, que está suspenso, vai definir se as áreas reservadas aos índios podem ser ampliadas ou devem ser limitadas ao perímetro ocupado à época da promulgação da Constituição, em 1988. Os ruralistas são contra qualquer possibilidade de expansão das terras indígenas, sob o argumento de que a expansão das áreas pode reduzir a capacidade produtiva do agronegócio brasileiro, impactando no preço dos alimentos e até na balança comercial. O cultivo da soja é a principal atividade da GMF Agropecuária, empresa aberta por Gilmar Mendes em 2018, juntamente com dois irmãos e um cunhado, e sediada em Mato Grosso.
No caso do marco temporal, a defesa dos ruralistas feita pela banca de Mudrovitsch também converge com os interesses do presidente Bolsonaro, declaradamente contra a possibilidade de expansão das terras indígenas. O advogado já disse que não atua no caso, tocado por um sócio dele, e que integra um grupo de advogados que já se manifestou contra a tese do marco temporal. No meio especializado brasileiro, o esforço do advogado para se conectar com a temática dos direitos humanos ainda é desconhecido. Questionada por Crusoé sobre a eleição de Mudrovitsch, a diretora da ONG Human Rights Watch no Brasil, Maria Laura Canineu, disse que não poderia fazer nenhum comentário. “Realmente não conhecemos a trajetória dele em direitos humanos”, afirmou. O ex-embaixador Marcos Azambuja, que já foi secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores e hoje é conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, o Cebri, seguiu na mesma toada. Rodrigo Mudrovitsch será o terceiro brasileiro a sentar-se na cadeira de juiz da corte da OEA. O último deles foi o advogado Roberto Caldas, que renunciou em 2018, após ser acusado de violência doméstica pela ex-mulher – ele foi absolvido da acusação em agosto deste ano.
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