Divulgação/BCC"Parece inevitável que ocorra um choque de trens entre Jair Bolsonaro e Lula nas próximas eleições"

Os cadáveres ideológicos

Referência no debate sobre relações internacionais, o escritor Moisés Naím diz que políticos da América Latina têm fixação por ideias fracassadas. Para ele, apesar das tentativas de demonstração de poder, presidentes nunca estiveram tão fracos
20.08.21

Quando tinha apenas 36 anos, o venezuelano Moisés Naím tornou-se ministro de Desenvolvimento no governo de Carlos Andrés Pérez. Era início de 1989. O novo presidente tinha acabado de vencer com folga as eleições em um período ainda democrático, anterior à ditadura chavista. Dias depois, o anúncio de medidas econômicas detonou saques e distúrbios de rua, que ficaram conhecidos como o Caracazo. Desse episódio, Naím tirou uma lição, que mais tarde seria aprimorada em seu livro O fim do poder: os governantes contam com um raio limitado de ação, as pressões contra eles são gigantescas e, como consequência, o poder é fraco e efêmero. “Nos tempos modernos, ficou mais fácil conquistar o poder, mais difícil usá-lo e mais fácil perdê-lo”, diz.

Outro conceito apregoado por Naím, que por 14 anos foi editor-chefe da prestigiosa revista Foreign Policy, é o de necrofilia ideológica, que ele diz estar presente tanto na esquerda quanto na direita da América Latina. Doutor em relações internacionais e economista, o venezuelano, hoje com 69 anos, toma emprestada a definição da atração sexual por cadáveres para falar do amor que os políticos da região costumam nutrir por ideias que já se comprovaram um fracasso. Um exemplo disso é o saudosismo da ditadura militar manifestado por autoridades brasileiras, como o presidente Jair Bolsonaro. A partir dos Estados Unidos, onde vive, Naím concedeu a seguinte entrevista a Crusoé:

Em seu livro O fim do poder, o sr. fala que ficou mais difícil para todos os governantes se manter no poder. Algum líder da América Latina hoje está em situação mais confortável?
Todos os governos da América Latina hoje estão em situação precária. Mesmo quando algum presidente aparece com 70% de aprovação popular nas pesquisas, sabemos que esse índice é muito volátil e frágil, podendo despencar a qualquer momento. Até a ditadura de Cuba está sendo sacudida. Os governos hoje precisam lidar com múltiplos problemas, como a pandemia, a economia, a fome, a desigualdade e a pobreza. Ao mesmo tempo, eles têm um poder limitado para lidar com tudo isso. Então, é muito difícil que algum governo consiga se manter forte por muito tempo em uma situação como essa. Quem acompanha as notícias sabe disso. Está bem claro que, nos tempos modernos, ficou mais fácil conquistar o poder, mais difícil usá-lo e mais fácil perdê-lo. Quem tiver dúvida disso que pergunte a Donald Trump.

Mas algum presidente latino poderia ao menos servir de inspiração para os demais?
O peruano Pedro Castillo poderia servir de inspiração, só que ao contrário. Ele é um símbolo do que não se deve fazer. Castillo é o representante de um conceito que eu tenho usado bastante, o de necrofilia ideológica. Necrofilia é a perversão sexual que algumas pessoas têm por cadáveres. Esse conceito também tem sua versão ideológica, que é uma atração por ideias ruins. Apesar de já terem demonstrado que fracassaram no mesmo país ou em outras nações, esses conceitos continuam tendo um apelo surpreendente entre políticos. Mas essas histórias sempre terminam mal, de maneira desastrosa. É muito claro que Castillo é controlado por Vladimir Cerrón, o chefe do partido Peru Livre. Essa agremiação tem uma base de comunistas radicais que parece disposta a fazer todo o possível para colocar em prática suas políticas de necrofilia ideológica.

DivulgaçãoDivulgação“Ninguém tem o monopólio da adoração por ideias fracassadas”
O futuro da esquerda não poderia ser algo parecido com o que estamos vendo na Assembleia Constituinte do Chile, onde os representantes falam principalmente em questões de gênero, racismo e representação indígena?
A questão é que não se pode ir a um restaurante chinês e pedir comida italiana. Em outras palavras, ninguém faz política escolhendo sobre o que quer falar, qualquer coisa. Todos esses temas são legítimos, mas não se pode fugir dos assuntos inerentes à política. A esquerda, para avançar, precisa dar resposta aos fatos que estão ocorrendo no continente, como o sofrimento humano, a desigualdade e a corrupção na Nicarágua, em Cuba e na Venezuela. Todas essas coisas estão sendo feitas pela esquerda no poder. E não se pode simplesmente ignorá-las porque elas são incômodas. Então, os jovens de esquerda querem lutar contra a discriminação racial, mas não querem se pronunciar sobre as torturas na Venezuela? Querem defender direitos humanos, mas preferem não se pronunciar sobre os 60 anos de repressão em Cuba? Isso é uma enganação.

