DiogoMainardina ilha do desespero

Janela com vista

01.10.21

A janela é a melhor coisa que eu tenho. Uma janela, em particular. Uma janela gótica, com vista para o Canal Grande. Canaletto pintou minha janela inúmeras vezes, do lado de fora, mas nunca pintou de dentro. Henry James viu minha janela de dentro. Ele morreu, e a janela continua aqui. Eu vou morrer, e ela vai continuar aqui, com outra pessoa em meu lugar.

Nas primeiras semanas da epidemia, comecei a publicar no Twitter fotografias de minha janela. Era uma ode à quarentena. Devo dizer que, nesse ponto, levo uma vantagem sobre o resto da humanidade. Vivo em quarentena há 40 anos. Nunca saio de casa. E, dentro de casa, ocupo aproximadamente 40 metros quadrados. A quarentena apenas legitimou o que eu já sabia: permanecer enfurnado no próprio cativeiro é sempre a melhor escolha. O lockdown decretado pelo governo italiano para restringir o contágio só teve o efeito de corroborar meu isolamento patológico e de criar um álibi sanitário para a clausura. Em 1979, ouvi um toque de recolher interior e jamais o desrespeitei. E jamais o farei.

O enquadramento das fotografias da minha janela é eternamente igual. O ponto de vista é o da janela, e a principal qualidade dela é sua imutabilidade. Ela está aqui há 600 anos. O horário também se repete: o entardecer. O entardecer, que já é naturalmente cafona, atinge uma cafonice transcendental da minha janela. Está mais para calendário ou cartão-postal, com sua beleza imaculada, do que para Turner.

Um exemplo:

Diogo Mainardi

Minha janela, descortinando 600 anos de conhecimento no combate às epidemias, resiste ao obscurantismo de gente como Jair Bolsonaro, Luciano Hang e Nise Yamaguchi, que sabotaram a quarentena e mandaram os brasileiros para o matadouro. A vista ofende os imbecis e é ofendida por eles, que a veem como um insulto à minha pátria bananeira ou como um exibicionismo de riqueza. De fato, eu insulto os monstros da minha pátria bananeira, que contaminam meu expediente, e esfrego-lhes na cara algo melhor e mais rico do que eles – e que nunca serão capazes de compreender. Minha janela mostra a beleza sacrossanta do Canal Grande, mas mostra também a feiura profana desses dementes. Eles vão morrer. A minha janela vai continuar aqui.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO