Pedro Ladeira/Folhapress

O balcão de Michelle

Documentos obtidos por Crusoé mostram que a primeira-dama agiu, pessoalmente, para favorecer empresas amigas e adeptas do bolsonarismo no auge da pandemia. Empréstimos foram liberados pela Caixa depois que ela falou com o presidente do banco, Pedro Guimarães, e enviou e-mails com uma lista de indicados. Um privilégio bem distante da maioria dos brasileiros
01.10.21

No primeiro semestre do ano passado, quando pequenos empresários já começavam a sentir o bafo da pandemia de Covid-19 sobre seus negócios, impactados pelas medidas de isolamento social, o governo federal lançou um programa emergencial que prometia distribuir alguns bilhões de reais a juros baixos e em condições facilitadas. Era uma maneira de ajudá-los a enfrentar o mau momento sem ter que demitir funcionários ou mesmo fechar definitivamente as portas. Logo começaram a aparecer queixas de todos os lados – nem todos os que precisavam conseguiam, de fato, acesso ao crédito. Em Brasília, porém, havia um atalho bastante privilegiado, disponível apenas para alguns.

De dentro do Palácio do Planalto, mais precisamente do gabinete da primeira-dama da República, Michelle Bolsonaro, saíram pedidos para que a Caixa Econômica Federal, uma das principais operadoras do programa de socorro subsidiado pelo governo, atendesse a um seleto grupo de empresas interessadas. Em comum entre essas empresas havia o fato de elas terem, como proprietários, bolsonaristas de carteirinha ou gente bem próxima da família presidencial.

Crusoé teve acesso a documentos que mostram que o gabinete de Michelle Bolsonaro chegou a registrar as demandas por e-mail, ao mesmo tempo que assessores da primeira-dama atuaram como despachantes para facilitar o processo. A própria Michelle chegou a tratar do assunto em uma conversa com o presidente do banco, Pedro Guimarães, um dos mais entusiasmados e diligentes auxiliares de seu marido, Jair Bolsonaro.

Não é algo trivial. Primeiro, porque ao interceder em favor de um grupo de empresas amigas, a primeira-dama atropelou princípios elementares da administração pública, como o da impessoalidade – as firmas que ganharam a bênção, por óbvio, passaram a ter um tratamento diferenciado, enquanto a grande maioria, distante da cúpula do poder, penava para ser incluída entre os beneficiários do auxílio. Segundo, porque a tramitação dos processos se deu em desacordo com os fluxos normais das operações de crédito do banco.

Adriano Machado/CRUSOEAdriano Machado/CRUSOEPedro Guimarães, com Bolsonaro: um pedido é uma ordem
Foi algo tão fora do esquadro que os sistemas de controle da própria Caixa detectaram o fato estranho em pouco tempo. Uma apuração interna chegou a ser aberta. A maioria das operações de empréstimo se deu em uma agência de Taguatinga, cidade vizinha a Brasília, após a equipe de Pedro Guimarães encaminhar as demandas da primeira-dama. Praticamente todos os pedidos, segundo documentos da própria Caixa, foram atendidos logo em seguida.

A lista de agraciados tem de tudo um pouco. Por exemplo, o florista que atende Michelle, a confeiteira que fornece bolos e doces para festas palacianas e ficou íntima da primeira-dama, a cabeleireira da amiga e um promoter conhecido por organizar recepções para os atuais integrantes da corte brasiliense. Tem, ainda, empresárias do ramo da moda que contam com os préstimos da família presidencial para divulgar suas marcas nas redes sociais.

A lista vip foi descoberta durante um procedimento rotineiro de auditoria. Ao analisar processos de concessão de empréstimo, a equipe identificou que algumas empresas tinham sido indicadas por uma PEP, acrônimo para “pessoa exposta politicamente” – assim são tratadas, no sistema financeiro, personalidades ligadas ao mundo do poder. Ao dar um passo adiante, os auditores viram que a indicação era de ninguém menos do que a primeira-dama do país. “Cliente veio através de lista de empresas indicadas pela primeira-dama Michelle Bolsonaro ao presidente Pedro Guimarães”, dizia um documento. “Direcionamos para análise e tratativas necessárias solicitações de microempresários de Brasília enviadas pelo gabinete da primeira-dama Michelle Bolsonaro”, registrava outro expediente.

Era só a ponta. Logo o time de auditores descobriu que a lista era bem maior. Na agência onde os empréstimos foram finalmente destravados, havia até uma pasta no sistema de computadores que, sob o título “Indicações”, reunia todos os pedidos enviados pelas instâncias superiores do banco a partir da demanda recém-chegada do Palácio do Planalto. Curiosamente, algumas das solicitações já partiram do gabinete de Michelle Bolsonaro acompanhadas dos documentos necessários para a liberação.

