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Sintoma de fraqueza extrema

O impasse em torno da indicação de André Mendonça ao STF revela um presidente cada vez mais refém dos blocos fisiológicos que o sustentam – agora, a disputa é travada entre o Centrão e os evangélicos
15.10.21

Não é a primeira vez que Jair Bolsonaro sente os efeitos da completa rendição do governo à miríade de interesses dos blocos fisiológicos que o sustentam. Mas, certamente, o que tem acontecido nos últimos dias e ainda deve se arrastar pelos próximos é a face mais visível dessa condição de refém de um presidente que topou pagar um preço alto para permanecer agarrado à cadeira até o fim do mandato.

Nesta sexta-feira, 15, a indicação do ex-chefe da Advocacia-Geral da União André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal completa 93 dias. O processo, ainda pendente da quase sempre protocolar sabatina pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, tem se tornado um duplo e quase inédito constrangimento. Para o governo – e para o presidente, em particular –, por escancarar a completa incapacidade de mobilizar sua base de apoio para aprovar o nome de Mendonça. Para o próprio indicado, pela vergonha: temendo ser rejeitado, ele transformou a ascensão à vaga em uma comovente saga pessoal, exposta em sermões em igrejas de Brasília, como mostrou Crusoé em reportagem recente.

A tibieza deixou o presidente em uma encruzilhada. Entre os grupos antagônicos que se digladiam em torno da cadeira no Supremo, estão dois pilares fundamentais de sustentação do governo: o Centrão e as lideranças evangélicas. Os expoentes do Centrão, experts em criar dificuldades para obter facilidades em todo e qualquer governo, argumentam agora nos bastidores que o “nosso Kassio” – Kassio Marques, o primeiro indicado de Bolsonaro para a corte – nunca foi “deles”. O ministro do STF, conforme essas mesmas vozes, “apenas” foi chancelado pelo bloco, depois de ser escolhido por um consórcio composto por advogados ligados ao Planalto e pelo próprio filho 01 de Bolsonaro, Flávio Bolsonaro. Por esse raciocínio, agora seria a hora de, finalmente, emplacar um ministro com o “verdadeiro DNA do Centrão”.

Do outro lado da trincheira, os evangélicos cobram o que chamam de “promessa de campanha de Bolsonaro”, qual seja, a de elevar ao Supremo um ministro “terrivelmente evangélico”. A palavra teria sido empenhada, mais uma vez, em reunião há duas semanas no Palácio do Planalto, com a presença de quinze das mais importantes lideranças da corrente religiosa.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéAndré Mendonça: entorno de Bolsonaro já joga a toalha, mas situação ainda está indefinida
O busílis é que Bolsonaro precisa dos dois lados. Se desagradar ao Centrão, pode vir a amargar derrotas políticas não só no Congresso, mas também fora dele. O bloco fisiológico não forma apenas a principal bancada de apoio ao governo no Legislativo. Governo e Centrão, como o próprio presidente já confessou publicamente, se confundem. “Eu sou Centrão”, já disse. Uma das provas dessa irrefutável simbiose é que Ciro Nogueira virou ministro da Casa Civil. Arthur Lira, outro que está sempre de olho em cargos estratégicos na Esplanada, é hoje o dono da caneta capaz de desencadear o impeachment, e seu partido, o Progressistas, que vem a ser também o de Ciro e igualmente o do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, é o que atualmente se encontra em negociações mais avançadas para oferecer abrigo ao presidente.

Só que arrumar confusão com os evangélicos significa empurrar cerca de 30% do eleitorado brasileiro para o colo do ex-presidente Lula, hoje principal adversário de Bolsonaro na corrida ao Planalto. Os pastores, por ora, seguem com o governo. Não há dúvidas de que há uma convergência entre as pautas do setor evangélico e as defendidas pelo bolsonarismo. Mas, assim como o Centrão um dia já foi Lula e PT, os evangélicos também já o foram, e não teriam o menor pudor em mudar de casaca, a depender das conveniências políticas de ocasião.

Cientes de que Bolsonaro se equilibra no fio da navalha, os atores envolvidos na disputa sobre o preenchimento da vaga em aberto no STF intensificaram as pressões durante a semana. Em pelo menos três jantares promovidos nas últimas duas semanas, Ciro Nogueira, o ministro das Comunicações, Fábio Faria, e a ministra da Secretaria de Governo, Flávia Arruda, tramaram enfiar goela abaixo do presidente o nome do advogado Alexandre Cordeiro Macedo, hoje presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade, como a melhor opção para o STF. Cordeiro cultiva amizade antiga com Ciro Nogueira. Sua irmã, Sabá Cordeiro de Monteiro, é chefe de gabinete do ministro. Antes, foi assessora parlamentar de Ciro. Alexandre Cordeiro Macedo só é presidente do Cade, órgão antitruste responsável por zelar pela livre concorrência, por obra e graça do atual chefe da Casa Civil.

Sentindo-se atropeladas, as lideranças evangélicas exibem os dentes. Embora Alexandre Cordeiro Macedo se apresente como evangélico, ele está muito distante de ser enquadrar no quesito “terrivelmente evangélico”, como prometeu Bolsonaro e agora exigem os pastores. Eles ainda acusam Ciro Nogueira de ter cruzado o sinal vermelho. Crusoé apurou que, antes mesmo de qualquer sinalização do Planalto, o chefe da Casa Civil submeteu o nome de Cordeiro a ministros do STF e recebeu o aval de um deles, Gilmar Mendes. Foi o estopim para o pastor Silas Malafaia estrilar nas redes sociais. Em vídeo no YouTube, Malafaia disse que os ministros políticos do governo (numa referência direta a Ciro Nogueira, Flávia Arruda e Fábio Faria) “são obrigados a defender a indicação do presidente Bolsonaro”, sob pena de incorrerem em insubordinação.

