UnB"A posição do CFM é escandalosa. Felizmente, os bons médicos estão reagindo"

‘É caso de mistanásia’

Um dos maiores especialistas em bioética do país, Volnei Garrafa diz que testes com cloroquina e proxalutamida se equiparam ao horror das experiências médicas nazistas na Segunda Guerra
15.10.21

O pesquisador gaúcho Volnei Garrafa é uma das maiores autoridades do país em bioética. Diretor do Centro Internacional de Bioética e Humanidades da Universidade de Brasília e coordenador de uma cátedra sobre o tema patrocinada pela Unesco, o braço da ONU para a educação, a ciência e a cultura, ele se mostra assombrado com os estudos realizados no Brasil para testar remédios contra o coronavírus. Cita especialmente o famigerado “kit Covid”, propagandeado pelo presidente Jair Bolsonaro e prescrito sistematicamente por operadoras de planos de saúde como a Prevent Senior, e a proxalutamida, cuja pesquisa teria, segundo o Conselho Nacional de Saúde, levado à morte de mais de 200 pessoas. Para Garrafa, esses estudos, realizados sem o consentimento de pacientes e em desacordo com os protocolos científicos mais básicos, equiparam-se ao horror das experiências médicas conduzidas pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.

O professor afirma nesta entrevista a Crusoé que falta ao país uma legislação rigorosa para regular pesquisas com seres humanos. O setor, diz, acaba exposto às pressões de laboratórios farmacêuticos interessados no afrouxamento do sistema de controle que deveria ser feito, sistematicamente, pelos comitês de ética em pesquisa. “Na área biomédica, o deserto legislativo é estrondoso”, diagnostica. Pós-doutor em bioética, Garrafa integrou, no final dos anos 1990, a primeira formação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, a Conep, instância máxima de avaliação de protocolos de pesquisa. Ele afirma que a falta de estrutura e de equipes para a fiscalização e o monitoramento dos estudos contribuíram para o surgimento de escândalos como o da Prevent Senior. Garrafa classifica a caótica política brasileira de enfrentamento à pandemia como um caso de “mistanásia”, uma variedade da eutanásia. “É a morte desnecessária, cruel, miserável. Ocorre quando as pessoas são abandonadas, enganadas.” Eis a entrevista:

De que forma os escândalos envolvendo pesquisas ilegais com substâncias como cloroquina e proxalutamida e o caso Prevent Senior contribuíram para o debate ético na pandemia?
A pandemia trouxe à tona uma imoralidade na estrutura científica e na sociedade que, para muitos, era inimaginável. Vimos comportamentos completamente inesperados, frutos do ódio, do despreparo. Mas há também problemas de raízes educacionais. No campo da ética em pesquisa, o Brasil tem um sistema desde 1996. Eu mesmo fiz parte da Comissão Nacional de Ética, no primeiro grupo, em 1997. De toda a América Latina, o sistema brasileiro, apesar das dificuldades, ainda é o melhor, porque há um sistema nacional de controle (de pesquisas). Só que o modelo já está antiquado, tem muitas deficiências e deveria ter avançado. Não quero crucificar o sistema CEP/Conep (os CEPs são os comitês de ética em pesquisa e a Conep, a última instância de avaliação de protocolos de pesquisas envolvendo seres humanos) porque todos já lutam com muita dificuldade. Mas as influências contra seu funcionamento, principalmente aquelas vindas das indústrias nacionais e multinacionais de medicamentos, são uma coisa incrível. A indústria está sempre lutando pela flexibilização do sistema de controle ético. Querem o afrouxamento. Hoje, o sistema não tem nem agilidade nem pessoal, nem força política ou técnica para ir atrás de denúncias, como os fatos que aconteceram no Amazonas ou em Porto Alegre (refere-se às pesquisas com proxalutamida e cloroquina). Se o país tivesse um sistema vigoroso, haveria uma série de técnicos atuando nesses casos, apresentando material ao Ministério Público. Mas o sistema é frágil, não tem força suficiente.

De que forma o Congresso Nacional tem participação nessa situação?
Temos um problema seríssimo que é culpa do Congresso Nacional: não há legislação no Brasil sobre pesquisa com seres humanos. Isso, em 2021, é escandaloso. Na Argentina, representantes de grandes laboratórios já foram para a cadeia e há casos de multas. No Brasil, há dificuldades em punir. Houve um caso escandaloso que aconteceu em 2005, o da malária no Amapá, que envolveu uma universidade americana da Flórida, em parceria com duas instituições do Brasil, a Fiocruz e a USP. O projeto foi aprovado pela Conep e, depois, descobrimos que os grupos de pesquisa estavam divididos em dois, e em um deles as pessoas recebiam 100 picadas de mosquito por dia. Uma comissão comprovou que mais de 3% dos mosquitos estavam infectados pela malária. As pessoas estavam sendo expostas à doença sem conhecimento. É claro que a Conep não iria aprovar um projeto desses. Houve burla. Na época, a Polícia Federal entrou no caso, houve o fechamento de um laboratório da Fiocruz. O escândalo saiu nas páginas de todos os jornais. E o que aconteceu até hoje? Nada, absolutamente nada. Em 2021, essas coisas voltaram a acontecer e o Brasil continua sem uma lei sobre ética em pesquisa. O que há é uma resolução do Conselho Nacional de Saúde, sem poder de lei. Tem poder moral, mas não punitivo.

