Waldemir Barreto/Agência SenadoFelipe Salto: um veterano petista o submeteu a uma sabatina

‘O barco está à deriva’

O economista Felipe Salto, responsável pelo braço do Senado encarregado de monitorar o desempenho das contas públicas, explica por que o populismo eleitoreiro do governo pode arruinar ainda mais o país nos próximos meses
12.11.21

Faz cinco anos que o economista Felipe Salto lidera uma equipe de analistas encarregada de subsidiar o Senado com estudos e projeções sobre os indicadores fiscais e orçamentários do país. É a Instituição Fiscal Independente, criada na esteira das famosas pedaladas que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff. A IFI, como é conhecida, emite sinais de alerta quando o Poder Executivo ou o próprio Legislativo propõem mudanças que colocam as contas públicas em risco.

Em momentos como o atual, quando o governo tenta driblar o teto de gastos públicos para viabilizar o auxílio de 400 reais para cerca de 20 milhões de pessoas em pleno ano eleitoral, o trabalho de Salto ganha ainda mais relevância. Muitas vezes, a ameaça está nos detalhes – discretas linhas contrabandeadas no meio do texto de uma proposta de emenda à Constituição, por exemplo, podem dar base legal para medidas capazes de impactar significativamente a vida dos brasileiros.

Para Felipe Salto, mestre em administração pública e governo, propostas como a PEC dos Precatórios, aprovada em segundo turno nesta semana pela Câmara, põem abaixo a agenda liberal prometida por Jair Bolsonaro e pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, na campanha eleitoral. Medidas desse naipe, diz, ajudam a elevar os juros e a taxa de câmbio e, por consequência, têm reflexo diretamente no bolso dos cidadãos – a escalada do preço dos combustíveis ilustra a tragédia. “Dessa forma, você alça a âncora e deixa o barco à deriva”, afirma. Eis a entrevista:

Qual o risco da PEC dos Precatórios para as contas públicas brasileiras?
O ponto central é que o governo propôs uma PEC para parcelar precatórios e isso se transformou em uma limitação do valor máximo a ser pago aos credores. Isso ainda piorou muito. A alternativa avançou modificando a regra do teto de gastos retroativamente. O objetivo é um só: abrir espaço fiscal no teto de gastos no ano eleitoral, porque os precatórios ficaram com um valor elevado para o Orçamento do ano que vem, de 89,1 bilhões de reais, enquanto o valor anterior era de 57,8 bilhões. A justificativa apresentada é a de que não daria para pagar tudo isso e mais o auxílio necessário para socorrer quem precisa. O fato é que o espaço que será aberto no Orçamento pelas duas medidas vai ser muito maior do que o necessário para pagar o auxílio. Isso alça a principal âncora da política fiscal e gera enorme insegurança no mercado. A consequência é o aumento na taxa de juros, o que impacta negativamente no crescimento da economia e na taxa de câmbio.

Desconsiderar esses aspectos econômicos significa que foi uma decisão eminentemente política?
O governo tem que cuidar das duas coisas: da responsabilidade fiscal e da área social. A regra do teto tem seus problemas e pode ser aprimorada, mas não é o que está acontecendo. Na verdade, é uma mudança oportunista para abrir espaço para gastos de diversas naturezas, como as emendas de relator geral (o chamado orçamento paralelo, usado pelo governo para garantir apoio no Congresso). Essa mudança cria uma folga nas contas superior a 90 bilhões de reais e, pelo cálculo, o Auxílio Brasil de 400 reais vai custar 47 bilhões de reais. O que estamos vendo é uma mudança claramente orientada para abrir espaço fiscal a gastos extras. O diabo mora nos detalhes. Não se trata apenas do auxílio. Se fosse isso, daria para fazer dentro do teto um reajuste de até 30% no auxílio, aumentando o número de famílias beneficiadas. Mas essa mudança, se for consolidada, vai representar o fim do teto de gastos na prática e vai abrir espaço para gastos de baixa qualidade, pulverizados.

Qual é o dano, para as finanças públicas, do processo de terceirização de gastos que o governo Bolsonaro tem promovido, ao deixar uma parte do orçamento a cargo de seus aliados no Congresso, com as emendas de relator?
A emenda de relator geral é um instituto previsto na resolução do Congresso Nacional que trata de Orçamento, baseada na Constituição, que prevê possibilidades de correções, por emendas, de erros ou omissões. Deveria ser apenas e tão somente para isso: corrigir eventuais erros técnicos. Mas de 2019 para cá, a emenda de relator se transformou numa forma de aumentar o Orçamento, cancelando despesa obrigatória ou outras formas de abrir espaço. Isso é muito ruim, porque fere o princípio da transparência, da impessoalidade, que são fundamentais na elaboração de qualquer orçamento público. Só em 2021, esse gasto representará 18,5 bilhões de reais, mais da metade do orçamento do Bolsa Família, e vai ser direcionado para despesas pulverizadas, que não geram efeito econômica relevante. É uma forma ruim de alocar recursos públicos.

