Reprodução/YouTube"Quem acha que vai dobrar a Polícia Federal fácil assim está muito enganado. Eles não perdem por esperar"

‘Querem fazer um país baseado no crime’

O delegado da Polícia Federal Alexandre Saraiva, afastado de um cargo de chefia após pedir investigação sobre o ex-ministro Ricardo Salles, fala sobre as tentativas do governo de interferir na corporação
24.09.21

Faz cinco meses que o delegado Alexandre Saraiva foi colocado na “geladeira” da Polícia Federal. A transferência para a delegacia de Volta Redonda, no interior do Rio de Janeiro, onde lida com pequenos delitos, como falsificação de moeda, foi um castigo imposto pela cúpula da corporação em razão de seu último ato como superintendente no estado do Amazonas. Saraiva perdeu o posto após apresentar uma notícia-crime ao Supremo Tribunal Federal contra Ricardo Salles, apontando indícios de envolvimento do então ministro do Meio Ambiente com um esquema de extração ilegal de madeira da Amazônia. “Voltei à estaca zero da carreira. Faço hoje o que fazia há 18 anos, quando entrei na polícia”, diz.

Aos 50 anos, Saraiva não se mostra resignado, e fala sem reservas sobre o atual momento da Polícia Federal, em que outros delegados que incomodaram poderosos têm sido submetidos ao mesmo tratamento. “Não me conformo com a geladeira”, desabafa. À diferença de colegas que optam pelo silêncio por temerem represálias, ele não se exime de falar sobre como o atual governo tem conseguido enfraquecer o trabalho de investigadores da PF e, ainda, a atuação de órgãos federais de proteção ambiental que deveriam estar atuando contra o desmatamento na Amazônia, por exemplo. “Querem fazer um país baseado no crime”, afirma nesta entrevista a Crusoé. O delegado acredita, porém, que haverá reação: “Cada policial sabe que tem sua missão e ninguém vai se curvar a isso”.

O presidente Jair Bolsonaro disse na Assembleia-Geral da ONU, na terça-feira, 21, que está comprometido com a preservação da Amazônia e que o desmatamento diminuiu no atual governo. Ele mentiu?
Basta olhar uma imagem de satélite que ele vai ver que não é bem assim. O que a gente vê é uma destruição grande, nítida, e não precisa ser especialista para ver que a destruição está acontecendo de forma muito acelerada. O governo brasileiro tem imagens de satélite diárias e dá para ver o que foi desmatado hoje, ontem, anteontem. Antes de ter acesso a essas imagens, eu não tinha ideia da competência dos criminosos. Só não enxerga isso quem não quer ver. Vale tanto para o presidente como para os países que compram madeira da Amazônia, e para nós do Sudeste que compramos madeira da Amazônia. Afirmo, sem medo de errar: 99% da madeira nativa extraída do Brasil vem de ilegalidade, tem origem criminosa. Chamar aquele pessoal de empresário (refere-se aos madeireiros) é uma ofensa aos verdadeiros empresários. Eles são bandidos e a prova disso é que vários traficantes de drogas migraram para a exploração de madeira.

Qual é o tamanho da responsabilidade do governo federal no avanço do desmatamento?
Primeiro: qual é o órgão mais importante para o combate ao desmatamento e para a proteção ao meio ambiente no Brasil? É o Ibama, que é federal. O Ibama foi desarticulado, deixou de ter operacionalidade. Essa responsabilidade é inegável e causou um problema imenso. Segundo ponto importantíssimo: apesar de os estados terem atribuição para autorizar ou não o desmatamento, quem gerencia é o governo federal, por meio do Sistema de Documento de Origem Florestal, o Sisdof. Nós sempre tivemos acesso ao sistema, e o link era público. Desde maio, esse acesso não existe mais. É a mesma coisa que tirar da Polícia Militar, por exemplo, o acesso ao sistema do Detran, e a polícia ficar impossibilitada de verificar se um carro é furtado ou não. Hoje, nós, Polícia Federal, Receita Federal, Polícia Rodoviária Federal, estamos cegos para a madeira ilegal, porque não tem como conferir.

Isso ocorreu depois que o sr. protocolou a notícia-crime contra o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e foi exonerado?
Exatamente. Não foi só a minha exoneração, mas também a do delegado (Franco Perazzoni) que estava à frente da Operação Arkuanduba (investigação que apurava exportação ilegal de madeira) e a exoneração verbal do delegado Rubens (Lopes da Silva), que era chefe da divisão do Meio Ambiente. Nós três trabalhamos nas operações que atingiram o Ministério do Meio Ambiente e, coincidentemente, fomos afastados.

