MarioSabino

Curta nas mangas

12.11.21

Em 1987, fui a trabalho à Feira de Frankfurt, a maior feira literária do mundo, que acontece anualmente. Lá se reúnem editores, agentes literários e, com alguma sorte, bons autores. A lembrança mais viva dessa viagem é a de um editor português. Não recordo o nome, mas a sua figura permanece indelével. Ele não usava um pince-nez, mas era como se usasse. Aos meus olhos, era — e permanece como tal — uma figura empoeirada. A poeira assentou-se de vez sobre ele quando começamos a conversar.

Portugal aderira havia pouco à hoje União Europeia, e me pareceu natural abordar o assunto em nosso diálogo até então amigável.

— Imagino que os portugueses estejam muito com contentes com a entrada do país na Comunidade Europeia.

— O senhor deve estar a brincar.

— …

— Trata-se de uma desgraça.

— Como assim?

— Nos tornaremos definitivamente um balneário de alemães, ingleses e franceses. Seremos colonizados.

— Quisera eu que o Brasil tivesse a mesma sorte.

— O senhor não vê que é uma parvoíce?

— Portugal vai receber bilhões em investimentos.

— O que são bilhões diante da perda de soberania e identidade?

Como estava perdendo meu tempo, embora muito tempo me sobrasse naquele tempo, inventei uma desculpa e caí fora.

Na época, Portugal não tinha nem autoestrada digna desse nome que ligasse Lisboa a O Porto, a segunda maior cidade do país. Era um país que exportava mão de obra barata para os vizinhos ricos da Europa, principalmente para a França. Pobrezinho, coitado, mas pródigo em figuras empoeiradas como o editor de pince-nez sem pince-nez, naquele tipo de relação em que não se sabe ao certo o que é causa e consequência. Ainda lhe cabia a definição do João da Ega, o personagem memorável de Eça de Queiros, do romance Os Maias, a quem o autor descreveu como “o maior ateu, o maior demagogo que jamais aparecera nas sociedades humanas”. Em determinado momento do livro, João da Ega diz:

“Enfim, se não aparecerem mulheres, importam-se, que é em Portugal para tudo o recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciência, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima, com os direitos de alfândega, e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas…”

Quase 35 anos depois, temos aí um Portugal rico — de uma riqueza discreta, mas sempre riqueza —, que é mais do que destino de alemães, ingleses e franceses. É polo tecnológico dos mais inovadores da Europa. A televisão continua ruinzinha, é verdade, abaixo da média já bem baixa de outros países, mas isso está longe de ser marcador significativo de progresso. Talvez seja até o contrário, pensando bem.

Agora, cabe aos brasileiros que os visitam relembrar aos portugueses os tempos nos quais a civilização lhes ficava curta nas mangas. Estão a importar eventos com figuras empoeiradas que nos mantêm no atraso em leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciência, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias.

Preciso comprar um pince-nez.

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