O caso da Prevent Senior teve muita repercussão e causou indignação. O sr. acredita que desse escândalo podem vir consequências práticas, como punições e a criação de novas leis sobre o tema?
Tenho dúvidas sobre qual será o desfecho. Os interesses são muito fortes. O vazio legal e a ausência de legislação atrapalham, sim. Com esse Congresso Nacional de pastiche, duvido muito que desse mato saia algum coelho. Moro em Brasília há 50 anos e nunca vi um Congresso de tão baixo nível, com esse Centrão. Tem um projeto de lei que tramita há uns seis anos, mas que veio do campo dos laboratórios. À época, a (então) senadora Ana Amélia apresentou um projeto que poderia acabar com o sistema CEP/Conep, com o argumento de que ele cerceia a liberdade dos laboratórios pesquisarem e atrasa os projetos de pesquisa. No Brasil, menos de 5% das pesquisas clínicas são originais. Elas usam pacientes do SUS como cobaias de pesquisa para ter mais lucro. Isso a Conep tenta controlar. Há mais de 800 comitês locais de ética em pesquisa em hospitais, universidades, mas eles não dão conta. O trabalho não é remunerado, é meio que um sacerdócio das pessoas que se metem com ética e pesquisa. O desejável era que hoje tivéssemos comissões de alto nível, até para avaliar os impactos econômicos e epidemiológicos.

Reprodução/Youtube/UnBTVReprodução/Youtube/UnBTV“Muitas mortes por Covid no Brasil podem ser caracterizadas como um caso de mistanásia, uma variedade da eutanásia”
A direção da Prevent Senior argumenta que os médicos tinham autonomia para prescrever os remédios, com amparo do Conselho Federal de Medicina. O CFM errou?
O Conselho Federal de Medicina inverteu escandalosamente o conceito de autonomia.  Que autonomia é essa que ludibria a informação que o médico tem que dar ao paciente para informá-lo e para defender a sua segurança? Foi isso o que aconteceu na Prevent Senior, onde houve uma série de distorções sob o ponto de vista criminal e sob o ponto de vista ético. Tudo aquilo que aconteceu na Prevent e as pesquisas em Manaus e em Porto Alegre (com proxalutamida e cloroquina) se equipara às pesquisas que os nazistas faziam nos campos de concentração. As pessoas estavam desinformadas. O grande referencial da Declaração de Nuremberg, de 1947, é que toda e qualquer ação clínica no corpo de uma pessoa deve ter o consentimento informado e esclarecido dessa pessoa. É um balizador dos direitos humanos, que foi flagrantemente desrespeitado nessas pesquisas. Depois, houve ainda o fato de ocultarem informações de atestados de óbito. É um absurdo.

Houve omissão do CFM?
A posição do CFM é escandalosa. Felizmente, os bons médicos estão reagindo quanto a isso. O CFM já vinha adotando posições retrógradas de alguns anos para cá e essa diretoria atual se esmerou em piorar a situação. Tanto que o presidente Bolsonaro em seu discurso na ONU se referiu ao CFM e a esse exemplo da autonomia, com conceito completamente errôneo. O conselho tem grande responsabilidade com relação a isso. Os conselhos profissionais têm como papel avaliar e controlar o exercício profissional, e essa direção do CFM está extrapolando completamente suas funções legais. Aquela Capitã Cloroquina (como ficou conhecida Mayra Pinheiro, secretária do Ministério da Saúde) fez um doutorado em bioética, um doutorado picareta que não é reconhecido pela Capes. Se você abre o Lattes desse ministro (Marcelo) Queiroga, está na primeira página do currículo que ele é doutorando em biomédica desde 2010. Aqui no Brasil, o aluno de doutorado é desligado depois de quatro anos. Como o sujeito está desde 2010 cursando doutorado?

A falta de legislação impede que sejam punidos os responsáveis por pesquisas que atentam contra os princípios éticos?
Esses casos vão para o Ministério Público e se arrastam. Caem no esquecimento quando saem da mídia, e fica por isso mesmo. Esses casos recentes são muito mais estrondosos, mas há vazios legislativos criminosos. Lembra da ovelha Dolly, a primeira clonada, e do primeiro bebê de proveta, que nasceu em 1984? Até hoje o Brasil não tem uma legislação sobre reprodução assistida. É uma vergonha. Frequentemente, juízes me pedem pareceres de bioética para tomarem suas decisões, sobre questões como a da privacidade dos doadores, porque não há legislação. E assim o Judiciário tem que legislar, fazer jurisprudência. Na área biomédica, o deserto legislativo é estrondoso. As coisas funcionam com base em resoluções do CFM.