O ex-presidente Lula segue apoiando as ditaduras de Cuba e da Venezuela. Como explicar que ele tenha boas chances de vencer a eleição do ano que vem?
Parece inevitável que ocorra um choque de trens entre Jair Bolsonaro e Lula nas próximas eleições. Lamento que os brasileiros só tenham essas duas opções neste momento. Mas ainda falta mais de um ano para as eleições, o que em política brasileira é uma eternidade. Muita coisa ainda pode acontecer. Bolsonaro pode se beneficiar de um aumento dos preços de exportações e de uma dinâmica que gere empregos. Se isso acontecer, ele chegará às eleições com uma economia favorável. Ou tudo pode simplesmente entrar em colapso. Não dá para saber. É prematuro especular sobre os resultados do ano que vem.

Por que Lula resiste a criticar os regimes de Cuba ou da Venezuela?
O ditador venezuelano Nicolás Maduro cometeu crimes contra a humanidade, que foram analisados por organizações internacionais (em setembro do ano passado, uma comissão da ONU afirmou que Maduro e funcionários de seu governo estiveram envolvidos em ações violentas contra a população, que incluíram assassinatos, torturas, desaparecimentos e violência sexual). Lula não condena esses crimes porque isso não lhe convém politicamente. Ele optou por manter a agenda da esquerda brasileira, que ainda é muito chavista. O ex-presidente calculou que teria mais a perder caso se tornasse um crítico dessas ditaduras. Ao mesmo tempo, Lula tem um coraçãozinho socialista. 

Como o sr. enxergou o desfile de blindados em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília, na semana passada?
A América Latina teve muitos problemas nas últimas três décadas, mas uma das vitórias obtidas nesse período foi que a região conseguiu tirar os militares da política. Isso só não aconteceu em Cuba, na Nicarágua e na Venezuela. Nesses países, militares ampliaram sua participação na política. Na Bolívia, os militares chegaram a retomar um pouco do poder, mas nada que se compare ao período dos anos 1960 e 1970, quando praticamente todo o continente estava sob o jugo de ditaduras e juntas militares. Espero que essas cenas que vimos em Brasília não signifiquem um retrocesso. Os militares têm um papel importante na defesa dos países, mas eles não devem entrar na política.

O desfile seria um sintoma da necrofilia ideológica sobre a qual o sr. tem falado?
A necrofilia ideológica é praticada tanto pela direita como pela esquerda, por políticos, empresários, professores universitários e jornalistas. Ninguém tem o monopólio da adoração por ideias fracassadas.

Wikimedia CommonsWikimedia Commons“A Venezuela hoje é um país ocupado”
Nos anos 1990, o ex-presidente do Peru, Alberto Fujimori, realizou um autogolpe e mandou tanques para o Congresso. O sr. vê alguma semelhança com a cena brasileira?
Naquela ocasião, Fujimori fechou o Congresso e assumiu o controle do Judiciário. Ele tomou todas as instituições que eram a base da democracia peruana. Não parece ser o caso do Brasil, onde o Legislativo e o Judiciário seguem como poderes independentes. É preciso acompanhar como essas forças irão se comportar. Provavelmente, será preciso tomar algumas decisões para frear as diversas iniciativas antidemocráticas, para garantir que o sistema ofereça os freios e contrapesos necessários para a democracia.

Se a ditadura de Cuba cair, que impacto isso poderia ter na região?
Depende muito de quem vai substituir o regime. Em muitos países da antiga Europa Oriental, a ‘nomenklatura’ soviética não foi substituída por pessoas com princípios democratas, mas sim por cartéis criminosos. Além disso, há muito tempo se fala que a ditadura cubana vai acabar, mas esse prognóstico nunca se concretizou. 

A tendência é que Cuba siga tendo muita influência em seu país, a Venezuela?
Além de ser um estado falido e ter um governo criminoso, a Venezuela hoje é um país ocupado. Há uma potência estrangeira, Cuba, que toma as decisões de governo. Há vinte anos eles saqueiam a Venezuela. O resultado é que hoje a Venezuela está mais destruída do que se tivesse lutado em uma guerra. O colapso foi executado a partir de Caracas, mas foi desenhado em Havana. A melhor imagem que mostra essa ocupação foi o navio cheio de comida que o governo venezuelano enviou para os cubanos após os protestos que ocorreram na ilha no dia 11 de julho. O governo fez isso em um momento em que a população venezuelana está morrendo de fome.