O governo Bolsonaro tem flertado com pedaladas fiscais?
A PEC que está em discussão constitucionaliza a contabilidade criativa. É a mudança da regra do jogo, para que os gastos sejam ampliados. Na prática, equivale a descumprir a regra. É o mesmo que aconteceu com a meta de resultado primário entre 2008 e 2014. É um filme conhecido, e é por isso que o mercado precifica dessa forma, aumentando os juros. E os juros mais altos geram todas as consequências sobre a dívida pública, que já começou a aumentar de agosto para setembro, e também sobre as perspectivas de crescimento para o ano que vem. O problema não é mudar a regra. Se tivesse havido uma discussão técnica e não estivéssemos nesse período pré-eleitoral, seria outra história.

Jefferson Rudy/Agência SenadoJefferson Rudy/Agência Senado“A PEC que está em discussão constitucionaliza a contabilidade criativa”
A partir de que momento a economia brasileira ficou à deriva?
A economia e as contas públicas caminham de mãos dadas. Quando se perde a credibilidade na política fiscal, são várias as consequências. Talvez a maior sinalização de que o teto de fato vai ser abandonado tenha sido a decisão de enviar a PEC 23 para parcelar os precatórios. Ali ficou claro de que havia a disposição do governo em fazer mudanças estruturais e em uma despesa sujeita ao teto, para abrir espaço fiscal. Foi um ponto de inflexão. Mas a própria PEC Emergencial (que permitiu ao governo pagar o auxílio emergencial na pandemia), em março deste ano, já veio com diversos problemas. Nós mostramos isso à época. Foi um erro, mas não era um sinal de abandono do teto. Essa PEC dos Precatórios é diferente, é um ataque frontal à regra do teto, que, bem ou mal, funcionava como uma âncora fiscal. Dessa forma, você alça a âncora e deixa o barco à deriva.

O que prever para o Brasil no ano eleitoral, em que os dois principais candidatos, Bolsonaro e Lula, preferem práticas populistas à responsabilidade fiscal?
Teremos custos maiores, o que traz um benefício que é rapidamente corroído pelo efeito nos juros, que provocam um crescimento menor. Essa redução no crescimento do ano que vem, que provavelmente será muito baixo, vai representar menor geração de emprego e renda. Isso vai afetar diretamente a vida das pessoas, sobretudo daquelas que dependem mais do estado. Então, você dá com uma mão e tira com a outra. Quando se promove aumento de gastos por meio de mudanças não planejadas que abalam a responsabilidade fiscal, o tiro acaba saindo pela culatra. O ideal é que os gastos sociais fossem sendo feitos dentro das regras do jogo. Como isso está caminhando para não acontecer, nós estamos caminhando para um cenário de maior risco. Quem tem poupança para financiar o estado brasileiro é o mercado. E quando ele percebe que o estado está caminhando por uma trilha mais arriscada, ele cobra mais juros para financiar a dívida do governo. Esse juro mais alto eleva a própria dívida e derruba o crédito, o consumo e o investimento. Lá na ponta, provavelmente, a gente vai ter uma economia e uma geração de empregos e de renda pior em 2022.

Como o mercado tem reagido ao enfraquecimento do ministro da Economia, Paulo Guedes?
A gente pode avaliar o mercado por meio dos preços: a taxa de juros, a taxa de câmbio e a expectativa de inflação. Todas elas estão piorando. Os juros futuros estão muito mais altos, a taxa de câmbio está com uma volatilidade enorme, um sobe e desce que prejudica as exportações, além de afetar a inflação, porque o câmbio mais alto tem efeito na inflação doméstica.

Nessa polêmica envolvendo a escalada dos preços dos combustíveis, Bolsonaro responsabiliza as alíquotas do ICMS cobrado pelos governos estaduais, enquanto os governadores responsabilizam a instabilidade criada pelo próprio presidente. Quem tem razão?
O preço agora está refletindo a instabilidade do câmbio. Tentar corrigir isso com medidas na área tributária é um equívoco. O câmbio está muito alto e isso está rebatendo no preço. E o câmbio está alto por causa dos erros de política econômica, sobretudo a fiscal. Enquanto isso não mudar, os preços vão continuar pressionados.

