MarioSabino

Saudade de ir ao cinema

10.09.21

Há quanto tempo não vou ao cinema? Não vamos? Não sei dizer ao certo. Só sei que a última vez foi com o meu filho caçula, para assistir a não sei qual filme, em um shopping. (Ele batia no meu ombro e agora está mais alto do que eu.) Minha memória para filmes novos já era muito ruim mesmo antes da pandemia. O meu cérebro os interpreta como descartáveis, e eles vão para um depósito neuronal inacessível ao consciente. Mas, ainda que o meu cérebro não considere os filmes novos dignos de serem lembrados, estou com saudade de ir ao cinema. Ir ao cinema sempre foi uma das melhores partes da minha vida.

Na juventude, o cinema foi decisivo para a minha formação. Era uma extensão da literatura. Falo dos filmes que geralmente são classificados como “de arte”. Havia muitos cineclubes em São Paulo, entre o final da década de 1970 e o início da de 1980, que os exibiam. Os mais frequentados por mim — e por toda a moçada cabeça — eram os da Faculdade Getúlio Vargas, da PUC e o Cineclube do Bixiga. O Masp, o MIS, o Cinesesc e o Cine Arte Um também tinham ótima programação. Entre os cinemões, havia o Belas Artes, com uma das salas dedicada a filmes de arte, e o Gazetinha, cuja saída nos proporcionava irromper numa feérica Avenida Paulista, em frente a uma grande banca que vendia jornais e revistas importados, o que nos dava a sensação tão efêmera quanto intensa de pertencer a um mundo menos estreito do que o brasileiro. No inverno, quando ainda fazia frio para valer em São Paulo, aquilo era um pedacinho da Champs-Elysées, mas a do filme À Bout de Souffle, o único filme realmente bom de Jean-Luc Godard, com o magnífico Jean-Paul Belmondo, morto nesta semana, e a esplêndida Jean Seberg, atriz americana que viria a morrer assassinada em 1979, em episódio nebuloso. Ela ficou desaparecida por dez dias, em Paris, até ser encontrada morta no banco traseiro do seu carro, o corpo enrolado num cobertor. O escritor Romain Gary, seu ex-marido, acusou o FBI de a ter matado, por causa do envolvimento de Jean Seberg com o movimento negro radical Panteras Negras. Uma morte de cinema.

Eu tinha um amigo, Roberto Moreira, que foi o meu preceptor cinematográfico. Ele queria se tornar cineasta, e assim foi. Graças ao Roberto, assisti a praticamente todos os filmes importantes (e alguns desimportantes) do expressionismo alemão, do neorrealismo italiano, da vanguarda russa e da nouvelle vague francesa. Devo a ele ter visto uma retrospectiva dos filmes japoneses de Mizoguchi e Ozu, num pequeno cinema no Quartier Latin. E Blow-Up, de Antonioni, no cinema da Tate Gallery (a Swinging London era nostalgia recém-iniciada). Em São Paulo, depois de cada sessão, saíamos para jantar em algum restaurante chinês barato. O menu não variava. O Roberto discorria longamente sobre aspectos da montagem do filme e o histórico do diretor e, em seguida, dava um suspiro de enfado e perguntava qual era a minha opinião. “E então, Marinho, o que você acha?”. Eu procurava ser muito rápido, visto que a minha opinião não importava tanto assim nem mesmo para mim, e mudávamos de assunto: os rumos da ditadura, os ex-colegas de escola, os livros que estávamos lendo. As minhas piadas eram acompanhadas pela risada um tanto peculiar do Roberto — risada de personagem de desenho animado que causava certo embaraço na sala de cinema, inclusive porque ouvida em momentos nos quais ninguém mais via graça no que se desenrolava na tela. Eu creditava isso à superioridade intelectual dele. Nada que se comparasse, porém, com a senhora desconhecida que fazia críticas em voz alta durante a sessão. Críticas sempre pertinentes, diga-se em sua defesa. Lembro-me especialmente de uma, gritada enquanto assistíamos ao Mistero di Oberwald, de Antonioni. Lá pelo meio do filme, ela foi peremptória: “Antonioni nunca mais foi o mesmo depois que se separou de Monica Vitti”. Ela estava certa.

Continuei a ir aos mesmos cinemas depois que a minha amizade com o Roberto definhou, com um suspiro provavelmente de enfado também da minha parte. Agora era eu a falar sobre o filme apenas visto, não mais em restaurantes chineses, mas principalmente diante de um beirute do Frevinho que ficava do lado errado da rua Augusta, ainda relativamente civilizado na época. O Frevinho tinha mesas com uma espécie de prateleira embaixo. Muito colada ao verso do tampo, ela não servia para guardar nada. O estranho acessório fora colocado a mando do dono, para evitar que as moças de minissaia pudessem cruzar as pernas.

Eram filmes sem pipoca e refrigerante. E, obviamente, sem poltronas de classe executiva que surgiram há poucos anos para subverter uma experiência que nasceu para ser coletiva. Há algum tempo, ouvi de um imbecil que ele só ia a essas salas vip. “Pense bem: por que eu sairia de casa para ter menos conforto do que na minha casa, com TV paga?” disse o imbecil. Respondi: “Pense bem: por que você sairia de casa para fazer qualquer coisa?”.

Ir ao cinema era experiência de uma geração que não contava com muitas janelas para o mundo. A tela era uma delas, e a janela permanecia aberta nos jantares que se seguiam em restaurantes baratos, onde a única comida boa era a do espírito, e ela alimentava o que projetávamos ser quando fôssemos adultos maduros (na ilusão de que haveria maturidade).

A saudade de ir ao cinema é também saudade de mim mesmo como projeto. Ou como projeção.

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