Qual é a importância que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, tem dado para a América Latina?
Joe Biden, o atual governo americano e o Partido Democrata estão voltando toda a sua atenção para as eleições legislativas que ocorrerão em novembro do ano que vem. Os resultados das urnas determinarão qual partido terá o controle da Câmara dos Deputados e do Senado. E os democratas querem garantir que dominarão as duas casas no futuro. Então, antes de fazer qualquer coisa, eles se perguntam se isso vai ajudá-los ou não a atingir esse objetivo. Acontece que a América Latina não tem peso suficiente para contribuir para esse propósito. Repare que, na visita do conselheiro de Segurança Nacional, Jake Sullivan, ao Brasil, no último dia 5, praticamente só se falou de China. Embora as autoridades não admitam isso, esse foi o único tema dos encontros. A América Latina só ganha importância na questão migratória. Para Biden, a região começa e termina na fronteira com o México. Cuba é uma questão circunscrita à política doméstica da Flórida, e Biden não fará nada que possa entrar no debate eleitoral e dar fôlego aos republicanos.

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  1. Em tempos modernos o altruísmo nacional, mundial e humanitário deveria se sobressair a "necrofilia ideológica"...

  2. Lúcido como sempre, Moisés Naim! Grande entrevista mesmo que as questões tratadas nos deixem com a moral baixa.

  3. Excelente matéria. Disse muitas VERDADES. Uma pena que muitos ainda se deixam levar, por estes políticos CORRUPTOS INÚTEIS.

    1. Qual a diferença entre o comunismo de esquerda e o bozismo de direita? Atualmente vemos que comem do mesmo farelo podre e, como o entrevistado bem disse, são igualmente adoradores da necrofilia ideológica. Bozistinhas hipócritas de merdas!!! 🐄🐄🐄🐄🐄🐄🐄🐄🐄🐄🐄🤡💩💩💩💩💩💩

    2. É sempre assim. Desprendem gordura a favor da agenda comunista mas habitam no Capitalismo. No Brasil não é diferente, nunca foi!

  4. A necrofilia ideológica é uma involução natural do velho caudilhismo latino-americano. É impressionante como a região não consegue evoluir politicamente. Nem mesmo o sangue de milhões de vítimas do populismo é capaz de azeitar as engrenagens do continente em direção à um futuro melhor. É muito triste isso.

    1. No Brasil e na América Latina há grupos interessados em manter tudo como está e mentir aos eleitores prometendo o sucesso. Aqui no Brasil, os políticos, alguns grandes empresários, uma parte dos membros do Judiciário não querem mudança alguma. Isso ajuda a explicar o eterno atraso do Brasil E da América Latina.

  5. Bela entrevista. Parabéns ao Duda e a Crusoé. (Naím não dourou a pílula - a esquerda brasileira é chavista, Lula tem "coraçãozinho socialista" e Castillo é um necrófilo ideológico e, o que é pior, é tutelado por comunistas).

  6. O Brasil precisa de um presidente voltado para o futuro. O ex-presidiário Lula é entusiasta do Socialismo, que nunca deu certo em lugar nenhum (somente na Aldeia dos Smurfs). Bolsonaro é um saudosista da Ditadura, que foi deixada para trás a um bom tempo, exatamente por não atender aos desafios daquela época, que são menores que os desafios de hoje. Precisamos de um Presidente que não fique insistindo numa visão de mundo, que não faz mais sentido algum. Por isso é Moro. Com Moro Podemos Mais.

  7. A maldita CF/88, dita cidadã, criou o salvador da pátria com a mistura do pelego oportunista, do patrimonialismo e do fisiologismo. Chegou a hora de uma nova constituinte.

    1. O paizão na política vem de muito antes de 88. A constituição de 88 é ruim, mas a criação do paternalismo na política não foi parida por ela.

  8. A América Latina adora caudilhos. W sem educação e com o assistencialismo a vanguarda do atraso, hoje representada pelo Lula e o Bolsonaro no País, se mantém na disputa pelo poder

  9. A necrofilia politico ideológica, de direita e esquerda brasileira, tem 70 anos de atrazo. Ademais, ambas são de cunho patrimonialista e clientelista. Não tem outra via senão Bozolula ou seus postes hadadpachecos. De chorar de atrazo.

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