Marcos Oliveira/Agência SenadoMarcos Oliveira/Agência Senado“A gente vai ter uma economia e uma geração de empregos pior em 2022”
Por que o governo tem tanta dificuldade para tirar do papel o plano de privatizações?
A privatização ou a concessão são instrumentos que o estado tem e que devem ser usados quando for economicamente racional fazê-lo. Privatização nem sempre é bom. O ideal é que o mercado opere naquilo que ele é mais eficiente. O estado não precisa ser produtor ou fornecedor de determinados bens e serviços. Se ele puder privatizar, com uma boa regulação, isso pode ser bom tanto do ponto de vista fiscal, quanto do ponto de vista da geração daquele serviço. Agora, como solução para o problema fiscal, eu não vejo que essa é a melhor saída. O estado tem problema de fluxo, ele é deficitário. Isso que precisa ser corrigido para que a dívida pare de crescer.

O governo conseguiu aprovar a reforma da Previdência, mas patina para fazer avançar as reformas tributária e administrativa. Qual reforma é primordial para corrigir os desequilíbrios?
A reforma da Previdência já está produzindo um efeito importante que já se verifica na dinâmica dos gastos previdenciários. As outras reformas também precisam avançar, mas depende de qual reforma. Reformar para quê? A reforma administrativa, por exemplo, vai deixar o estado mais racional, melhorar a estruturação das carreiras, garantir que os serviços públicos sejam ofertados de maneira mais eficiente e menos custosa? A reforma que está em tramitação não faz isso. Então, preocupa que ela avance, porque pode piorar a situação. E a reforma tributária? É para aumentar a arrecadação, simplificar, mudar a tributação dos impostos indiretos ou para mudar o Imposto de Renda? A falta de planejamento e de norte dificulta que essas coisas andem, porque, dentro de cada um desses temas, há vários caminhos a ser seguidos. Caminhos que podem, sim, melhor a situação econômica do país, mas podem também piorar.

Da forma como estão, as mudanças no Imposto de Renda promovem mais justiça fiscal?
Não. A reforma do Imposto de Renda, da forma como saiu da Câmara, poderia gerar um rombo na arrecadação de 15 a 20 bilhões de reais em 2023. Era para ser uma reforma para criar fontes adicionais de financiamento de gastos, com a tributação da distribuição de lucros e dividendos, mas, por outros tópicos que ela contém, acabará sendo negativa. Nós precisamos ter um sistema de cobrança mais progressivo e, de preferência, que arrecade mais e não menos como está sendo proposto. No caso dos lucros e dividendos, por exemplo, o texto que saiu da Câmara isenta as empresas do Simples Nacional e as que faturam até 4,8 milhões de reais. Ou seja, cria uma série de exceções.

Adriano Vizoni/FolhapressAdriano Vizoni/Folhapress“Não adianta ter só regras. É preciso ter o espírito da responsabilidade fiscal”
Como o sr. explicaria o complexo sistema tributário brasileiro para um economista estrangeiro?
Olha, o estado brasileiro é pautado por uma Constituição que preconiza o estado grande. Se não se entender isso, não se entende o Brasil. O papel dos economistas é colaborar para que isso seja feito de maneira eficiente. Por exemplo: a Constituição prevê um sistema de saúde integral e universal. O que nós podemos dizer é como financiar isso da melhor forma, como fazer esse gasto, como o estado deve estar estruturado para oferecer o melhor serviço possível na ponta. O que acontece é que a desorganização das contas públicas é muito grande. A gente teve avanços desde os anos 1980, com a criação da Secretaria do Tesouro Nacional, a renegociação das dívidas dos estados, o saneamento dos bancos públicos, a Lei de Responsabilidade Fiscal e, mais recentemente, o teto de gastos. Agora, não adianta ter só regras. É precisa ter o espírito da responsabilidade fiscal, e o país ainda não tem isso amadurecido. Quando há um governo que não tem planejamento claro e está orientado para questões de curtíssimo prazo, como é o caso agora, nós podemos ter um retrocesso muito grande. Temos, porém, uma situação no balanço de pagamentos das contas externas que é muito melhor do que em outras crises que nós tivemos, como há 30 anos. É isso que nos dá uma certa garantia de que o risco de insolvência do estado está mais afastado. Não fosse isso, nós estaríamos num quadro bem pior.

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