Dupla sem limites
A CPI da Covid aprovou nesta semana a convocação da advogada Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher de Jair Bolsonaro e mãe de Jair Renan Bolsonaro, o filho 04 do presidente. Foi, mais do que qualquer coisa, um gesto político. Pode ser que o depoimento nem seja marcado, até porque a comissão está prestes a encerrar seus trabalhos. Mas é inegável que o nome da ex do presidente passou a fazer parte do mais destacado rol de personagens das investigações em razão de seus laços estreitos com Marconny Albernaz de Faria, o enrolado lobista da Precisa Medicamentos, empresa contratada pelo governo para intermediar a venda da vacina indiana Covaxin em um processo bilionário eivado de irregularidades. A ligação entre Ana Cristina e Marconny ficou patente depois que mensagens descobertas no celular do lobista revelaram que ele se valia da proximidade com ela para tentar influir em decisões do governo.
Filhos de presidentes da República deveriam manter distância regulamentar de qualquer negociação ou de interesses que orbitem em torno do governo. Todas as vezes em que essa linha foi cruzada, vide os escândalos envolvendo os filhos de Lula, os presidentes de turno passaram por maus bocados. Com Bolsonaro e os seus não é diferente. Só que, à diferença dos irmãos, o 04 parece ser um alvo mais fácil. Até por sua pouca idade e pelo seu conhecido deslumbramento, ele está mais exposto às técnicas de sedução que costumam ser usadas por lobistas e assemelhados que orbitam em torno do poder. Marconny Albernaz enxergou a oportunidade. Próximo de Ana Cristina, ele não apenas se utilizou dos canais que ela tem no governo pelo fato de ser mãe de um dos filhos do presidente, como passou a oferecer seus préstimos ao próprio Jair Renan. Coube a ele, por exemplo, cuidar do registro da empresa de eventos que o 04 abriu em Brasília, com sede em um camarote do estádio Mané Garrinha – onde, aliás, o lobista deu uma animada festa de aniversário.
As histórias que envolvem Ana Cristina e Jair Renan obedecem, no geral, a uma mesma lógica, a da mistura de interesses. Empresários e lobistas se aproximam, oferecem facilidades e parcerias e, em contrapartida, tentam alcançar vantagens junto ao governo. Hoje com 22 anos, o 04 morava com a mãe em Resende, município do interior do Rio de Janeiro, antes de se mudar definitivamente para Brasília em março de 2019, três meses depois da posse do pai. Não demorou para que logo passasse a desfrutar das gostosuras que o sobrenome lhe proporcionava: convites para festas, ofertas de parcerias e muita gente interessada em fazer amizade. Ana Cristina desembarcou na cidade dois anos depois. E passou a, digamos, administrar o potencial do filho.
Até então, as aventuras do rapaz pelo mundo dos negócios eram um tanto rudimentares. Quem o orientava, e o ajudava a conhecer gente e prospectar oportunidades, era Allan Lucena, um jovem professor de educação física que Jair Renan conhecera na academia e havia virado seu personal trainer. Quando Marconny Albernaz apareceu, pelas mãos de Ana Cristina, as coisas começaram a mudar. Lucena, o personal – o mesmo que flagrou um araponga do Planalto em seu encalço –, foi escanteado. A pedido de Cristina, Marconny cuidou da formalização da empresa Bolsonaro Jr Eventos e Mídia e passou a acompanhar de perto os passos do 04 por Brasília. Graças à carta branca dada pela mãe, Marconny transformou o camarote 311 do Mané Garrincha, onde funciona a empresa, em um espaço de reuniões com pessoas interessadas em patrocinar os eventos e projetos de Jair Renan.