O sr. atribuiu o afastamento à força política de ruralistas dentro do governo?
Acho que esse termo “ruralista” é abrangente. Tem o agronegócio esclarecido e o agronegócio atrasado. O agronegócio atrasado é o que eu chamo de ruralista, e é ele que cola com o madeireiro ilegal, que não tem nada de agricultor nem de pecuarista, mas se confunde ali. Isso é até uma burrice enorme, porque a madeira ilegal nativa representa um percentual pequeno do nosso PIB, mas ela contamina o agronegócio, que é uma força grande do Brasil. Hoje, o que desmata a Amazônia é a madeira ilegal. É o que financia (o desmatamento). Depois é que vêm a pecuária e a agricultura. Como estratégia de estado para combater o desmatamento, o certo é cortar o financiamento do criminoso, que é a madeira. A madeira da Amazônia teve um aumento exponencial no mercado internacional na última década, especialmente nos países asiáticos, onde a produção interna entrou em colapso por causa de uma exploração irracional. Isso não é necessariamente ruim, se a gente extrair de forma racional e não da forma como estamos fazendo hoje. A coisa está tão descontrolada que, nos Estados Unidos, o ipê, que demora mais de 500 anos para se formar, está sendo vendido mais barato do que o pinus, que leva cinco anos. Como os madeireiros roubam as madeiras, ou seja, não pagam nada por elas, eles nem sequer aproveitam toda a matéria-prima. Vendem 25% da tora, 10% de uma árvore que a natureza levou 500 anos para formar. Por isso é que eu insisto: não é só um crime contra o meio ambiente, é um crime contra o patrimônio público brasileiro.

Que recado a direção da Polícia Federal passou com a sua demissão?
Foi o pior possível. Porque há muito tempo alguns parlamentares já vinham pedindo a minha cabeça. E não era nem nos bastidores, eles mandavam ofício para os superiores. Defendem bandido abertamente, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Até dois anos atrás, se houvesse alguma articulação para derrubar um superintendente da PF, ele não cairia, mesmo que ele quisesse sair. Já vi isso acontecer. Digamos que tenha sido só uma coincidência (a exoneração após o pedido de investigação de Salles). Foi extremamente inoportuna. Sinalizou muito mal, internamente e para a sociedade. Foi um desastre.

Evandro Freitas/Jornal Folha do AçoEvandro Freitas/Jornal Folha do Aço“Havia uma erosão dos avanços alcançados pela Lava Jato. E ela chegou num momento que esses avanços passaram a ser muito mais rápidos”
Afinal, a PF se curvou aos interesses de quem?
Quando aconteceu comigo, eu ainda dei o benefício da dúvida. Mas quando saem os outros colegas, todo mundo que investigava as questões do meio ambiente, é claro que isso não é coincidência. É claro que isso é interesse de madeireiro ilegal, de parlamentar, de ministro do Meio Ambiente que caiu. Lógico. Foram eles que pediram, certamente.

No fim de agosto, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, afastou o delegado Felipe Leal, que presidia o inquérito que apura a suposta interferência política de Bolsonaro na PF, depois que ele pediu diligências envolvendo atos do diretor-geral, Paulo Maiurino. E a PGR decidiu investigar o delegado. O que esse episódio significa?
Primeiro, o delegado Felipe Leal é um profissional extremamente respeitado pelos seus colegas policiais. Houve até uma manifestação em defesa dele, da parte de mais de 800 policiais. É curioso que um inquérito que investiga intervenção política na Polícia Federal afaste um delegado em razão da linha investigativa que ele adotou. Se há uma interferência que é terrível, é justamente a de intervir na linha de investigação de um delegado. O delegado tem autonomia, é ele quem assina e a responsabilidade é dele. Agora, isso que a Procuradoria fez, querer investigar o investigador, é bizarro, é teratológico. Está cada vez mais difícil explicar o que está acontecendo. Não tem o menor cabimento.

O sr. vê ainda alguma autonomia da Polícia Federal em relação ao governo?
Por incrível que pareça, ela está na alma dos policiais que se insurgem. É uma resistência surda, mas potente. Não estamos passando por um momento bom. Quando o diretor-geral manda para o Supremo uma proposta para limitar a capacidade postulatória do delegado, para que ele não possa mais dirigir-se aos tribunais superiores sem passar pela direção-geral, é motivo de grande preocupação. Cada policial sabe que tem sua missão e ninguém vai se curvar a isso. Quem acha que vai dobrar a Polícia Federal fácil assim está muito enganado. Esse pessoal não conhece a Polícia Federal. Eles não perdem por esperar.

