MarioSabino

O Vietnã dentro de nós

27.08.21

De vez em quando, leitores reclamam de que não uso este espaço para falar de política na proporção que esperavam. É como se o meu destino fosse permanecer circunscrito a um único tema, e tema sobre o qual já escrevo cotidianamente em O Antagonista. Não acho que falar de política seja o meu único papel, se é que tenho mesmo algum. O mundo se estende — ainda bem — para muito longe de Brasília. Quando comecei a trabalhar, jornais e revistas brasileiros tinham longas seções destinadas à literatura, à música, ao cinema, ao teatro e às artes plásticas, todas áreas que passaram a ser enfeixadas de modo minúsculo como “cultura”, palavra antipática e de cunho oficialesco. O meu berço profissional, aliás, é a literatura: cuidava das páginas de resenhas da Folha e me forjei escrevendo sobre livros, até que resolvi cometer os meus próprios. Escrever sobre livros, garanto, é muito mais enriquecedor do que escrever sobre política. Encaro, inclusive, como forma de resistência. Não existe nada mais antípoda a um Jair Bolsonaro, um Lula, um Renan Calheiros, um Ciro Nogueira, um Dias Toffoli, do que um bom livro. É como alho para os vampiros.

Preâmbulo feito, mais uma vez não escreverei sobre política. Nem sobre um livro, embora livros existam sobre o tema. O meu assunto desta semana é uma extraordinária repórter fotográfica cujo trabalho andava esquecido e que foi resgatado por uma fundação que tem o seu nome, como informado pelo jornal Le Monde, que lhe dedicou uma matéria fascinante. A repórter fotográfica é Catherine Leroy. Com apenas 21 anos, 1m50, 40 quilos e armada de uma Leica, ela entrou em cena na Guerra do Vietnã, em 1966, para extrair desse pesadelo imagens que podemos classificar como icônicas. Foi para o Vietnã dizendo à sua mãe que iria ficar por lá durante três meses. Ficou três anos. Até então, só havia fotografado cenas parisienses. Embarcou sem conhecer bem a história do país, sem contatos, praticamente sem dinheiro. Tinha apenas uma carta de recomendação da revista Paris-Match, com a qual não tinha vínculos estreitos, mas somente a promessa de que as suas fotos seriam publicadas no caso de serem realmente boas. Os editores certamente não acreditaram que ela pudesse produzir algo de muito relevante.

O espírito inquieto de Catherine Leroy me lembra o de Rimbaud, o jovem poeta que largou tudo para viver aventuras na Indonésia, Chipre e África. Nascida nos arredores de Paris, numa família, senão abastada, bastante remediada, Catherine Leroy era asmática, tribulação ainda mais indesejável por causa da sua compleição franzina, e imaginava-se que não podia fazer atividades físicas (mal sabiam eles). Dedicou-se, na infância, ao estudo de piano, instrumento para o qual demonstrou ter talento. Com 14 anos, queria ser pianista de jazz e fez uma audição no Teatro Olympia. Foi esnobada. Resolveu aprender a saltar de paraquedas, algo bastante inusitado para a época. Quantos saltos fez Catherine Leroy antes de embarcar para o Vietnã? Oitenta e quatro. A experiência lhe permitiu participar da única operação de paraquedistas do exército americano no conflito na Indochina. Nenhum outro jornalista tinha habilitação para tanto. Ela saltou juntamente com os marines da 173ª divisão aerotransportada, em fevereiro de 1967 e, lá de cima, fotografou os soldados que desciam ao inferno da guerra, assim como a própria Catherine. No salto, as suas tranças loiras de menina ergueram-se verticalmente ao lado do capacete.

Nik Wheeler/Corbis via Getty ImagesNik Wheeler/Corbis via Getty ImagesCatherine Leroy, em 1968, no Vietnã: entrada no inferno aos 21 anos
Ela foi uma das primeiras mulheres a serem admitidas nos campos de batalha. E sabia que, como pioneira, não poderia demonstrar fraquezas atribuídas ao seu sexo. Sem pedir ou aceitar ajuda, atravessou rios e pântanos, carregando o seu equipamento da mesma forma que os soldados levavam as suas armas. Dormia ao relento ou em tendas e alimentava-se das mesmas rações dos seus personagens. Numa carta ao seu pai, ela diz: “Eles esperam que eu caia a cada 100 metros. Eu teria 100 caras para me socorrer, mas tudo estaria perdido, se isso acontecesse”. Acabou sendo admirada como uma igual pelos soldados, dos quais se dizia irmã. Ao final de 1966, o seu primeiro ano no Vietnã, nenhum jornalista havia participado de tantas operações de campo quanto ela.

O seu trabalho foi logo reconhecido pelos grande jornais. Imagens feitas por ela foram publicadas nas capas de Paris-Match, Life e New York Times. A série em que um soldado-enfermeiro tenta socorrer um marine mortalmente ferido na batalha pela colina 881, perto de Khe Sanh, em abril de 1967, é de uma pungência épica. Mais do que registrar o horror, como os corpos de vietnamitas mortos na ofensiva do Tet, um dos mais sangrentos episódios da Guerra do Vietnã, em fevereiro de 1968, Catherine Leroy registrava o sentimento íntimo de horror — e de tristeza, angústia ou espanto dos rapazes colocados ali, a milhares de quilômetros de distância do país natal, para lutar uma guerra completamente insana.

A sua biógrafa, a jornalista Elizabeth Becker, conta que, em maio de 1967, Catherine Leroy foi levada para o navio-hospital USS Sanctuary, depois de ser atingida pela explosão de um obus cujos estilhaços lhe causariam 35 ferimentos. Ao levantar o lençol que a cobria, o enfermeiro exclamou: “Meu Deus! Uma mulher! Uma loira!”.  Como não podia ser condecorada com a medalha Purple Heart, destinada a soldados feridos ou mortos em batalha, o general Lewis Walt lhe deu um estojo de manicure. “Você talvez precise disso”, disse ele, desajeitadamente. Uma vez recuperada dos ferimentos, em 1968, juntamente com um colega francês, ela conseguiu penetrar as linhas inimigas, em trajes civis, mas foi detida por soldados norte-vietnamitas. Mais fotos que admirariam o mundo. Seus maiores adversários, no entanto, seriam os jornalistas que fizeram a sua caveira e conseguiram lhe tirar as credenciais durante algum tempo. Reprovavam que a mocinha desse algumas cotoveladas para conseguir lugar nos helicópteros do exército americano, tivesse a boca suja e insultasse quem a contrariava. Basicamente, Catherine Leroy não podia ser como um homem. Os chefes militares americanos também passaram a não gostar dela, por causa das críticas que a repórter fotográfica lhes dirigia.

Catherine Leroy ainda cobriria conflitos no Líbano, Somália e Etiópia. Fora dos teatros de guerra, ela tentou ser fotógrafa de moda. Depois, revendeu objetos da marca Hermès. Morreu na pobreza, em 2006, em Los Angeles, aos 62 anos. Sempre recusou escrever a sua própria biografia. Como diz o jornal Le Monde, não quis fabricar uma lenda em torno dela. Classificava a guerra como uma bomba de efeito retardado, do ponto de vista psicológico. De certa forma, deixou a esperança, assim que entrou naquele inferno. De certa forma, há sempre um Vietnã dentro de nós. De todas as formas, Catherine Leroy é muito mais interessante do que essa gente que nos atormenta no dia a dia.

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