Uma assessora especial da Presidência da República, Marcela Magalhães Braga, destacada para atuar na equipe que auxilia Michelle mais proximamente, encarregou-se de receber os arquivos dos empresários interessados e encaminhar para a Caixa as mensagens, depois de a própria primeira-dama tratar do assunto com Pedro Guimarães. “A pedido da sra. Michelle Bolsonaro e conforme conversa telefônica entre ela e o presidente Pedro, encaminhamos os documentos dos microempresários de Brasília que têm buscado crédito a juros baixos”, dizia um dos primeiros e-mails, datado de 20 de maio de 2020.

Um dos e-mails enviados pelo gabinete da primeira-dama à Caixa
As mensagens do gabinete da primeira-dama não apontavam especificamente em qual operação de crédito os empresários estavam interessados, mas todos os integrantes da lista que foram atendidos acabaram enquadrados no Pronampe, o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, que tinha acabado de ser lançado pelo governo. Ainda que não tenham sido encontrados indícios de que os valores liberados extrapolavam os limites nem de que as empresas beneficiadas não poderiam ser atendidas, chamou atenção dos auditores o caminho dos processos – de cima para baixo, contrariando as regras e o fluxo de etapas que costumam ser obedecidas quando os pedidos são feitos por clientes comuns, em uma agência qualquer. Ou seja: a lista VIP da primeira-dama recebeu tratamento VIP do banco.

Uma das figuras mais destacadas do rol enviado à Caixa pelo gabinete de Michelle Bolsonaro é a doceira Maria Amélia Campos, dona de uma rede de confeitarias em Brasília. Bolsonarista assumida e amiga da primeira-dama, a quem diz ter livre acesso, Maria Amélia bombou nas redes sociais do presidente da República em fevereiro deste ano. Quando estava no auge de sua guerra contra os decretos baixados por governadores determinando medidas restritivas, como o fechamento de estabelecimentos comerciais para conter a pandemia, Jair Bolsonaro reproduziu em seus perfis uma gravação em que a doceira, diante de vários funcionários de sua cozinha, exortava o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, a suspender o lockdown em Brasília – o emedebista tinha acabado de decretar o fechamento do comércio por 15 dias, porque os hospitais da capital estavam abarrotados de pacientes com Covid. “Lockdown não salva, lockdown mata”, dizia a confeiteira. “Governador, deixa a gente trabalhar!”, bradava ela ao final do vídeo, de punhos cerrados, com os empregados repetindo o grito, em coro. Bolsonaro reproduziu o vídeo (assista abaixo) e escreveu: “O povo quer trabalhar”.

A doceira construiu uma relação estreita com a família presidencial nos últimos tempos. Com frequência, ela presenteia os Bolsonaro com doces e bolos personalizados. No segundo semestre do ano passado, por exemplo, preparou os quitutes de uma festa organizada por Michelle para comemorar, no Palácio da Alvorada, o aniversário do maquiador Agustín Fernandez, tido como o melhor amigo da primeira-dama – o bolo e os docinhos reproduziam peças da marca de luxo Louis Vuitton. A Crusoé, Maria Amélia disse que evita falar de sua proximidade com a família do presidente, e com Michelle em particular. “Eu não tenho o direito de falar dessa proximidade. Acho isso tão delicado.” “Eu gosto de ter proximidade com pessoas do bem. Então, com certeza vou ter com eles. Tenho muito carinho por eles, e eles por mim”, disse. Na sequência, ao ser indagada sobre a ajuda de Michelle para que a empresa dela obtivesse a liberação do financiamento na Caixa, ela mudou o tom: “Espero que vocês me respeitem. Sou uma empresária. Estou muito indignada. Não tenho nenhum empréstimo em lugar nenhum”.

Após o pedido de Michelle, a confeiteira não apenas aprovou na Caixa um empréstimo de 518 mil reais, registrado em nome de uma de suas lojas, como conseguiu que a primeira-dama intercedesse em favor de um casal de amigos, dono de um salão na Asa Sul de Brasília. “O contato com a primeira-dama foi fundamental. É o famoso QI (quem indica) que fala, não é!? Foi uma parceria com a primeira-dama, ela que deu a força final. Foi a Maria Amélia, amiga da gente, que conseguiu com a primeira-dama. Precisei ir uma vez só na Caixa. Foi fácil conseguir”, diz Waldemar Caetano Filho, sócio do salão Luiza Coiffeur, cujo nome homenageia sua mulher, a cabeleireira chefe da casa.

