As correspondências poderiam trazer Bolsonaro à realidade, mas ele parece viver em um universo paralelo

Cartas do Brasil real

Enquanto Brasília gira em torno de crises detonadas por falsas questões, os brasileiros sentem os graves problemas da vida real. Correspondências enviadas a Jair Bolsonaro formam um retrato dos dramas vividos longe da bolha do poder
20.08.21

O desempregado Paulo Manoel dos Reis não se preocupa com a tecnologia das urnas eletrônicas nem acompanha o escarcéu dos políticos que questionam a segurança das eleições. “Tenho 64 anos, dois filhos e ganho 720 reais por mês. Pago 400 de aluguel, luz, água, e não sobra nada”, diz o paranaense, sempre alheio à rotina política de Brasília. O carpinteiro José Ricardo Nascimento vive em Crato, no sertão cearense, e enfrenta realidade semelhante: os seus rendimentos desaparecem nos primeiros dias do mês. Ele não quer saber de crise entre os poderes nem conhece os ministros do Supremo Tribunal Federal. Tem apenas um pedido a Jair Bolsonaro: que o presidente tenha “compaixão” com os aposentados do país. João Ferreira Lopes da Silva começa a arar a terra bem antes do alvorecer, mas nunca conseguiu comprar casa própria. “Eu sou lavrador e não tenho onde morar”, conta o maranhense, em meio à batalha pela sobrevivência na zona rural de Codó. Nas idas e vindas de pau de arara, João e seus colegas nunca conversaram sobre “ruptura institucional” – os temas políticos se resumem às reclamações sobre a inflação alta e a paralisia dos programas habitacionais do governo. Os infortúnios de Paulo, José e João fazem parte da rotina da maioria dos 210 milhões de brasileiros. Enquanto em Brasília o mundo político gasta tempo e energia em debates supérfluos, muitas vezes deflagrados por premissas falsas, como o voto impresso, pelo Brasil afora as pessoas enfrentam problemas tangíveis. Crusoé obteve cópia de uma centena de cartas enviadas ao presidente por cidadãos comuns que, juntas, formam um retrato do drama de quem vive fora da bolha do poder. Eis algumas das súplicas.

“Não consigo trabalhar”

Valdeci Boina mora em São Paulo e, assim como outros 15 milhões de brasileiros, está desempregado. Além de percorrer agências em busca de uma nova oportunidade, ele faz bicos como jardineiro e poda árvores. O serviço é estafante, mas os ganhos são ínfimos: Boina fatura entre 20 e 50 reais por um dia de trabalho. “E não é sempre que consigo”, escreve. Em um de seus dias de total desalento, ele decidiu dirigir-se diretamente a Jair Bolsonaro. “Eu moro sozinho e faço minha comida, mas estou com a luz cortada, com a água cortada. Eu não estou mentindo, juro por Deus. Não consigo trabalhar fixado numa firma, me ajuda.” Valdeci usou canetas de três cores para caprichar na carta e fazer seu desabafo. O jardineiro desempregado é parte de uma massa de brasileiros que perderam a carteira assinada ou entraram na informalidade durante a pandemia.

A taxa de desemprego no Brasil beira os 15%. Já a taxa de informalidade no mercado de trabalho subiu para 40%. Entre as 86,7 milhões de pessoas ocupadas, 34,7 milhões são trabalhadores sem carteira assinada. É o caso, também, de Nilda Rebouças de Oliveira, do Rio de Janeiro. Ela tem 64 anos e vende doces e salgados para pagar as contas. Nilda, cuja filha, Ana Rebeca, também está desempregada, afirma “orar muito” pela família do presidente e revela seus pedidos para que Deus dê a ele “sabedoria”. “São tempos muito difíceis, mas vamos vencer essa Covid e levantar o nosso país. E que as empresas possam se reerguer e manter seus empregos”, diz. Paulo Manoel dos Reis, de Maringá, no Paraná, escreveu a Bolsonaro em 22 de julho de 2020. “Senhor presidente, eu não sei escrever muito bem, por isso espero que o senhor entenda minha letra. Peço proteção, sou trabalhador desempregado em situação de risco. Tenho 64 anos, pago aluguel de 400 reais. Tenho dois filhos. Queria ajuda”. Paulo sonha com um empréstimo para montar o próprio negócio. “Quero ajudar a minha família, ter um teto para morar e ter alimento na mesa.”

