Carlos Fernandodos santos lima

Se queres a paz

03.09.21

Si vis pacem, para bellum. Se queres a paz, prepara-te para a guerra, diz o antigo provérbio romano. A ideia que sustenta essa máxima é a de que uma sociedade ou um grupo reconhecidamente forte e preparado gera respeito, ou ao menos receio, em outros grupos, que assim evitarão atacá-lo. Considerando as incertezas em que vivia o império romano no século IV, especialmente diante das invasões bárbaras cada vez mais frequentes, tratava-se de uma advertência sábia.

Mas esse conselho romano não valeu apenas para as sociedades antigas, como se pode pensar. Está no cerne da política armamentista da guerra fria entre os Estados Unidos e a União Soviética, na segunda metade do século passado, e em todos os conflitos armados no Oriente Médio até hoje. A verdade é que, por mais que a cultura humana tenha se desenvolvido nesses séculos, desde a queda de Roma e o início da Idade Média, ainda temos infelizmente uma forma de pensar muito primitiva: nosso país ou grupo contra o deles!

Entretanto, em uma sociedade moderna e democrática, a política deveria substituir o confronto físico e exercer a função de compatibilizar os diversos interesses dos grupos sociais, negociando soluções que os acomodem frente ao interesse público. É assim que deveria funcionar nossa política, mas a crise de legitimidade das instituições que vivemos no Brasil torna cada vez mais o cenário um octógono de vale-tudo, mais parecido com o ambiente de um filme distópico em que os enfrentamentos terminam violentamente sob aplauso dos espectadores.

O resultado dessa destruição do ambiente de legítima negociação política chama-se Jair Bolsonaro. Mesmo sendo esse manipulador populista e autoritário o mais baixo ponto de nossa história política, ele não é a causa desse processo lento de ruptura democrática em que vivemos, mas consequência dele. O problema de nossa democracia é a ausência cada vez maior de legitimidade de nossa classe política. Se nunca tivemos um ideal democrático forte como nos países anglo-saxões, onde a democracia é uma conquista de lutas históricas, a modernidade nos trouxe ainda o abuso do poder econômico, as fake news e o populismo digital, fenômenos que preocupam todas as democracias ocidentais, mas que aqui causam um estrago ainda maior.

A radicalização do ambiente político pelo uso de preconceitos e da baixa empatia de muitos com os problemas sociais alheios, mantida como estratégia de manutenção de guetos de apoiadores e amplificada ainda pela sua reverberação nas bolhas das redes sociais, torna difícil estabelecer um ambiente de respeito mútuo mínimo para que as posições contrárias sejam ouvidas e ponderadas, condição sem a qual é impossível negociar qualquer solução para os graves problemas nacionais.

Obviamente, Jair Bolsonaro é somente parte do problema. Outras degenerações do sistema político, como Renan Calheiros ou Lula, aproveitam-se do maniqueísmo das redações de jornais para se promoverem como “democratas” e “republicanos”, apenas por se posicionarem contra Bolsonaro, quando na verdade são apenas manifestações do mesmo fenômeno histórico de apodrecimento do sistema político que gerou nosso atual presidente. O próprio Supremo Tribunal Federal reflete em muitos dos seus ministros o mesmo fenômeno, até mesmo porque seria estranho que um sistema político em decomposição também não contaminasse outros poderes.

Alguma esperança, entretanto, surge com tentativas de construção de pontes entre os diversos setores da sociedade brasileira, na busca do diálogo com respeito mútuo e um mínimo de civilidade. Além disso, cada vez fica mais claro que a democracia, a República, os direitos humanos e o estado de direito são inegociáveis e correspondem às bases mínimas comuns de qualquer negociação.