A família, a exemplo de Maria Amélia, é bolsonarista. “Votei nele. Eu sou mais ele (para 2022) do que os outros candidatos que estão sendo cogitados. A gente não tem visto falar de corrupção, deu uma parada. A gente não ouve falar mais”, diz Waldemar, empolgado. Outro integrante da lista VIP de Michelle Bolsonaro é o florista Rodrigo Resende, dono de uma tradicional floricultura de Brasília. Ele admite ter a primeira-dama como cliente, mas, a despeito de ter sua empresa relacionada em documentos da própria Caixa entre as que contaram com a intercessão de Michelle, nega que tenha obtido o financiamento graças a ela. “Eu não preciso disso”, desconversou.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéLoja da Derela: a boutique também surfa na popularidade da família Bolsonaro nas redes
Boutique de roupas femininas com duas lojas em Brasília, a Derela Modas está em franco crescimento, com uma parte importante de suas operações baseada na propaganda pela internet. A empresa é mais uma das que constam da lista de Michelle. A gerente de uma das lojas disse a Crusoé na quarta-feira, 29, que a própria primeira-dama já ajudou na divulgação da marca. “A gente tem parceria com a primeira-dama, de blogueira. Ela faz divulgação para a loja, mas é pago. A gente paga a ela. Dá o look e paga um valor em dinheiro. Eu não sei valores”, disse. Mariana Barros, uma das proprietárias da empresa, porém, nega. Segundo ela, a parceria é com Heloísa Bolsonaro, mulher do deputado Eduardo Bolsonaro, o filho 03 do presidente. “A gente fecha com várias influencers do Brasil inteiro. A Heloísa Bolsonaro é influencer. A gente procurou ela, e ela divulga nossas roupas”, disse, por telefone. Ao ser perguntada sobre o empréstimo, a empresária disse que precisava desligar e que, depois, poderia dar mais explicações. Sumiu.

Os integrantes da lista formam um círculo pequeno de gente bem relacionada com o clã presidencial que mantém, ao mesmo tempo, ligações entre si – o que talvez explique como todos eles foram, ao longo do tempo, se aproximando dos ora ocupantes do Alvorada. O florista Rodrigo Resende é amigo da boleira Maria Amélia, que é amiga dos donos do Luiza Coiffeur. Mariana Barros, a dona da boutique, tem laços familiares com Márcia Barros de Matos, dona de uma rede de óticas de Brasília que conseguiu aprovar dois empréstimos, num total de 618 mil reais, depois da indicação de Michelle. Márcia Barros, sócia em um brechó de uma assessora da ministra Damares Alves, diz desconhecer a ajuda da primeira-dama: “Se eu consegui é porque a minha empresa atendia a todos os requisitos. Não precisei pedir nada para ninguém”. Ela é comadre de outro beneficiário, o promoter Robson Lemos, dono de uma empresa de eventos com sede no Clube do Exército de Brasília que costuma prestar serviços em recepções organizadas por Michelle Bolsonaro. Robinho, como é conhecido, se recusou a falar sobre sua relação com a primeira-dama. “Prefiro não entrar nessa seara, prefiro preservar minha cliente.” Indagado sobre o empréstimo obtido por sua empresa com a ajuda de Michelle, ele encerrou a conversa. “Vamos desligar, essa conversa não está legal.”

Crusoé procurou o gabinete da primeira-dama nesta quinta-feira, 30. A assessoria de Michelle Bolsonaro informou que responderia as cinco perguntas enviadas pela revista nas horas seguintes. Depois, desapareceu.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéA ótica de Márcia Barros, no Lago Sul de Brasília: dois empréstimos que somam 685 mil reais
A Caixa, por sua vez, limitou-se a enviar uma nota com uma manifestação genérica, que passa ao largo das perguntas pontuais sobre os pedidos feitos pela primeira-dama e sobre o papel do presidente do banco, Pedro Guimarães, na liberação dos empréstimos.

Diz a nota: “A Caixa informa que a concessão de crédito em todas as suas linhas passa por rigoroso processo de governança, compliance e análise de riscos independente. No caso do Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, anteriormente à análise de crédito dos bancos operadores do programa, há uma avaliação de enquadramento por parte da Receita Federal, que notifica as empresas validadas. Apenas as empresas indicadas e munidas de aprovação pela Receita Federal passam pelo rito de governança da Caixa quando da solicitação do crédito, o que inclui análise por sistema de riscos, em um processo totalmente automatizado e sem interação humana. Ao todo, foram concedidos mais de 22 bilhões de reais pelo Pronampe a mais de 240 mil micro e pequenas empresas. Ademais, na condição de banco público, a Caixa recebe, por meio de sua área de Relacionamento Institucional, solicitações como dúvidas e consultas acerca de seus produtos e serviços, que são encaminhadas para avaliação técnica e impessoal pelas áreas negociais e posterior retorno diretamente aos clientes”.

No caso em questão, impessoalidade foi tudo o que faltou.

Colaborou Ana Viriato

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