Alan Santos/PRAlan Santos/PRO pastor Silas Malafaia abriu guerra contra o Centrão
Fábio Faria, o ministro das Comunicações, nega que tenha participado de convescotes destinados a cabalar apoio para o presidente do Cade, mas ao ser cobrado por uma liderança evangélica, em conversa recente sobre manifestações favoráveis à indicação de Mendonça ao STF, disse que não o faria temendo “desagradar a Aras”, em referência ao procurador-geral da República, ainda terrivelmente candidato a ocupar a cadeira no Supremo, embora não deixe transparecer.

Com o veto ao presidente do Cade, o próprio Centrão passou a circular o nome de Marcos Pereira, presidente do Republicanos, como “plano B”. Também não deve colar. “Marcos Pereira é terrivelmente Universal (alusão à igreja que Pereira representa e da qual é bispo licenciado), e não terrivelmente evangélico”, diz um influente pastor que esteve recentemente com o presidente no Planalto. Os religiosos até aceitam um nome alternativo, desde que se encaixe no conceito original – ser “terrivelmente evangélico” virou mesmo uma exigência incontornável. Os pastores ainda veem chances na aprovação de André Mendonça, a despeito das dificuldades que se impõem. Nos últimos dias, eles apostavam entre uma conversa derradeira entre Bolsonaro e Davi Alcolumbre, presidente da CCJ do Senado, que segue relutando em marcar a sabatina.

Como já é público e notório, o senador do Amapá é hoje o principal opositor ao nome de André Mendonça no Congresso. Alcolumbre não esconde de ninguém que prefere Aras, e promete batalhar pelo nome do PGR até os instantes finais. Para o Planalto, a tática do senador de adiar a sabatina por todo esse tempo teve o objetivo de matar dois aspirantes à cadeira no STF numa tacada só: além do ex-AGU, o presidente do STJ, Humberto Martins, candidato do coração de Flávio Bolsonaro, perdeu a vez porque a lei define 64 anos como a idade limite para a indicação à corte – Martins completou 65 anos no último dia 7.

É fato que Alcolumbre joga suas fichas na confusão. Para um parlamentar que sempre foi do baixo clero, jogar em time grande e na arena onde as principais decisões são tomadas aumenta consideravelmente seu cacife e seu poder de barganha. A aliados, durante a semana, ele insinuou se espelhar no caso do então presidente americano Barack Obama, que indicou à Suprema Corte o presidente do Tribunal de Recursos de Washington, Merrick Garland, para a vaga do conservador Antonin Scalia. Como a bancada dos republicanos se recusou a sabatiná-lo, a indicação caducou e coube ao sucessor de Obama, Donald Trump, nomear o novo ministro. Raposas do Congresso acreditam, porém, que tudo não passa de jogo de cena para que, ao fim e ao cabo, o impasse leve o governo, os evangélicos e o Centrão a “ungirem” Aras para a vaga. Ou ajude Alcolumbre a receber algum regalo do Planalto.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéCiro Nogueira, o insaciável, já tem um substituto na agulha
Um diálogo amistoso entre o senador e Bolsonaro parece cada vez mais improvável. Em encontro com o filho 01, Flávio Bolsonaro, na segunda-feira 11, Alcolumbre mostrou-se bastante insatisfeito com o presidente. Disse que, ao contrário do que Bolsonaro andou falando, é o governo que lhe deve favores. “Não sou o filho da p. da história”, teria dito Alcolumbre. Empoderado por uma decisão do ministro Ricardo Lewandowski, que na mesma segunda-feira negou um pedido para obrigar o Senado a marcar a sabatina de André Mendonça, o senador exigiu retratação de Bolsonaro.

Como não há sinais de armistício, os senadores favoráveis ao nome de André Mendonça agora pressionam o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, a realizar a sabatina diretamente no plenário da casa. Um dos argumentos é o de que a Constituição não exige que indicados ao STF passem necessariamente pelo crivo da CCJ. “Se o presidente da República pedir, Pacheco executa”, afirma um parlamentar. Pacheco, porém, dá sinais de que não pretende atropelar Alcolumbre.

Hoje, a margem tanto para aprovar quanto para rejeitar o nome de Mendonça está estreita. No entorno de Bolsonaro reina o pessimismo. Há quem, entre seus interlocutores, já considere o ex-chefe da AGU uma carta fora do baralho. O sentimento de um auxiliar que esteve com o presidente nos últimos dias é o de que Bolsonaro está consciente de que Mendonça “já foi degolado pelo Senado”.

Se consumada a derrota – a primeira desde 1894, no governo de Floriano Peixoto, quando cinco indicados ao STF foram reprovados pelo Senado –, o desafio de Bolsonaro será juntar os cacos e escolher um novo nome capaz de agradar a todos os envolvidos. Para um presidente sequestrado pelas conveniências dos grupos que garantem sua sobrevivência no cargo, é quase uma quimera.

Colaborou Fabio Leite

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