Dentro da PF, quando o sr. percebeu o início do processo de desmonte da Lava Jato?
Esse era um temor antigo. Não participei da Lava Jato, apenas na prisão do (doleiro) Alberto Youssef, que estava no Maranhão, e me ligaram para prendê-lo. Mas o que aconteceu na Itália, com a reação dos investigados na Operação Mãos Limpas, que conseguiram fazer um ajuste para não serem pegos pela lei, a gente percebia aqui. Havia uma erosão dos avanços alcançados pela Lava Jato. E ela chegou num momento que esses avanços, que no começo eram bem lentos, passaram a ser muito mais rápidos. Quando eu vi que estavam tentando transformar o juiz (Sergio Moro) e o procurador (Deltan Dallagnol) em réus, acabou. Virou a pá de cal.

Além da exoneração em abril, quais outras retaliações o sr. já sofreu na carreira?
Essa pressão de parlamentares sempre houve, desde quando fui para Roraima, em 2011. A diferença é que a gente tinha algum tipo de anteparo. Agora, estou respondendo a dois procedimentos disciplinares por duas entrevistas que eu dei, convidado como especialista em Amazônia, porque tenho uma formação acadêmica nessa área. Em 18 anos de polícia, nunca sofri nenhum tipo de admoestação disciplinar. Eu fiz doutorado com apoio da polícia, e o que eu disse nas entrevistas, defendi na minha tese. É uma injustiça extrema com alguém que sempre trabalhou e nunca deu problema para a PF. Eu só crio problema para criminoso e acho que esse é o meu trabalho. Agora, criar problema para criminosos virou algo não desejável. Estamos em um universo bizarro.

Evandro Freitas/Jornal Folha do AçoEvandro Freitas/Jornal Folha do Aço“Há muito tempo alguns parlamentares já vinham pedindo a minha cabeça. Defendem bandido abertamente”
O presidente sustenta que não há “corrupção concreta” no atual governo, a despeito, por exemplo, de sua apuração sobre extração ilegal de madeira e das graves suspeitas envolvendo a compra de vacinas na pandemia. Afinal, há corrupção no governo ou não?
É evidente (que há). Aquela situação encontrada (com madeireiros) no Pará, por exemplo, não tem como negar. O que vi ali foram fatos concretos. A fraude estava escancarada. A atuação dos parlamentares e do ministro defendendo os criminosos, escancarada. Não resta a menor dúvida. O maior inimigo da Amazônia é a corrupção, assim como o maior inimigo da saúde também é a corrupção. Nós somos um país rico, grande. Não era para estar do jeito que está. As pessoas não estão percebendo que, quando se desconstrói a Lava Jato, que era um fio de esperança para mudar esse quadro, a gente fecha um caminho melhor para mudar o Brasil.

Mudou algo na política ambiental brasileira depois que Ricardo Salles pediu demissão do ministério, em junho?
Não mudou nada. O sistema de controle do trânsito de madeira continua fora do ar até hoje. O desmatamento está aumentando, não está dando sinais de regressão. Apesar de existir hoje tecnologia suficiente para reduzir o desmatamento a níveis históricos, falta vontade política. A gente não usa essas ferramentas.

Os ruralistas afirmam que a legislação ambiental brasileira é muito restritiva e que isso impede o desenvolvimento em algumas regiões do país. É um argumento aceitável?
Não concordo com isso. Acho que a nossa legislação é até permissiva demais. Veja um estado como o Rio de Janeiro, que teve uma imensa área desmatada 80 anos atrás e até hoje não é ocupada nem pela agricultura, nem pela pecuária. Outro ponto é que, se não gostam da lei, é preciso alterá-la no Congresso antes. Enquanto a lei não for alterada, eles têm obrigação de cumpri-la. Querem fazer um país baseado no crime e não na lei.

O que o sr. achou da iniciativa do Congresso de aprovar uma quarentena para que juízes, procuradores e policiais como o sr. possam se candidatar a cargo eletivo?
É curioso que os parlamentares não são sujeitos a restrições, não é? Quando chega o período da eleição, eles somem de Brasília para fazer campanha. Essa quarentena é uma restrição do direito de cidadania do policial, do juiz, do procurador. Cidadão de bem não pode entrar na política. É esse o recado que está sendo dado? Se você for honesto, não pode; se você for condenado e acabou de sair da prisão, pode. Não faz o menor sentido sob o ponto de vista de quem quer o melhor para o país. Nós precisamos, e muito, é que boas pessoas entrem para a política.

O sr. tem pretensões políticas?
Se eu disser que nunca pensei no assunto, eu estaria mentindo. Não é a minha vocação. Gosto de ser policial. Lembro uma vez que o doutor Sergio Moro me perguntou se eu aceitaria ser presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio). Eu disse que não queria sair da polícia, mas que, se fosse para ajudar, eu iria. Acho que a gente precisa desse espírito público. Ou seja, não descarto, mas não é o meu objetivo de vida.

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