“Quando chove, o canal alaga”

A casa própria é o sonho de 5,8 milhões de famílias brasileiras sem moradia. Essa ambição está patente em boa parte das cartas que chegam ao presidente. João Ferreira Lopes da Silva vive em Codó, no Maranhão. “Quem vos escreve é um eleitor seu. Quero fazer um pedido em relação ao projeto do governo federal ‘Minha Casa, Minha Vida’. Aqui tem muitas casas fechadas, pessoas que ganharam e não precisavam. Eu sou lavrador e não tenho onde morar. É preciso uma fiscalização rigorosa.” Crusoé ligou para o telefone registrado na carta enviada a Bolsonaro pelo agricultor. O filho de João, Vinícius da Silva, um estudante de 23 anos, atendeu a chamada. Ele narrou que, desde que escreveu a carta, seu pai já teve três AVCs e está impossibilitado de trabalhar. “Às vezes, ele precisa de remédios e a gente não tem condição de comprar. Meu pai está morando de favor em uma casa na zona rural. É uma dificuldade vir à cidade, ele tem que pegar um ‘pau de arara’ e, às vezes, não tem dinheiro”. Vinícius conta que, a pedido do pai, que é analfabeto, o próprio estudante escreveu a carta e a postou nos Correios. “Ele quis falar com o presidente porque está indignado com o fato de precisar de uma casa e não conseguir. Meu pai continua com esperança. Ele sempre me pergunta se o presidente respondeu”, diz Vinícius.

Não são só adultos que escrevem ao presidente. Olga Benário Souza da Silva tem apenas 11 anos e escreve de Blumenau, Santa Catarina. “Sei que o senhor é um homem muito ocupado e que meus problemas não passam de simples grãos de areia diante de tantos que vossa excelência tem que resolver. E não quero lhe ocupar, mas acho necessário, antes de escrever o propósito desta carta, contar um pouco da minha história”, inicia ela, caçula de quatro irmãs. Olga nasceu com uma patologia e, nos primeiros meses de vida, teve que passar por cirurgias que lesionaram suas vértebras. Uma de suas irmãs enfrentou o mesmo problema e ambas usam cadeira de rodas. “Já operamos os calcanhares, a bacia, a bexiga, o intestino, os rins. Moramos em Blumenau e tem sido muito difícil a vida aqui. O estado negou transporte para hospitais. Negou também uma prótese e, por fim, o auxílio que recebíamos”, diz. Em seguida, Olga fala do sonho da família: a casa própria. “No momento em que escrevo essa carta estamos com aviso de corte de água e energia, com aluguel atrasado, sem material escolar. O que eu preciso é de sua ajuda para que, assim como tantas outras crianças, tenhamos acesso a moradia, escola e saúde, que são meus problemas diante de tantos que o Brasil enfrenta”.

Ana Maria de Oliveira, professora aposentada de Limoeiro, Pernambuco, também colocou no papel o sonho de ter a casa própria. Ela escolheu folhas cor de rosa e ocupou doze páginas ao escrever a carta para o presidente. A pernambucana mora com o marido em um barraco, em cima de um canal. “Quando chove, tudo alaga, a água entra pelo quintal e pelos ralos do banheiro”. Paulo Manoel dos Reis, Maringá, no Paraná, não está interessado em política. Quer apenas resolver seus dramas reais. “Ganho 720 reais por mês. Pago aluguel, luz, água e não sobra nada. Queria pedir ao senhor uma casinha do Minha Casa, Minha Vida.”

“Estamos abandonados”

“Senhor presidente Jair Bolsonaro, em primeiro lugar, peço perdão pela ousadia em escrever para vossa excelência. Vou ser breve. Tenho 72 anos e sou funcionária pública federal aposentada juntamente com meu esposo. Infelizmente estamos abandonados, não tivemos aumento de salário”. O apelo é de Célia Ramos Soares Ferreira, de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Ela ganha 2,9 mil reais de aposentadoria, mas paga 1,8 mil reais de plano de saúde. Servidores públicos com baixos salários, como Célia, estão entre os mais afetados pela escalada de preços dos últimos meses. A inflação elevou os preços dos itens da cesta básica e corroeu o poder de compra dos brasileiros. O óleo de soja, por exemplo, subiu 90% nos últimos doze meses. A carne bovina registrou inflação de 40% e o arroz teve alta de 61%.

