MarioSabino

Eu tive um sonho

29.10.21

Era uma vez um jovem operador que, na mesa de um grande banco de investimentos, mostrou tino extraordinário na compra e venda de ativos. Ambicioso acima da média de ambição já muito alta na profissão, ele juntou-se a outro colega, e a outro, e a outro, para derrubar os patrões e tomar o controle do banco. Objetivo alcançado, o ex-operador de mesa, agora banqueiro, começou a se livrar de todos os colegas que o haviam ajudado a derrubar os patrões — e ficou dono do pedaço inteiro.

O agora banqueiro percebeu, então, que o maior negócio que ele poderia fazer na vida era aproximar-se de poderosos da política — e auxiliá-los nos seus projetos de poder e de enriquecimento ilícito. Em troca, ele se regalaria com bons nacos de empresas estatais e, principalmente, se beneficiaria de informações privilegiadas que fariam o seu banco bombar no mercado de juros futuros, câmbio e ações.

O novo amigo dos poderosos da política começou, então, a saber antecipadamente se a taxa básica de juros subiria ou baixaria, se a moeda nacional se valorizaria ou desvalorizaria frente ao dólar, bem como outros movimentos do governo que poderiam repercutir no seu terreiro cada vez maior. Uma tremenda vantagem competitiva em relação aos concorrentes que continuavam a operar dentro dos larguíssimos limites das regras que regem o mercado financeiro no país — mas que não eram largos o suficiente para ele, o agora banqueiro e novo amigo dos poderosos da política.

Em momentos capitais (e bota capitais nisso), ao mandar que os seus operadores comprassem ou vendessem qualquer ativo, com base nas informações que recebia antecipadamente, o banqueiro (agora sem o advérbio agora) sentia-se tão imune à lei, tão protegido pelos seus amigos da política, que justificava as suas ordens aos subordinados — dadas com horas de antecedência em relação aos anúncios governamentais — com a seguinte frase sorridente: “Eu tive um sonho”.

Quando uma marola de moralidade avançou sobre o sistema político, ele também foi pego. Mas, graças aos amigos que fez igualmente no Poder Judiciário, acabou solto. O sistema concluiu que era preciso tomar providências para evitar que uma segunda marola pudesse atrapalhar os negócios. Um outro sujeito que atua no mesmo ramo do banqueiro, já metido com espionagem, teve uma ideia bárbara em mais de um sentido: que tal hackear os celulares dos responsáveis pela marola e, com base nas conversas, construir uma narrativa que os deslegitimasse? A ideia foi bem recebida — e muitíssimo bem executada. Tanto é que a culpa inteira acabou recaindo sobre os hackers chulés que foram usados à devida distância para perpetrar o crime que compensou.

E tudo voltou à anormalidade anormal, com o banqueiro continuamente abastecido com informações privilegiadas do governo — não importa o governo –, mas não só. Ele passou a orientar a política monetária, o que é ainda melhor.

Qualquer semelhança com a realidade é coincidência. O relato acima é inteiramente ficcional. Eu tive um sonho e o transcrevi como artigo.

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