Adriano Machado/Crusoé

Politicagem camuflada

O Ministério da Defesa entra no jogo da distribuição de verbas para agradar à base aliada do governo de Jair Bolsonaro no Congresso Nacional
24.09.21

O Brasil vivia a reabertura democrática, em 1985, quando o governo federal começou a desenhar um dos mais antigos programas oficiais destinados ao desenvolvimento da região amazônica. O Calha Norte, como foi batizado, surgiu como um plano para proteger as fronteiras e a soberania do país sobre a floresta. A ideia, para além de fortalecer a presença militar na região, era desenvolver projetos de infraestrutura e impulsionar políticas públicas para melhorar a vida dos brasileiros que vivem por lá. Os objetivos seguem os mesmos até hoje. Só que, no atual governo, o programa passou a ser flagrantemente usado como moeda política para agradar a políticos aliados do presidente Jair Bolsonaro.

A liberação das verbas segue a mesma lógica do orçamento paralelo. No fim de 2019, atendendo a um pedido do Centrão, Bolsonaro editou um decreto, que passou a vigorar em 2020, ampliando de 5 milhões de reais para 7,5 milhões de reais o teto do valor das emendas parlamentares que podiam ser destinadas por meio do programa. Ainda no ano passado, o Calha Norte começou a ser abastecido com verbas da chamada emenda de relator, o que possibilitou ao governo inflar o caixa do programa e ampliar o seu uso político e eleitoral.

Com essas duas medidas, o orçamento do programa saltou de 203 milhões de reais, em 2019, para 442 milhões de reais, em 2020, e 560 milhões de reais, em 2021. Para se ter uma ideia do impacto da mudança, mais da metade dos recursos orçados para este ano, um total de 350 milhões de reais, tem como origem a emenda de relator. O incremento no caixa coincide com o momento em que o governo deixa de lado as obras de infraestrutura, por meio do programa, e começa a injetar os recursos em obras com viés eleitoreiro, como construção de praças e arquibancadas de campos de futebol, além de pavimentação e iluminação de ruas.

Militar vistoria obra do Calha Norte no Amazonas: políticos aliados no controle
Mais de 80% das prefeituras contempladas são comandadas por políticos do Centrão, ou seja, aliados que devotariam fidelidade ao governo. Premiados pelo governo, esses aliados passam a ser responsáveis pela destinação dos recursos. O que acontece depois repete o modus operandi pernicioso que rege toda execução orçamentária baseada no toma lá dá cá: parte dos empenhos vai parar em obras superfaturadas, tocadas por empreiteiras ligadas aos mesmos políticos.

Hoje, o programa beneficia 442 municípios de dez estados da região Norte, além de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Maranhão. Assim como no orçamento secreto do Ministério do Desenvolvimento Regional, o Ministério da Defesa conta com uma planilha, guardada a sete chaves, onde os auxiliares do ministro Walter Braga Netto anotam os nomes dos prefeitos e senadores agraciados com recursos. Antes da chegada de Braga Netto à pasta, em março deste ano, a definição sobre a distribuição do dinheiro entre aliados cabia à Secretaria de Governo, comandada à época por Luiz Eduardo Ramos, que também era responsável pela planilha do Ministério do Desenvolvimento Regional. Com a mudança de comando na Defesa, o próprio Braga Netto tem negociado com senadores, escolhidos a dedo pelo Palácio do Planalto, o destino das verbas. Funcionários do governo e prefeitos chamam esses parlamentares de “donos regionais do Calha Norte”, já que são eles que, de fato, decidem onde e como o dinheiro será aplicado.

O senador Telmário Mota, por exemplo, aparece na planilha como “dono” do Calha Norte em Roraima. Às vésperas das eleições municipais de 2020, o político do PROS foi quem organizou a distribuição de dinheiro do programa para prefeitos aliados que concorriam à reeleição. Procurado, Telmário disse não ver problema no modelo. Afirma que a escolha de seu nome se deu por insistência dele próprio: “Quem mais chora, mais mama. Se você chorar, acaba mamando mais”. O senador confirma que o “gerenciamento” da liberação da verba do Calha Norte, às vésperas das eleições municipais de 2020, foi feito pela Secretaria de Governo, à época comandada pelo general Ramos. Telmário também admite, de forma até curiosa, que quem opera os recursos são os senadores aliados do governo: segundo ele, na atual gestão “ministérios são apenas barrigas de aluguel”.

