Pedro Ladeira/Folhapress"A esquerda se coloca como protagonista na luta contra o machismo, o autoritarismo, as fake news, mas adota práticas semelhantes para atingir quem ela enxerga como adversário"

‘Nova política não significava nada’

A deputada Tabata Amaral diz que as práticas dos que prometeram renovar a política são velhas e que os ataques sofridos por defender uma terceira via expuseram a hipocrisia da esquerda
01.10.21

Criada na periferia de São Paulo pela mãe diarista e pelo pai cobrador de ônibus, Tabata Amaral sempre se definiu como progressista. Antes de estrear na política, elegendo-se deputada federal em 2018 pelo PDT, a jovem de 27 anos parecia reunir todas as credenciais para ser a cara nova de uma esquerda não sectária. A parlamentar, no entanto, não demorou para perceber que parte majoritária da esquerda condena a ficar na trincheira oposta quem não reza estritamente pela sua cartilha – qualquer semelhança com os métodos do bolsonarismo não é mera coincidência. Como adota postura independente, Tabata acabou carimbada como inimiga pelos dois extremos do espectro político. Os ataques que mais a surpreendem são os que partem do campo progressista, com o qual cultiva mais afinidades.

Nos últimos dias, a deputada foi vítima da ira de setores do petismo porque defendeu que era preciso “furar a bolha da esquerda e da direita para chegar ao povo”. No sábado, 18, o ator José de Abreu, lulista de primeira hora, retuitou – ou seja, endossou e ainda espalhou para os seus – uma publicação de um outro usuário que afirmava: “Se eu encontro (Tabata) na rua, soco até ser preso”. Diante da repercussão negativa e a um artigo da deputada na Folha de S. Paulo, Abreu publicou um artigo no mesmo jornal, em que fez malabarismo verbal para fingir pedir desculpas a ela.

Há dez dias, Tabata se filiou ao PSB, após conseguir na Justiça Eleitoral uma decisão favorável para deixar o PDT sem perder o mandato. Tachada de “traidora”, a parlamentar teve sua expulsão defendida pelo presidenciável Ciro Gomes, depois que ela votou a favor da reforma da Previdência. Nesta entrevista a Crusoé, a deputada lamenta a “hipocrisia” dos grupos feministas que se calam diante das ofensas e ameaças feitas por gente da esquerda e diz que uma das principais ironias da política brasileira é que a maioria das pessoas eleitas sob a bandeira da nova política, incluindo Bolsonaro, tem práticas tão antigas quanto às da sua tataravó. Eis os principais trechos.

A sra. listou em um artigo uma série de xingamentos e ameaças que já recebeu por causa de sua atuação como parlamentar. É pior ser atacada pela esquerda ou pela direita?
Quando a gente fala sobre agressão e ameaça de morte e, infelizmente, eu tenho uma boa quantidade vinda dos dois lados, é difícil dizer o que é pior. Encaro essas agressões e ameaças como uma tentativa de silenciamento, que mostra que eu estou incomodando e que nossa democracia é muito frágil. Pessoas públicas se sentem confortáveis para compartilhar uma ameaça de agressão física acreditando que vão sair impunes. Tenho o entendimento de que os motivos dos dois lados são diferentes. Não sei se um é melhor ou mais justificável do que o outro. Como estou no campo progressista, os ataques que vêm da extrema-direita estão relacionados à discordância profunda da visão de mundo que eu defendo. Os ataques que vêm da esquerda são mais motivados por disputa de espaço. Quando defendo a mesma visão de mundo progressista, do combate à desigualdade, da defesa da educação pública, mas também a responsabilidade fiscal, a eficiência do estado, que é o único caminho que a história nos mostra ser possível para o Brasil ser um país justo e desenvolvido, eu apresento uma alternativa para as pessoas que também têm sensibilidade social, mas discordam das teses que estão presentes hoje de forma mais majoritária na esquerda. É difícil dizer qual é pior.

Os ataques da esquerda ofendem mais por virem de pessoas com as quais a sra. tem certa afinidade ideológica?
Me surpreendem mais. Eu realmente me indigno com as duas coisas. Porque nem discordância, nem disputa por espaço deveriam motivar ataques. O que me surpreende mais em uma parte da esquerda é gastar tanta munição para fazer aquilo que se condena do outro lado. A esquerda se coloca como protagonista na luta contra o machismo, o autoritarismo, fake news, contra ataques violentos, tudo o que a gente critica no governo Bolsonaro, mas adota práticas semelhantes para atingir quem ela enxerga como adversário. O discurso está mais descolado da prática neste caso.

Ser mulher a deixa mais exposta aos ataques? 
Tenho muitos dados para essa resposta. Mais do que achar ou sentir, eu tenho certeza disso. É importante dizer que a discordância política faz parte do jogo e eu tenho plena consciência de que o que incomoda são as minhas ideias, minhas práticas. Recebo esses ataques por questionar os caminhos dentro do campo progressista. Essa é a origem. Posso citar inúmeros exemplos. Oito pessoas do meu antigo partido (o PDT) votaram a favor da reforma da Previdência e o único nome que foi alvo de uma série de ataques foi o meu. Foram votos que não foram discordantes do partido, que nunca fechou questão, mas de suas lideranças, por uma questão eleitoral. Ninguém que critica certos dogmas da esquerda é tão criticado ou alvejado quanto eu. Um homem jamais receberia o tipo de ataque que eu recebo. Ele não teria sua integridade física ameaçada diariamente, não seria alvo de ataques envolvendo sua aparência, sua vida sexual, não teria sua inteligência e legitimidade questionadas. Isso é algo que consigo demonstrar, assim como um mais um é igual a dois. Incomodo porque sou diferente. Sou ofendida e ameaçada porque sou uma mulher jovem. Essa diferença é vista como um ultraje para algumas pessoas.

Pedro Ladeira/FolhapressPedro Ladeira/Folhapress“Ninguém que critica certos dogmas da esquerda é tão alvejado quanto eu”
Por que muitas feministas se calam quando a sra. é alvo de ataques machistas?
Eu interpreto de duas formas. Eu nunca deixei de me posicionar contra uma agressão a uma liderança feminina. Você vai encontrar defesas contundentes de mulheres como Marina Silva, Dilma Rousseff, Manuela D’Ávila, Simone Tebet, Joice Hasselmann. Eu realmente não olho para o partido. E você não vai encontrar uma manifestação minha dizendo assim: discordo dela, mas está aqui a minha solidariedade. Quando se está falando de violência, não importa se você concorda com ela ou não. O que as pessoas querem é uma defesa irrestrita contra a violência e contra o machismo. Esse silêncio dói pra caramba. Vejo duas coisas por trás disso. A primeira é que nem todo mundo topa combater o machismo sem olhar para o alvo e para o agressor, o que mostra como o machismo é estrutural e como temos uma longa batalha pela frente. A segunda é o medo. Muitas mulheres sentiram dor pelo que aconteceu, queriam se posicionar, mas não tiveram coragem, não estavam dispostas a bancar a onda de comentários que viriam contra elas, caso me defendessem. Uma das coisas mais difíceis do meu mandato é me posicionar com firmeza, independentemente das reações nas redes sociais. Eu vi ainda algumas mulheres se posicionando contra os ataques, mas sempre ressaltando que discordavam de mim, o que também é reflexo do medo de serem questionadas por seus seguidores. Por mais que eu não aja assim, consigo ter empatia em relação a esse medo.

O episódio mais recente envolve o ator José de Abreu, que é declaradamente petista e reincide nas ofensas contra mulheres. A esquerda é hipócrita ao ignorar esse tipo de comportamento?  
Ele já cuspiu em uma mulher, me chamou de canalha, gravou um vídeo cheio de ataques contra mim. É um caso típico de um agressor de mulheres em redes sociais. Não é um caso isolado. Sem dúvida, é uma hipocrisia. Todo mundo que diz lutar pelos direitos das mulheres, contra a violência, e se silencia, endossa pessoas como ele e é conivente com o que acontece. Talvez esteja mais clara a hipocrisia da esquerda neste momento, mas o machismo é a coisa mais suprapartidária que existe na política. Infelizmente, a gente não encontra nos partidos de esquerda, na prática, uma situação muito diferente do que a gente encontra nos partidos de direita.

