RuyGoiaba

A indignação como performance

12.11.21

Começo esta coluna declarando desde já meu lugar de fala: sou gordo, “luto contra a balança” toda semana e geralmente perco, mais ou menos como o São Paulo, meu time, no Brasileirão (aliás, existe alguma situação em que “lutar contra a balança” não seja clichê? Deve haver gente que luta: arremessa a balança contra a parede, chuta longe etc., mas ela se recusa a cooperar. Como dizia Amy Winehouse sobre o amor, it’s a losing game. Mas divago, desculpem.)

Vocês já devem ter adivinhado que esse parágrafo serve de preâmbulo à polêmica que se seguiu à trágica morte de Marília Mendonça, aos 26 anos, em um acidente aéreo na sexta-feira passada (5). Num texto longo e elogioso sobre a carreira da cantora e compositora, o historiador Gustavo Alonso, colunista da Folha, cometeu o pecado de escrever que “seu visual também não era dos mais atraentes para o mercado da música sertaneja” e que ela era “gordinha e brigava com a balança”. Uma das pessoas indignadas que habitam o Twitter postou as frases fora do contexto e pronto: o mundo veio abaixo, numa reação que —sejamos justos — também teve muito a ver com a comoção gerada pela tragédia.

Como de costume, a Folha aproveitou para estimular seu esporte preferido: a rinha de colunistas, tradição do jornal no mínimo desde que Paulo Francis e Caio Túlio Costa se engalfinharam verbalmente, no início dos anos 90 (é verdade que a qualidade das rinhas piorou muito desde então, mas deixemos isso para lá). Polemistas de redes sociais subiram no caixotinho para decretar que, se fosse uma celebridade do sexo masculino, “jamais falariam do peso” — e então, confrontados com os obituários de gente como Elvis Presley, John Belushi e Tim Maia (todos com referências ao peso deles: o do New York Times sobre o comediante Belushi o chama de “rotundo” na primeiríssima frase), fizeram o que em inglês se chama to move the goalposts (mover as traves) e passaram a argumentar que os tempos eram outros, hoje não se pode fazer mais isso etc.

Dois pontos: é absolutamente óbvio que a “gordofobia” e as pressões estéticas afetam muito mais as mulheres que os homens, e também é evidente para mim que Alonso poderia ter tratado o assunto com mais delicadeza em seu texto — é o tipo de coisa que um bom editor resolveria, naquela remota época em que eles ainda existiam. Mas como contar a história de Marília sem falar disso? Ela de fato se esforçou muito para emagrecer, fez dietas e cirurgias, compartilhava os bons resultados nas redes (e também lhe enchiam o saco por ter “cedido à pressão do mercado”; como na fábula O Velho, o Menino e o Burro, nunca nada está bom para a maldita “opinião pública”). Omitir a questão do peso é inclusive diminuir a dimensão da carreira vitoriosa da cantora, que se impôs e levou o feminejo a um enorme sucesso num meio especialmente machista e cioso da aparência física.

Nenhuma dessas ponderações parece conter os indignados das redes, que nesta semana se empenharam em outra “polêmica” (entre aspas e muito menor): Sarah Maslin, correspondente da Economist no Bananão, se disse horrorizada com o machismo dos veículos brasileiros em chamar a ministra Rosa Weber, do STF, de “Rosa” em títulos ou segundas menções, em vez de tratá-la pelo sobrenome.

Dessa vez, pelo menos, muita gente tentou argumentar que o mesmo Supremo tem — ou teve — ministros homens que são “Gilmar” e “Marco Aurélio” em segunda menção (sem contar Cármen Lúcia, que prefere não usar nenhum de seus sobrenomes, Antunes Rocha). Que nossos jogadores de futebol atendem por Romário, Ronaldo e Neymar, em vez dos seus sobrenomes (como Maradona, Zidane ou Messi). Ou que muitos presidentes brasileiros eram chamados pelo primeiro nome — de Deodoro e Floriano a Itamar, passando por Jânio —, não apenas Dilma. Enfim, que é muito mais um traço da cultura brasileira do que “machismo”: seria ridículo chamar Lula de “sr. Da Silva”, como fazem o NYT e a Economist, porque ninguém aqui no Brasil faria a menor ideia de quem se trata.

Não tenho lugar de fala aí, já que sou PCP (pessoa com pênis), mas suspeito que brigar contra o machismo em lugares onde ele geralmente não está seja bastante inútil se a intenção for enfrentar o problema real. Eis meu ponto: muita gente não quer resolver os problemas reais, coisa que leva tempo — talvez gerações — e dá trabalho. Quer se sentir pura apontando o dedo para os demais pecadores, coisa tão antiga quanto o ser humano, mas potencializada pelas redes. Não é só o que chamam de “sinalização de virtude”: é a indignação como performance. Fora, nos piores casos, a gostosura que é participar de um linchamento virtual, que pode ter consequências sérias na vida real das pessoas, sem sair do sofá nem sujar as mãos — se você der sorte de estar do lado linchante, é claro.