A mãe do 04 sempre fez questão de manter o sobrenome Bolsonaro como forma de abrir caminhos. Quem participa das reuniões no camarote do 04 diz que são comuns os pedidos dela para que o filho leve ao pai demandas de terceiros junto ao governo. Como a própria Ana Cristina não tem um bom relacionamento com Jair Bolsonaro, o 04 acaba por funcionar como um intermediário para o atendimento dos pedidos. No Planalto, ao mesmo tempo que a ex do presidente é considerada um incômodo, é sabido que rifá-la, para além de desagradar a Jair Renan, pode ter consequências explosivas. Durante o rumoroso processo de separação do casal, em 2011, Ana Cristina acusou Bolsonaro de manter um cofre com valores milionários em uma agência do Banco do Brasil. Também insinuou que o patrimônio do presidente foi construído com dinheiro de origem suspeita. Quando a querela veio à tona, ela recuou das acusações, mas até hoje insinua que pretende escrever um livro revelador.
Não há dúvida de que Ana Cristina tem realmente o que contar. Enquanto o casamento dela com Bolsonaro durou, o casal adquiriu uma extensa carteira de imóveis. Ela, sozinha, assinou nada menos que 14 transações imobiliárias. Nas investigações sobre o esquema rachid montado nos gabinetes da família, o Ministério Público reuniu indícios de que a ex do presidente teria sido uma das primeiras operadoras da coleta de parte dos salários de funcionários, antes de o esquema passar para as mãos do notório Fabrício Queiroz. Os promotores suspeitam que Ana Cristina gerenciava o rachid no gabinete do vereador Carlos Bolsonaro, o 02, na Câmara Municipal do Rio. As investigações mostram que, para além de ter parentes empregados pelos Bolsonaro, funcionários ligados a ela sacaram quantias milionárias no período em que estavam nomeados.
De fato, ainda há peças que não se encaixam. A casa foi comprada em maio deste ano por um corretor de imóveis, Geraldo Antonio Machado, que mora em uma área bem menos nobre nos arredores de Brasília. Um mês depois da transação, fechada oficialmente por 3,2 milhões de reais, Ana Cristina e Jair Renan se instalaram na propriedade. Antes da mudança, mãe e filho frequentaram com assiduidade um escritório de advocacia em uma cidade vizinha a Brasília. Nesta semana, Crusoé apurou que Geraldo Machado, o corretor que aparece como dono da casa, visitou o escritório no mesmo período. Procurado, o dono da banca primeiro disse que presta serviços jurídicos para Ana Cristina. Indagado novamente sobre sua relação com o corretor que aparece como dono da casa, ele não quis mais falar.
O histórico da ex de Bolsonaro com lobistas e empresários não se resume à relação com Marconny Albernaz. Ela já foi vista também em convescotes na casa do lobista Silvio Assis, preso em 2017 em uma investigação sobre fraudes e corrupção no Ministério do Trabalho e amigo do peito de Ricardo Barros, o líder do governo suspeito de participar também das traficâncias envolvendo a aquisição da Covaxin. Como já mostrou Crusoé, Assis é anfitrião de animados jantares, regados a vinhos caros, para os quais políticos, empresários e altos funcionários públicos costumam ser convidados – até recentemente, os encontros ocorriam em uma casa que tinha até um detector de metais na entrada para, a depender da reunião, impedir a entrada de equipamentos de gravação. Foi nesse endereço, por exemplo, que o deputado Luis Miranda, aquele que denunciou a existência de um esquema em torno do processo de compra da Covaxin, afirma ter recebido uma oferta de propina do próprio Assis para não impor obstáculos ao negócio.
Pela vida que compartilham na internet, o 04 e sua mãe parecem viver alheios às investigações que lhes batem à porta. Na tarde de quarta-feira, 15, enquanto Marconny Albernaz prestava depoimento à CPI, com menções a ambos, no Instagram Ana Cristina fazia as vezes de garota-propaganda de uma hamburgueria e Jair Renan se exibia degustando um churrasco na piscina de casa, em um vídeo no qual apresentava um tempero para carnes. Para evitar embaraços maiores, após a abertura do inquérito na Polícia Federal, o carro elétrico que a empresa de Jair Renan ganhou de empresários foi devolvido. Com a corporação sob o comando do delegado Paulo Maiurino, tido como fiel escudeiro de Jair Bolsonaro, por ora a investigação está estacionada. Sentindo-se livres para desfrutar gostosamente do momento, mãe e filho seguem na mesma toada, sem qualquer limite.
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