A sra. já disse que Ciro Gomes, que era seu admirador e passou a criticá-la depois de seu voto a favor da reforma da Previdência, em 2019, só se opôs ao projeto aprovado na Câmara por razões eleitorais, e não ideológicas. Foi uma decepção?
O Ciro sempre soube da minha posição (a favor da reforma), até porque essa era a posição dele. No dia da votação, eu liguei para ele e ele me disse que o (Carlos) Lupi (presidente do PDT) não tinha mudado de posição. E falou que era para eu votar contra, porque política é assim. Expliquei minhas razões, falei que era um projeto completamente diferente do que veio do governo, construído na Câmara, muito parecido com o que ele (Ciro) havia defendido. Desliguei o telefone achando que estava tudo bem, mas depois comecei a receber os links de tudo o que ele estava falando de mim no dia seguinte. Obviamente, fiquei magoada. Analisando friamente, entendo que ele precisava, na cabeça dele, fazer naquele momento um movimento à esquerda. O Lula estava preso, o PDT achava que poderia herdar os votos do PT e ele me viu como alvo fácil para fazer esse ponto. Foi extremamente machista e autoritário. Nesse sentido, ele só se iguala a boa parte das nossas lideranças políticas. Foi uma decepção, muito difícil, mas um aprendizado do que vou encontrar quase que diariamente por muitos anos ainda. Coube a mim mostrar que política não é assim, tem espaço para uma política diferente. E eu não sou um alvo fácil. Posso ter aparência de uma menina, mas luto com firmeza, convicção e coragem por aquilo que acredito.

Pedro Ladeira/FolhapressPedro Ladeira/Folhapress“(Ciro Gomes) Foi extremamente machista e autoritário”
A sra. acabou de se filiar ao PSB, que também puniu parlamentares que votaram a favor da reforma da Previdência em 2019. A mudança para o mesmo partido de João Campos, prefeito de Recife e seu namorado, foi mais por conveniência política, falta de opção ou por crença de que o PSB é diferente?
Eu não sou menos estratégica do que homens que estão na política. Sempre soube que essa decisão seria interpretada como “Tabata está indo para o partido do namorado”, que é o machismo nosso de cada dia. Acho que nesses dois anos eu mostrei o quanto eu sou estratégica e tenho ideais fortes. Não fui para o PSB por causa do meu namorado, mas porque é a melhor opção que encontrei aqui em São Paulo. A principal lição que tirei desse processo tão traumático no PDT foi quão ruim é estar em um partido totalmente personalista, onde, se você discorda do cacique do partido, você não tem para onde ir. Não há diálogo. Isso foi muito importante para mim. Eu não quero estar em partido com dono. Partido deveria ser grupo. Como alguém que é progressista, não procurei partidos de direita. Queria um partido grande, com musculatura, que eu pudesse filiar pessoas e que não tivesse uma única liderança que manda no partido há 30 anos. O PSB tem lideranças que divergem entre si, que estão unidas nos valores mais essenciais, mas pensam o Brasil de forma diferente, e isso não é um problema. Para mim era inegociável estar em um partido em que eu pudesse continuar atuando com essa visão de mundo, e o que eu ouvi das lideranças do PSB, quando me fizeram o convite, foi que a minha visão de mundo cabe no partido.

Dias atrás, o teólogo Leonardo Boff reproduziu nas redes sociais uma crítica recorrente feita pela esquerda de que a sra. defende os interesses das elites e não da periferia, que é a sua origem, porque estudou em Harvard com uma bolsa da fundação criada pelo empresário bilionário Jorge Paulo Lemann. Como a sra. responde a esse tipo de crítica?
Se você olhar nas entrelinhas, é assustador como uma parte da esquerda que diz lutar pela emancipação das pessoas por meio da educação se incomoda com uma mulher que ganhou um bolsa em uma faculdade americana, que é considerada uma das melhores do mundo, para estudar ciência política e astrofísica. O próprio Leonardo Boff já disse que eu tinha ido para Harvard, mas não havia aprendido a pensar. É essa coisa antiquada, machista, achar que uma mulher jovem que vem da periferia não consegue pensar pela própria cabeça. A minha independência intelectual assusta, dá medo, incomoda. A resposta que eu dou para quem diz que sou financiada por banqueiros é que eu fui financiada, sim, pelos meus professores que pagaram quando eu não tinha dinheiro para comprar passagem de ônibus ou uma roupa para ir às premiações. Foram eles que me ajudaram a conquistar minha bolsa em Harvard. Fico com o que eu trouxe. Devia ser objeto de estudo como a minha liberdade intelectual incomoda essas pessoas e como elas estão dispostas a abrir mão de suas bandeiras, da defesa de uma educação emancipatória, da luta contra o machismo, em prol desse incômodo.

Por que a esquerda tem facilidade para tratar de políticas sociais, mas repele o debate sobre o equilíbrio das contas públicas, que é essencial para custear os programas?
Venho de um lugar onde a gente não debate sobre esquerda e direita. A gente não debate isso na minha casa, na minha igreja, na minha comunidade. Então, eu cheguei na política sem saber quais eram os dogmas da esquerda e os dogmas da direita. Ao longo do tempo eu via que a minha visão de mundo é mais associada à centro-esquerda, mas quando me deparo com qualquer questão, quero saber o que realmente funciona. Vamos ouvir as pessoas, olhar os números. Não conheço outra experiência democrática, e democracia para mim é um valor inegociável, que permite que a gente seja justo e desenvolvido, se não for na busca de um estado eficiente, na busca por responsabilidade fiscal. O que mais me frustra é como interesses organizados ditam as discussões no Congresso, de um lado e de outro. À direita, tem gente que defende a liberdade econômica, mas desde que não mexa no setor empresarial que ela representa. À esquerda, as pessoas dizem defender os interesses do povo desde que não mexa nos interesses da corporação que as elegeram. Meu sonho é que a gente tenha um Congresso, da esquerda à direita, que tope debater interesses difusos, o que é bom para a população que não está organizada, bom para o desenvolvimento econômico, e que não tem representante fazendo lobby. Para mim, esse é um dos maiores males da nossa política. Não há espaço para defender interesses difusos. Cada debate é em torno de interesses organizados.  

Como superar os egos para que haja uma candidatura competitiva contra a polarização entre Lula e Bolsonaro?
Acho que a gente não deveria estar tão angustiado com o fato de ter muitos nomes hoje. A provocação que eu faço é que essas pessoas precisam dizer a que vieram, e qual projeto de país defendem. Não basta dizer que não é Lula nem Bolsonaro. Qual a proposta para a educação, para a economia? A gente foi para as urnas em 2018 para votar em A porque não queria B, ou para votar em B porque não queria A, e não tinha ideia do que fariam na educação, na área ambiental. Vamos colocar as propostas na rua para debater. Sempre brinco que tem um negócio chamado voto, que essa decisão não vai acontecer em Brasília. Quem decide é o povo. E na cabeça da população a eleição não começou. Quem quer falar de eleição agora com o preço do gás como está, com o desemprego, com tudo o que a população está enfrentando na ponta? 

Rivaldo Gomes/FolhapressRivaldo Gomes/Folhapress“A minha independência intelectual assusta, dá medo, incomoda”
 A sra. é um dos símbolos da renovação política de 2018, mas o que o país viu logo em 2019 foi um acordão que pôs novamente em cena o protagonismo da velha política. A nova política fracassou?
Em 2018, falou-se muito sobre a nova política e não demorei a entender que isso não significava absolutamente nada. Bolsonaro se elegeu como representante da nova política, assim como várias outras pessoas que têm práticas tão antigas quanto minha tataravó. Essa é a maior das ironias da política brasileira. Eu encontrei no Congresso alguns parlamentares que estão lá há décadas, que pensam o Brasil e que, até onde consta, têm um mandato honesto. Hoje, estou menos preocupada se a pessoa chegou agora ou já estava lá e mais preocupada com a boa política. Quem me conhece sabe que eu denuncio as emendas do relator (refere-se ao orçamento paralelo), o toma lá dá cá do Congresso. Não tenho medo de combater essa corrupção, não, mesmo que isso custe espaço na Câmara. Tenho muita convicção de que a política vai ser melhor quando tiver a cara do povo, quando tiver mais mulheres, mais negros, mais periféricos, mais jovens. A gente tem que primeiro qualificar o que é a boa política e isso passa por analisar os dados do país, ouvir a realidade das pessoas e, obviamente, não ser populista. E não simplesmente trocar o que é considerado velho pelo que é considerado novo, achando que vai dar tudo certo. As pessoas trocaram em 2018, elegeram Bolsonaro, e a olha a tragédia que virou.

O país já adotou cota de financiamento eleitoral para candidaturas femininas e agora discute cota de 30% das vagas nas eleições proporcionais para mulheres. Qual é o impacto dessas medidas na política? 
Essa política de cotas é fundamental. Tem um estudo do Fórum Econômico Mundial que diz que a gente vai levar mais de cem anos para atingir a igualdade de gênero na política no Brasil. Outros estudos internacionais mostram que, onde há mais mulheres na política, há redução da corrupção e melhoria dos índices econômicos. Tem estudos no Brasil que mostram que, com mais mulheres eleitas, se reduz a mortalidade infantil. Estou dizendo isso matematicamente. Talento, liderança, o quanto uma pessoa pode contribuir na vida pública, não tem nada a ver com raça, com gênero ou com orientação sexual. Mas se mais da metade dos filiados a partidos políticos são mulheres e nós só temos 15% de representação no Parlamento, é porque há barreiras e violências absurdas que tiram as mulheres da política. Então, eu vejo a reserva temporária de cadeiras, que são as cotas, como uma forma de acelerar essa mudança tão necessária para produzir uma política boa tanto para homens quanto para mulheres. 

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