Como acredito que nem as redes sociais nem o ser humano vão melhorar algum dia (Paulo Mendes Campos: “antigamente as coisas eram piores, depois foram piorando”), registro apenas que vocês estão autorizados a dizer no meu obituário que Ruy Goiaba “lutava contra a balança”, além de ser lindo, gostoso e genial. Só advirto que essa descrição não pode ser vendida separadamente, ou meu fantasma — finalmente magro — vai aparecer para puxar o pé de vocês à noite.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Hoje a goiabice é importada, aquela burrice com gostinho de ultraprocessado que só uma potência como os Euá pode nos proporcionar. Garibaldo, o pássaro amarelo da Vila Sésamo (Big Bird para os americanos), anunciou em suas redes sociais que havia “tomado” a vacina contra a Covid. Foi o que bastou para o senador republicano Ted Cruz atacar a “propaganda do governo para seu filho de 5 anos” e a senadora estadual Wendy Rogers, também republicana, acusar (a sério) Garibaldo de ser um comunista. Aguardem, que logo vai aparecer algum bolsoafetivo importando essa cretinice com os habituais meses de atraso.

Leonardo Wen/FolhapressLeonardo Wen/FolhapressGaribaldo (de amarelo), o perigoso comunista que perverte as crianças dos EUA

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  1. HAHAHAHA! Sempre engraçado. Agora não duvido mesmo que os bolsos importem mais essa. De original não têm nem a cor de cabelo.

  2. Não precisamos de redes sociais. O mundo viveria melhor sem essas porcarias que só escancaram a imundice humana, que antes ficavam hibernando no íntimo de cada um!

  3. Cancelamento e politicamente correto, (não sei se pode separar os dois) não passa da perversa e canalha CENSURA.

  4. O "pobrema" hoje em dia (anacronismos diriam que isso é balela), são as perdas internacionais (reais), as nacionais geram muito calor e pouca luz e somente aumentam a sensação de que tudo se resume em 15 minutos de fama, e que tudo que é sólido se desmancha no ar... obs.: na época da tinha entre PF e CTC o entregador de jornal me sacaneou e não pude ler os finalmente da briga homérica...por isso hoje a FSP só leio quando algum incauto a cita em seus textos...

  5. Também sou um PCP e quero declarar 2 coisas: a patrulha do politicamente correta é uma m3rda e fantasmas não são magros, são só leves

  6. Einstein: "Duas coisas são infinitas, o Universo e a estupidez humana, mas em relação ao Universo ainda não tenho certeza absoluta".

  7. Meu Deus! Que o Twitter, a Folha e esse povo insuportávelmente chato desapareçam e nos deixem em paz🙄 Não aguento mais a militância insuportável. A propósito, também tenho "um lugar de fala": Sou gorda.

  8. Lute contra a balança, dentro do possível, para evitar a diabetes, não se esquecendo que tão bom quanto ser lindo, gostoso e genial é ser, ainda, um amante profissional. Colaborar para a alegria do próximo é bom demais. Rs!

  9. Otimo, sob todos os aspectos, sobretudo a citação e a lembrança, sem saudosismo melados, de pessoas que merecem ser citados. Sempre. Quanto ao Garibaldo, ele é a cara dos U$A e contraponto dos rançosos e rancorosos direitistas dos U$A.

    1. Não. Pelo menos desde os anos 70, ele já era amarelo e participou muito da minha infância 😊

  10. Humm... Esse Ruy Goiaba, além de ume deplorávee pessoe com pênis, deve ser um agente comunista. Por isso é que está aqui na Crusoé, essa Pravda tupiniquim...

  11. Homens também sofrem preconceito. Homem gordo tem que ter graça, fazer graça, caso contrário é apenas um desleixado. As mulheres no mundo artístico, principalmente no mercado brasileiro tem que iniciar chamando a atenção, geralmente ao corpo. A competência da Marília deve ter sido absurda para ela chegar onde chegou estando à margem dos padrões.

  12. Crusoé é única revista brasileira que tem uma sessão que se possa chamar de HUMOR. Goiaba é refinado, da estirpe de um Millôr.

    1. Perfeito. O genial Millôr certamente leria, com gosto, os primorosos textos do Goiaba.

    1. O dilema da goiaba. Se for branca a gente come com o bicho; vermelha, a gente joga fora- coisa mais besta, sô

    2. Tantos artigos tóxicos, mesmo aqui na Crusoe, somos redimidos e salvos pela goiabice semanal. Vamos rir porque demais artigos é para chorar. Parabéns goiaba !!!

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