Um exemplo disso está no posicionamento deste último 30 de agosto de parte do agronegócio brasileiro, em defesa das instituições e da paz entre os poderes. É sintomático que justamente um dos setores mais conservadores politicamente esteja à frente de um manifesto pela harmonia entre os poderes e pelo respeito do estado democrático de direito. Não porque os conservadores não sejam democratas, mas porque há uma confusão em nosso país do conservadorismo político com pautas autoritárias. A verdade é bem o contrário, como diz o manifesto:

“É o Estado Democrático de Direito que nos assegura essa liberdade empreendedora essencial numa economia capitalista, o que é o inverso de aventuras radicais, greves e paralisações ilegais, de qualquer politização ou partidarização nociva que, longe de resolver nossos problemas, certamente os agravará.”

Infelizmente, ao que parece, a Fiesp cedeu à pressão do governo Bolsonaro para que não publicasse um manifesto semelhante, mesmo que significativamente mais brando que o lançado pelo setor agropecuário. A Febraban, entretanto, mesmo com as ameaças de desfiliação do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal e de perda de negócios com o governo, diz tê-lo assinado, mas ainda é incerta a sua publicação. Tudo devido ao interesse político do presidente da Fiesp que está a se sobrepor à manifestação desses importantes setores.

Interessante o balanço que podemos tirar de toda essa situação. O primeiro ponto é a vocação para o confronto do governo Bolsonaro, que vê em um manifesto que fala em paz e estado democrático de direito um ataque contra si. A verdade é que Bolsonaro pessoalmente vestiu a carapuça de um aventureiro radical que busca uma politização nociva da sociedade brasileira, para usar os próprios termos do manifesto. Um golpista, diriam outros, que somente ainda não tentou destruir a Nova República por não ter as Forças Armadas apoiando o seu projeto de poder pessoal.

Um segundo aspecto refere-se à incapacidade das grandes instituições privadas nacionais de abandonarem interesses particulares em favor de princípios. Poucos são infelizmente os que renunciam a negócios e relacionamentos em favor dos interesses maiores da nossa sociedade. A maioria permanece silenciosa, com receio que um posicionamento contra o governo Bolsonaro possa ser interpretado como um apoio a Lula, ou vice-e-versa, como se esses dois estelionatários políticos fossem as únicas opções da política brasileira (se isso for verdade, podemos declarar a falência da nossa experiência democrática pós-ditadura).

Por fim, fica claro que Bolsonaro somente entende posições de força. Cada tentativa de lhe estender a mão e o simples convite para conversar é entendida por ele como um sinal de fraqueza da outra parte, o que o incentiva ainda mais para o confronto. Bolsonaro é um ser primitivo, que não entende o mundo, mas percebe claramente como pensam outros iguais a ele. Não é corajoso, mas se aventura constantemente nos limites cinzentos que separam nossa democracia do autoritarismo que deseja. Ele precisa do confronto para se manter relevante politicamente, usando pseudoinimigos para mobilizar as hordas de apoiadores.

Além disso, trata-se de um político sem palavra, incapaz de honrar as promessas de moderação que faz ao Centrão. Esse agrupamento de interesseiros políticos, entretanto, apenas o está apoiando enquanto Bolsonaro ainda não está descartado da vida política e tem as chaves do cofre, mas cada vez mais percebe que nenhuma maquiagem transformará o presidente em um democrata.

Se queres a paz, prepara-te para a guerra. Essa é a única estratégia possível em relação aos ataques de Bolsonaro contra a democracia. O limite da argumentação e do convencimento está na capacidade de entendimento, no compartilhamento de valores, na boa vontade e respeito pelo outro. Se não há nenhum deles, não é possível nada além de uma paz armada. É o mesmo que tentar negociar com o Talibã os valores das democracias ocidentais, especialmente sobre o direito das mulheres. Roma já sabia que bárbaros só respeitam posições de força. Podemos dizer que Bolsonaro é a nova barbárie, o Talibã da nossa política, tentando destruir as conquistas civilizatórias de nossa democracia, deixando os brasileiros aos seus caprichos. Os democratas precisam mostrar a ele que resistirão.

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