Antônio Cruz/Agência BrasilAntônio Cruz/Agência BrasilO senador Telmário Motta escancara: “Quem mais chora, mais mama. Se você chorar, acaba mamando mais”
Seguindo a mesma lógica de Roraima, no estado do Mato Grosso quem aparece como “dono” do Calha Norte é Wellington Fagundes, do PL.  O senador do Centrão se gaba de ter destinado o dinheiro da Defesa para mais de 60 municípios administrados por prefeitos aliados. “Uai, parlamentar trabalha com suas bases. Como senador, eu procuro atender o estado inteiro. Se eu pudesse atendia os 141 municípios. Como não dá para atender todo mundo, a gente faz escolhas”, justifica.  O senador, mesmo admitindo o uso político do programa, diz que o Calha Norte não permite desvios de verba pública ou roubalheira porque é gerido sob a “rigidez militar”“Esse ano, se eu puder botar os recursos todos pelo Calha Norte, eu vou botar”, diz Fagundes, que reconhece ter tratado da liberação das verbas com Braga Neto.

Dentre os 60 prefeitos que Fagundes diz ter ajudado, está Janailza Taveira Leite, que conseguiu se reeleger no ano passado na cidade de São Félix do Araguaia. Faltando exatos 19 dias para o pleito de 2020, a prefeita foi agraciada com dois empenhos que totalizaram 3 milhões de reais.“Foi realmente através do senador Wellington Fagundes. Fiz divulgação da obra na minha cidade na época da eleição. Até os imóveis valorizaram mais, só porque a gente falou que ia ter essa obra. Deu um apoio político na campanha, para a reeleição”, afirma Janailza. A prefeita antecipa que seu apoio, em 2022, “sem dúvida, será para Bolsonaro”“Bolsonaro paga os recursos tudo de uma vez”, diz ela.

Só em Mato Grosso, mais de 40 milhões de reais foram liberados, às vésperas do pleito de 2020, para prefeitos aliados que buscavam a reeleição. Quase a totalidade da verba foi para municípios governados por políticos filiados ao PP, PSL, Podemos, DEM e PL. A exceção foi o prefeito de Cuiabá, Emanuel Pinheiro. Ele é do MDB, que no Congresso adota postura independente em relação ao governo e ensaia uma candidatura própria ao Planalto em 2022. O emedebista de Cuiabá sempre foi apoiador declarado de Bolsonaro. No dia 13 de outubro de 2020, foi aprovada a liberação de 2,2 milhões de reais ao município. Dias depois, ainda antes das eleições, Pinheiro recebeu mais 3 milhões de reais, o que fez a cifra total ultrapassar os 5 milhões de reais em menos de um mês. O prefeito foi reeleito e hoje grava vídeos repletos de elogios a Bolsonaro. O material passou a ser compartilhado pelo próprio presidente em suas redes.

Edilson Rodrigues/Agência SenadoEdilson Rodrigues/Agência SenadoEduardo Gomes, amigão de Flávio Bolsonaro: no Tocantins, é com ele
No Tocantins, quem controla a destinação das verbas do Calha Norte é outro emedebista: o senador Eduardo Gomes, atual líder do governo no Congresso e amigo dileto do senador Flávio Bolsonaro, o filho 01 do presidente. “Quem mandou esse dinheiro extra aí no ano passado foi o Eduardo Gomes. Saiu antes da minha reeleição”, confirma o prefeito de Miranorte, Antônio Carlos Martins Reis, do mesmo partido do senador. O prefeito foi contemplado com 500 mil reais em 10 de setembro de 2020. Em Rondônia, prefeitos só conseguem dinheiro do Calha Norte com a bênção do senador Marcos Rogério, do DEM, integrante da tropa de choque de Bolsonaro na CPI da Covid. Adailton Furia, prefeito de Cacoal pelo PSD, por exemplo, conseguiu 7 milhões de reais, em julho deste ano, depois de um “beija mão” em Brasília, que incluiu uma visita ao gabinete de Marcos Rogério.

Ao todo, o Calha Norte injetou dinheiro em mais de 100 municípios da região amazônica, para turbinar as campanhas eleitorais de prefeitos aliados, quase todos do Centrão, que concorriam à reeleição. Eles receberam, em pouco mais de um mês, mais de 150 milhões de reais. O valor foi empenhado antes da eleição. Apesar de boa parte da verba não ter caído de imediato na conta das prefeituras, o simples empenho já possibilitou que os candidatos se capitalizassem politicamente durante a campanha.

