MarioSabino

Profanação

17.09.21

Na sexta-feira passada, enquanto leitores liam sobre a minha (a nossa) saudade de ir ao cinema, eu estava intubado no Hospital Albert Einstein, fazendo ablações cardíacas, para tentar contornar o meu problema de arritmia, assunto já abordado neste espaço, em fevereiro deste ano, na coluna intitulada Perdi o ritmo. Até prova em contrário, estou bem, obrigado, apenas tentando ficar em repouso impossível para o meu desassossego essencial.

Dar entrada num hospital é uma experiência existencial curiosa. Você assina um monte de papéis que consentem a médicos e enfermeiros o controle quase que total sobre o seu corpo, livrando-os de praticamente todas as responsabilidades jurídicas sobre o que porventura der errado. A cada internação por que passo (foram algumas nos últimos 13 anos), a papelada fica maior e mais detalhada. Desta vez, tive de assinar até uma declaração de que assisti ao vídeo sobre como evitar quedas dentro do quarto ou no corredor do hospital. Salvo engano, em dezembro, quando lá estive emergencialmente, isso ainda não existia. Não assisti ao vídeo, mas lancei o meu jamegão no documento. Aliás, devem ser pouquíssimos os que leem as declarações e autorizações que assinam. É compreensível: seria como ler as contraindicações e efeitos colaterais registrados na bula do remédio que o seu médico de confiança lhe prescreve. É preferível não ler, inclusive porque os mais sugestionáveis podem sentir o que talvez não sentissem.

A experiência existencial curiosa é esta: você se torna apenas um corpo a ser manipulado, picado, desligado, perscrutado, invadido (seja para queimar, congelar, raspar, colocar ou retirar coisas dele) e finalmente religado. Nessa entrega total, a sua única identidade é a pulseira de papel com o seu nome e código de barra, que não definem um indivíduo com história subjetiva, mas tão-somente um organismo com histórico clínico. Todas essas construções culturais de gênero e etnia, bem como o politicamente correto, são inexistentes num hospital. Ninguém pode autodeclarar nada que não seja estritamente biológico. Você é homem ou mulher. Você é preto, branco, asiático ou indígena. Você é velho ou moço. Você é gordo ou magro. Se medicamente contasse ser feio ou bonito, isso estaria no seu prontuário. As modificações eventuais que o paciente sofreu por vontade própria, mesmo as efetuadas por médicos, são fatores exógenos, quando não de risco.

Deitado na mesa cirúrgica, observando-me coberto de eletrodos, ocorreu-me que meu corpo era objeto de profanação, mas profanação asséptica. Fiz um paralelo com a prostituição, que também é profanação e na qual a entrega do corpo é igualmente renúncia momentânea à identidade. A prostituta se contenta em ser receptáculo do prazer alheio. Prazer, no mais das vezes, sem sentimento e trajetória. A entrega passa por um contrato, só que verbal, nos quais são estabelecidos os limites. Dentro de tais limites, que anestesiam as convenções sociais por determinado lapso de tempo, o cliente é o cirurgião que opera o corpo da prostituta da maneira que quiser. Só que, ao contrário do cirurgião, é ele quem paga a conta da profanação previamente combinada. O meu devaneio comparativo foi interrompido pela sedação, essa pequena e prazerosa morte — que é como os franceses definem a experiência do orgasmo, la petite mort.

Durante o processo de recuperação, ainda no hospital, você vai voltando a ser menos corpo e mais sujeito. Até que a pudicícia (uma forma de sacralidade) retorna, e a retirada da pulseira que leva o seu nome, depois que o médico lhe dá alta, concretiza paradoxalmente a reapropriação da sua identidade e da sua história subjetiva. História da qual o seu corpo faz parte como memória do que foi e do que não foi tangível, lindamente definida num poema do grego Konstantino Kaváfis, traduzido por José Paulo Paes: “Lembra, corpo, não só o quanto foste amado, não só os leitos onde repousaste, mas também os desejos que brilharam por ti em outros olhos, claramente, e que tornaram a voz trêmula — e que algum obstáculo casual fez malograr.”

Fora do hospital, o corpo é metafísico.

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