RuyGoiaba

Uma feijoada dentro do pesadelo

01.10.21

“A história é um pesadelo do qual estou tentando acordar” é a frase mais famosa do Ulisses de James Joyce. No romance, ela é dita por Stephen Dedalus, o alter ego do escritor irlandês, que já havia protagonizado sua obra anterior, Retrato do Artista Quando Jovem (quase escrevi que era uma espécie de Ruy Goiaba joyciano, mas a mão invisível do meu superego me deu um beliscão dolorido. Era brincadeira, superego, puxa vida). O sobrenome do personagem alude a Dédalo, pai de Ícaro e arquiteto do Labirinto na mitologia grega. Como as coisas que Joyce escrevia costumavam ser uma matrioshka de significados, uns dentro dos outros, o trecho também pode ser interpretado como sinal da angústia de Stephen dentro do seu labirinto na Dublin de 16 de junho de 1904 — dia em que se passa a ação de Ulisses, festejado hoje como Bloomsday.

Já me apropriei da frase do Joyce aqui, substituindo “a história” por “o Brasil”, e já citei dezenas de milhares de vezes aquele meme do “crime ocorre nada acontece feijoada”, infinitamente mais fiel à nossa vida cotidiana no Bananão que o mofado lema positivista de “ordem e progresso”. Mas só nesta semana, assistindo à CPI da Covid com prazer semelhante ao de Sísifo rolando a pedra, me ocorreu juntar as duas coisas: o Brasil é um pesadelo do qual os brasileiros NÃO estão tentando acordar. Ao contrário, parecem confortáveis com a naturalização da coisa: todo dia saem para trabalhar e todo fim de semana batem sua bolinha com os amigos dentro do pesadelo. É um país de sonâmbulos.

O depoimento da advogada dos ex-médicos da Prevent Senior, Bruna Morato, à CPI na última terça (28) trouxe a público uma lista de acusações à operadora de planos de saúde que não destoa muito das “experiências” promovidas por Josef Mengele na Segunda Guerra. São atrocidades que, em qualquer país civilizado como nós nunca fomos, renderiam intervenção na empresa e cadeia para os responsáveis caso fossem comprovadas. O brasileiro médio com acesso à internet — e que não teve ninguém da família entre as vítimas — se indigna, vai às redes sociais sinalizar a virtude de estar indignado, a grande onda de indignação (real ou performática) se ergue e morre na praia: outra onda virá no dia seguinte para encobri-la, e outra, e mais outra. Pouco importa que os crimes ocorram em série, o desfecho é sempre o mesmo: nada acontece, feijoada.

O brasileiríssimo Carlos Drummond de Andrade já resumia esse estado de espírito em Explicação, poema que está em um livro (o Alguma Poesia) publicado já lá se vão nove décadas: “Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só/ lê o seu jornal, mete a língua no governo/ queixa-se da vida (a vida está tão cara)/ e no fim dá certo”. Mudando o que deve ser mudado (por exemplo, “jornal”, que ninguém mais lê, por “WhatsApp”) e entendendo “no fim dá certo” como a suprema das ironias, é exatamente isso. Nada dá certo, nem sequer pode correr o risco de dar certo, mas quem se importa? Eventuais tentativas serão competentemente sepultadas pelos infinitos pactos possíveis entre grupos de bandidos e de gente mesquinha e medíocre, que são numerosos; o gado, de um e de outro lado, seguirá mugindo em aprovação entusiástica; e la nave va.

(James Joyce saiu de Dublin para não voltar mais; Josef Mengele veio morrer afogado em Bertioga, sem jamais ter sido julgado por seus crimes. Vocês e eu, se tivermos sorte, comeremos feijoada no sábado, num canto do nosso pesadelo.)

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A GOIABICE DA SEMANA

Oscar Wilde, que tinha razão em quase tudo, nunca esteve tão certo como quando escreveu (em O Retrato de Dorian Gray) que “só pessoas frívolas não julgam pelas aparências”. A última prova disso é a banda de rock dos donos da Prevent Senior — na verdade, as bandas (Armored Dawn e Doctor Pheabes), que nunca emplacaram, mas já abriram até show dos Rolling Stones graças ao patrocínio da operadora dos sócios. Nem era preciso conhecer o grotesco “hino dos guardiões” que eles compuseram; qualquer pessoa sensata que julgasse pelas aparências hesitaria em contratar um plano de saúde ou se internar em um hospital cujos donos são “quarentões roqueiros” com essas barbichas ridículas.

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AVISO DE FÉRIAS

Como sempre, deixo a melhor notícia para o final: vocês estarão livres de mim pelas próximas semanas. Retorno ainda em outubro, se não revogarem o calendário gregoriano, se ainda houver Brasil, planeta Terra etc. Au revoir!

ReproduçãoReproduçãoVocê compraria um carro usado ou plano de saúde do senhor no centro da foto?
 

 

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