MarioSabino

Anuário Estatístico do Brasil

05.11.21

Conheci Rubem Braga em meados da década de 1980, uns cinco anos antes de ele morrer. Eu trabalhava na editora Scipione, onde criei uma coleção de livros juvenis que sobrevive até hoje, a série Diálogo, da qual retiraram o meu nome dos créditos, depois que deixei de trabalhar lá — o tipo de coisa que só acontece comigo, acho, o que faz me sentir um precursor da cultura do cancelamento. Rubem Braga era autor de outra série, a Reencontro, que oferecia adaptações de clássicos da literatura. Não me lembro das circunstâncias específicas que nos levaram a ter contato. Talvez eu estivesse incumbido de editar uma adaptação feita por ele, já não me lembro. Fato é que o conheci.

Rubem Braga era um sujeito meio mal-humorado, ao contrário de Paulo Mendes Campos, de quem já falei aqui na Crusoé. Como eu também era meio mal-humorado na juventude, a conexão foi imediata. Quando ele vinha à editora, em São Paulo, sentava-se à minha frente e conversávamos por monossílabos. Numa dessas conversas prolíficas, ele me perguntou se eu não conhecia alguém que pudesse interessar-se em comprar a sua coleção do Anuário Estatístico do Brasil.

— Tenho desde os primeiros volumes.

— Completa?

— Até a década de 60.

— Incompleta.

— Mas acho que vale um bom dinheiro.

Achei que ele ia esquecer essa história, mas não. Passou a me ligar toda semana, para saber seu eu havia encontrado um comprador para a sua coleção.

— Venha dar uma olhada.

— Você quer que eu vá ao Rio, para eu ver os livros?

— Sim, estão perfeitos, você poderá constatar.

— Não duvido.

— Faço questão.

Peguei a ponte aérea, para fazer um bate-volta. Rubem Braga morava numa pequena cobertura na Barão da Torre, em Ipanema, perto do Morro do Cantagalo. O apartamento tinha uma varanda com vista para o mar ao longe e um mezanino onde ele mantinha a sua biblioteca. Lá estava a coleção do Anuário Estatístico do Brasil.

— Está em ótimo estado, como você vê.

— Quanto você quer por ela?

Rubem Braga citou uma cifra na moeda corrente brasileira de quase 40 anos atrás, mas ela me pareceu extorsiva.

— É muito, Rubem.

— É uma raridade, Sabino.

Não era raridade coisa nenhuma. Eu trabalhava perto da Praça da Sé e, um dia antes de viajar ao Rio, constatei que nos sebos próximos havia quilos daquela coleção. Mas fiquei com pena de dizer isso a ele, tal qual um avaliador se apieda da velha senhora que vai ao penhor para tentar passar nos cobres a joia que pensava ser valiosa — e que era apenas uma bijuteria, como o amor do homem que lhe havia dado o presente.

— Vou tentar vender a coleção para uma instituição, o que você acha?

— Desde que paguem o preço justo, tudo bem.

— Quem sabe.

— Venha aqui, quero lhe mostrar uma coisa.

Pensei com algum desassossego que Rubem Braga ia me mostrar outra coleção à venda, mas atrás da porta para onde nos dirigimos havia um quartinho com uma janela. Era a janela que ele queria me mostrar. Dava para dentro da favela do morro do Cantagalo. Dentro mesmo. Fiquei impressionado.

— É como se você morasse na própria favela.

— Moro em dois mundos.

— Eu diria que a sua casa é a encarnação do Anuário Estatístico do Brasil.

Na volta a São Paulo, procurei universidades. Tentei vender a coleção dizendo que não se tratava de um Anuário Estatístico do Brasil qualquer, mas do Anuário Estatístico do Brasil de Rubem Braga. Nem como doação quiseram aceitar.

— Não consegui fazer negócio, Rubem, sinto muito.

— Vou jogar fora.

Não sei qual foi o destino do Anuário Estatístico do Brasil que ele meticulosamente colecionara durante décadas. Mas o mau humor de Rubem Braga piorou sensivelmente depois do nosso fracasso comercial. Dali a pouco, aconteceu a Bienal do Livro de São Paulo, onde foi lançada uma adaptação que fez para a série Reencontro. Ficamos ele e eu sentados a uma mesinha colocada na entrada do stand da editora, esperando que um visitante comprasse o livro e lhe pedisse uma dedicatória. Foi outro fracasso. Uma das minhas colegas de trabalho disse que as nossas caras fechadas afugentaram compradores. Acho que não. Acho que Rubem Braga já tinha se tornado, ele também, uma coleção datada, num país que se esquece de si mesmo, sem nunca se ter conhecido de verdade.

Nunca mais nos vimos.

Quando ele morreu, em 1990, eu já tinha voltado ao jornalismo. Peguei para ler uma das suas crônicas mais pungentes, que fala de uma despedida de dois amantes. É provável que ele a tenha escrito pensando na atriz Tônia Carrero, a sua grande paixão:

“E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perde da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para o seu lado — sem glória nem humilhação.”

Anuário Estatístico do Brasil.

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