Reprodução/JusTocantinsA desembargadora Maria do Carmo, chamada de "Tia Carminha" por Flávio Bolsonaro: advogado próximo pediu e foi atendido

Intimidade perigosa

Mensagens expõem a proximidade entre a desembargadora federal que suspendeu um importante inquérito sobre desvios no Ministério da Saúde e o advogado que obteve a decisão
05.11.21

Na tarde do último dia 28, véspera do feriado prolongado, a desembargadora Maria do Carmo Cardoso, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, suspendeu um inquérito da Polícia Federal que investigava mais uma suspeita de corrupção envolvendo o dono da Precisa Medicamentos, empresa tragada no escândalo das vacinas. Ela acolheu um habeas corpus apresentado pela defesa do empresário Francisco Maximiano contra a Operação Pés de Barro, deflagrada em setembro para apurar um suposto desvio de quase 20 milhões de reais na compra de remédios para doenças raras feita pelo Ministério da Saúde, em 2017, na gestão do ex-ministro Ricardo Barros. A magistrada concordou com o argumento de que o atual líder do governo na Câmara “pode ser atingido” pela investigação e, por isso, o inquérito deveria tramitar no Supremo Tribunal Federal, por causa do foro privilegiado do deputado, e não na Justiça Federal de Brasília. A tese ainda será julgada no TRF-1. Enquanto isso não acontece, tudo fica suspenso, graças à liminar de Carminha, como a desembargadora é conhecida.

Até aí, parece reprise de vários outros processos recentemente trancados ou até anulados por causa da chamada “usurpação da competência” do STF. Ocorre que no habeas corpus da Precisa há um componente adicional que expõe a relação heterodoxa entre a desembargadora que deu a decisão monocrática e o advogado que fez o pedido em nome da empresa de Maximiano. Mensagens de WhatsApp trocadas por uma das filhas de Carminha com Ticiano Figueiredo, defensor da Precisa, revelam uma proximidade entre ambos que foge da liturgia da magistratura. O material faz parte de um amplo arquivo entregue em 2017 à Procuradoria-Geral da República pelo ex-marido da advogada Renata Prado de Araújo, filha da desembargadora Carminha e amiga do advogado Ticiano. O acervo foi levado aos investigadores por conter amostras da intimidade de Renata com ministros do Superior Tribunal de Justiça, o STJ e dos expedientes usados por ela para defender em Brasília a notória JBS dos irmãos Joesley e Wesley Batista – a advogada recebeu 3,8 milhões de reais em honorários do frigorífico. A parte da investigação envolvendo ministros da corte superior foi arquivada pelo Supremo.

Parte desse arquivo, as mensagens de WhatsApp que Crusoé revela agora mostram que Ticiano Figueiredo, o autor do pedido que levou a desembargadora Carminha a suspender a investigação sobre a Precisa Medicamentos, é próximo da família – e goza de uma boa relação com a própria magistrada. A proximidade fica evidente em conversas mantidas entre ele e Renata, em 2017. Em uma delas, a filha de Carminha combina com ele um café da manhã na casa da desembargadora em um sábado, para discutir um assunto de interesse da família. Renata diz que a própria Carminha gostaria de participar: “Ela queria conversar com vc (sic)”“Quer tomar um café lá na casa dela?”, sugeriu a filha da magistrada. “Ótimo!”, concordou Ticiano, que à época defendia Renata em um processo na Justiça de Brasília. A advogada diz que a família providenciaria um café da manhã especial, adaptado às restrições alimentares do convidado: “Bolo e queijos sem lactose”.

Na véspera, o advogado envia uma nova mensagem a Renata para confirmar o encontro e deixa explícita a intimidade com a desembargadora, que ingressou no TRF-1 há 20 anos, em uma das vagas destinadas a advogados. “Xuxu. Amanhã 8:30 na casa da minha desembargadora preferida?”, diz ele. A filha de Carminha responde: “Combinado amigo”. Dez dias depois, a desembargadora adicionou Ticiano no Instagram. “Mccsoares no Instagram, vc sabe quem é? Me adicionou mas não tem foto e é amigo de amigos nosso em comum”, perguntou Ticiano para a filha da desembargadora. “É minha mãe Tici! Kkkkkk”, respondeu Renata. Carminha é assídua nas redes sociais e o advogado da Precisa não é seu único amigo virtual – e real – que figurou nas sessões da CPI da Covid no Senado nos últimos meses, rebatendo as acusações de fraude na compra bilionária da vacina indiana Covaxin. Procurados por Crusoé, nenhum dos três se manifestou sobre as mensagens.

Desde o início do atual governo, a magistrada estreitou relações com o clã presidencial e virou amiga do senador Flávio Bolsonaro. No ano passado, Carminha chegou a criticar duramente o então ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, ao comentar uma postagem do filho 01 do presidente. Flávio havia reproduzido uma carta do general Augusto Heleno na qual o chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência falava em “consequências imprevisíveis”, caso o decano mandasse apreender o celular de Jair Bolsonaro no inquérito que apura as suspeitas de interferência política na Polícia Federal. “É o mesmo que rasgar a Constituição da República! Estou, deveras, estarrecida com a postura do ‘decano’”, escreveu Carminha, que foi uma das patrocinadoras do nome de Kassio Marques, seu ex-colega de TRF-1, para a vaga de Celso de Mello no STF, junto ao clã Bolsonaro.

Um dos principais articuladores da escolha de Kassio é Frederick Wassef, advogado de Flávio e do próprio presidente, e amigo da filha da desembargadora. Recentemente, Wassef também foi beneficiado por uma decisão de Carminha no TRF-1, pela anulação do relatório do Coaf que apontou transações financeiras suspeitas nas contas do advogado, como revelou Crusoé no ano passado. Entre os repasses atípicos estavam pagamentos milionários feitos pela JBS, empresa com a qual a desembargadora também já manteve relações pouco republicanas. Em 2016, Carminha usou o e-mail institucional do tribunal para pedir um emprego ao então diretor jurídico do frigorífico, Francisco Assis – responsável por contratar Renata, filha dela, como advogada do frigorífico em processos que corriam em Brasília. A mensagem foi parar numa auditoria contratada pela J&F, a holding da JBS, após a prisão dos irmãos Batista na Lava Jato.

Jefferson Rudy/Agência SenadoJefferson Rudy/Agência SenadoTiciano Figueiredo (à esq.) com Maximiano na CPI: investigação suspensa
Hoje, a desembargadora integra a 3ª Turma do TRF-1, que julga as ações criminais que chegam ao tribunal. Um de seus pares no colegiado é o desembargador Ney Bello, o mesmo que enterrou a investigação de Wassef no ano passado e com quem Carminha tem uma dívida de gratidão. Foi Bello, amigo do ministro Gilmar Mendes, quem concedeu uma liminar a Renata, há cerca de dois anos, declarando como provas ilícitas todas as mensagens, áudios e e-mails que foram enviados às autoridades pelo ex-marido dela – incluindo os diálogos com o advogado Ticiano Figueiredo. Em Brasília, os enredos se repetem, e quase sempre param no mesmo lugar.

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