Do ponto de vista da bioética, como o sr. avalia o comportamento do presidente Jair Bolsonaro no combate à pandemia?
Muitas mortes por Covid no Brasil podem ser caracterizadas como um caso de mistanásia, uma variedade da eutanásia. A mistanásia é a morte desnecessária, cruel, miserável. Não é bem genocídio a palavra a ser utilizada. A morte miserável ocorre quando as pessoas são abandonadas, enganadas. E, desde o começo, o que aconteceu no Brasil foi um abandono completo. Não houve uma condução nacional única para combate à pandemia. Cada estado, cada município, tomou medidas por conta própria. Com a estrutura consolidada do SUS, o que aconteceu era inimaginável para nós. O Brasil sempre foi exemplar em termos de vacinação e o que aconteceu nos deixa estupefatos. Outra questão é a completa ausência de informações fidedignas. Não houve campanha nenhuma durante todo esse processo. A mídia teve papel fundamental no sentido da orientação da população, porque não houve campanhas do governo para uso de máscara, para a adoção de cuidados. Foi, sem dúvida, uma mistanásia. E o presidente tem que ser responsabilizado criminalmente. A médio e longo prazos, Bolsonaro e a equipe dele têm que ser julgados nos fóruns internacionais, como aqueles carrascos das guerras da antiga Iugoslávia.

Luis Prado/UnBLuis Prado/UnB“Aquilo que aconteceu na Prevent e as pesquisas em Manaus e em Porto Alegre se equipara às pesquisas que os nazistas faziam”
Bolsonaro e seus aliados elegeram recentemente o passaporte sanitário como o grande vilão. Do ponto de vista da bioética, há algo errado em exigir que as pessoas se vacinem?
O boicote da vacinação promovido por Bolsonaro é lamentável. Sob o ponto de vista ético, qual é o nosso referencial maior? A vida. A vida é maior bem que existe. Quando determinadas situações colocam em risco outras pessoas, a compulsoriedade é necessária. Imagine, em uma epidemia fortíssima de dengue, uma casa fechada, com a piscina transformada em foco de mosquito, o estado ser impedido de entrar no local. Nesse caso, a Justiça dá permissão para a prefeitura entrar na casa, porque aquela situação estava colocando outras pessoas em risco. O debate da vacina se situa no mesmo campo. Vidas de pessoas estão em risco. O Estado precisa tomar medidas mais drásticas. A palavra compulsória é feia, mas tem que haver um controle social e corresponsabilidade compartilhada, porque aquele que não se vacina transmite aos outros, e isso não é ético.

Na pandemia, temas eminentemente técnicos acabaram politizados de maneira exacerbada. Isso atrapalhou?
O Brasil tem ótimos exemplos de políticas públicas que deram certo sem politização. Na área de saúde, a revista Nature mostrou o milagre que foi o Brasil ter reduzido de forma expressiva a mortalidade infantil. Foi uma mudança espetacular, uma conquista do sistema epidemiológico brasileiro, e não houve politização desse debate. Vivemos uma crise ética histórica com a pandemia de Covid. O Brasil poderá, agora, ou sucumbir ou dar um salto de qualidade, aprendendo com essa e começando a criar vergonha na cara.

Como pesquisador, que avaliação o sr. faz das políticas oficiais de ciência e tecnologia? O governo tem tentado impor limites à ciência?
Todo ano há corte de bolsas e não há abertura de novas vagas docentes nas universidades. É óbvio que há boicote. Veja a presidente da Capes (Cláudia Toledo), que é o órgão mais importante da área. Ela vem de uma entidade chamada Instituto Toledo de Ensino, em Bauru. O ministro da Educação é formado lá e esse (André) Mendonça, indicado para o Supremo, também é formado lá. O programa de direito deles tirou nota 2 há cinco anos. Nota 2 é para fechar. Como uma pessoa dessas vai ser presidente da Capes? Não tem competência profissional. O ministro atual (da Educação) é completamente despreparado. Obviamente, cria-se um vazio muito forte que vai interferir nas políticas de educação. É um espanto o distanciamento que está havendo entre a educação e a saúde. O MEC deveria estar fortemente envolvido no combate à pandemia, por meio das universidades, dos hospitais universitários. Se houvesse um comando único nacional, educação e saúde estariam irmanados. É lamentável que não estejam. Pode ter certeza de que teremos um atraso educacional no país de pelo menos uma década.

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