Passado o período eleitoral, a estratégia mudou. Uma vez que o objetivo de eleger aliados já havia sido cumprido, prefeitos de municípios menores deixaram de receber recursos. O governo passou a privilegiar, então, prefeitos de capitais, donos de maior influência política, e também governadores. Entre os principais beneficiários está o governador de Roraima, Antônio Denarium, aliado de primeira hora do presidente. Denarium, que está sem partido e tem dito que só vai se filiar a uma nova sigla após Bolsonaro decidir seu novo destino, recebeu quase 100 milhões de reais. Não há registro de repasses para estados governados por políticos que não sejam aliados do Palácio do Planalto. Indagado sobre os critérios adotados para a distribuição dos recursos, o Ministério da Defesa não respondeu às perguntas enviadas por Crusoé. Desde que passou ao comando de Braga Netto, aliás, a pasta tem ignorado sistematicamente questionamentos do tipo. Talvez seja porque está ocupada com outros afazeres — o fisiológico jogo político do Planalto, afinal, toma tempo e energia.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Tenho pena do Telmario, autor desta excelente matéria, simplesmente porque tanto o tema quanto seus personagens são muito indigestos. E pensar que nós contribuintes somos os que bancam esta farra!

  2. O Brasil, principalmente A IMPRENSA, precisa aprender o que significa democracia! De fato, trata-se menos de “projetos” (tecnocracia) e mais de escolhas do povo. Se tais obras são “eleitoreiras” é pq os eleitores as preferem (até onde podem “preferir”). Claro que a centralização federal (recursos, legislação, etc) corrompe absurdamente (em vários sentidos) esse processo, mas a reação é sempre a oposta do q deveria: ao invés de descentralização e mais democracia, mais centralização e tecnocracia.

    1. E o brasileiro tem que entender que essa forma de responder a política, em que o objetivo não é o projeto de país, mas o projeto da ponte, do estádio ou da praça pública, nos trouxe até aqui, fomentando currais eleitorais e corrupção num círculo vicioso inquebrável.

  3. Se o projeto fosse eficiente, se os prefeitos fossem probos, se o governo fosse capaz, se os cidadãos fossem esclarecidos… são muitos “se”, sabemos que mais verbas não significam necessariamente um melhor desempenho…

  4. Bolsonaro declarou que vai ter eleições em 22. Falou até bem da urna eletrônica e do Ministro Barroso. Só falta dizer que passará a faixa presidencial ao Lula. Do jeito que a coisa anda, logo confirmará isso também. Cruz credo!

  5. BOLSONARO É MAIS DO MESMO. Continuamos sendo um país assolado pela corrupção e a ineficiência. Precisamos de um Presidente que pense o Brasil em sua plenitude. Será que esses investimentos são os mais prioritários? São os mais estratégicos para o país? Ou são somente aqueles, onde tem uma negociata já acertada? Por isso que precisamos de Moro Presidente. O exemplo vem de cima. Moro 2022 🇧🇷

    1. Moro não conseguiria governar, sem apoio do legislativo, assim como todos que aquela faixa usaram. Ou faz acordo e esse acordo sempre foi e será liberar verbas para o legislativo aparecer para seus eleitores ou fica sendo derrotado no congresso e, nada anda. Com mobilização popular de grande monta forçaremos os políticos atuarem verdadeiramente no que exigimos. Mas a massa precisa eleger quem apoie seu PR para dar sustentação política. Mesmo assim, verbas continuarão existindo, é constitucional

  6. Toma tempo, energia e assalta os bolsos dos brasileiros. O Brasil tem sido um grande palco de corrupção. O bolsonarista que se atreve a dizer que não tem corrupção é doente da cabeça. Infelizmente. É o Bolsopetismo.

  7. MILITARES BOLSONARISTAS: os EXEMPLOS EXECRÁVEIS que uma SOCIEDADE tão CORRUPTA é capaz de produzir! São DEGENERADOS MORAIS que IMPEDEM o BRASIL de AVANÇAR! Em 2022 SÉRGIO MORO “PRESIDENTE LAVA JATO PURO SANGUE!” Triunfaremos! Sir Claiton

    1. Acabo de ter uma ideia - vou criar uma criptomoeda com esse nome ... hehe

    2. Uaii.. e se o sobrenome fosse Escalafobético teria alguma diferença nas atitudes do cara? Meu tio chama-se Exponencius Vlircaiminfis, e, a propósito, é atualmente, o único brasileiro indicado a Prêmio Nobel de Química. Tens alguma coisa contra?

Mais notícias
Assine agora
TOPO