Em 1º de julho do ano passado, Edna Menezes de Oliveira escreveu a Bolsonaro para relatar as dificuldades financeiras que enfrenta desde que obteve um empréstimo consignado. Ela se sente “roubada” pelos juros altos cobrados na transação. “Já escrevi muitas cartas, amassei e joguei na lata do lixo. Junto com elas, minha dignidade de cidadã honesta brasileira. Só que esta vou enviar para que o senhor tome conhecimento do meu drama.” E continua: “O que eu quero? Bloqueio nos empréstimos.” Edna recorreu, sem sucesso, a estratagemas contábeis. “Sempre que o salário mínimo aumentava, eu refinanciava (a dívida), pois eu conseguia um dinheiro extra. Só que, para minha surpresa, eu já não conseguia mais essa renda extra porque os bancos desonestos já haviam me antecipado”, diz.  A carta, escrita em letras azuis em uma folha de caderno, foi acompanhada de comprovantes dos empréstimos feitos. Edna solicitou um crédito de 10,4 mil reais, a serem pagos em 72 parcelas de 287 reais – juros de 28,2% ao ano. O valor final, de 20,6 mil, não foi pago e ela precisou fazer outros financiamentos para tentar finalmente a quitação. Entrou em uma bola de neve. Edna conclui com o desenho de três corações e um pedido de desculpas por tomar o tempo do presidente. “Sei que o senhor tem problemas sérios para resolver e eu, na minha pequenez, fico te incomodando. Costumo me expressar melhor, é que eu estou idosa e bem doente.”

“Não sobra para comer”

Entre as cartas mais dolorosas estão as de brasileiros que sofrem com a fome. Muitos dos remetentes são aposentados que, em crise financeira, recorrem a empréstimos consignados e ficam sem dinheiro para comprar remédios ou até para comer. É o caso da técnica de enfermagem aposentada Vera Lúcia Listado, que escreve de São Paulo. “Após pagar luz, gás e água, não sobra para comer. Faz muito tempo que não temos aumento (na aposentadoria), relata. Edilson Santos Pereira, caminhoneiro de 50 anos de Jardim Monte Belo, também em São Paulo, conta que sofreu um acidente em 2017 e fraturou a coluna. Desde então, está em tratamento no Hospital das Clínicas, sem poder voltar ao trabalho, e não tem acesso ao auxílio-doença. “Tenho uma esposa e dois filhos, estou sem condições de pagar água e luz. Sei que o senhor é uma pessoa justa e vai compreender quem sempre carregou as riquezas desse país nas costas. Não temos o que comer.” De Crato, no Ceará, o carpinteiro José Ricardo Nascimento escreve para relatar um drama parecido. Ele fez empréstimos que comprometem mais de 60% de sua renda. Sobram apenas 400 reais para comprar comida e pagar contas. Em uma página, ele aproveita para pedir ao presidente “compaixão” com os aposentados.

“Serei obrigada a parar com minhas atividades”

Uma parcela da população afetada pela pandemia, e que alega estar abandonada pelo atual governo, é a de micro e pequenos empresários. Escrevem cartas extensas, em que relatam dificuldades para tocar os negócios ou mesmo histórias de falência. “Senhor presidente, é muito grave a situação. O acesso a recursos financeiros para melhoria e expansão dos negócios são raros e caros”, escrevem Geovani José Vieira e Diego Christian Damásio, que empregam 48 funcionários.

A dificuldade de acesso ao crédito também aparece nas cartas. “Peço pela sua fineza em atender minha reivindicação aqui exposta, no sentido de poder continuar com minhas atividades na área da construção civil, gerando empregos e contribuindo com o engrandecimento do nosso Brasil. Atualmente, conto com 20 funcionários diretos e, caso não consiga vossa ajuda, serei obrigada a parar com minhas atividades. Sou empresária no ramo da construção civil, estou concluindo o curso de arquitetura, tenho 22 anos. Já edifiquei um empreendimento totalmente com recursos próprios, mas, devido à conjuntura financeira que atravessamos, sou obrigada a pedir vossa ajuda”, diz Giovana Pereira, que escreve de São José, Santa Catarina. Ela pede que o presidente interceda junto aos órgãos competentes para viabilizar crédito para os pequenos empresários.

Carmen Lúcia Gobatti, de Guarulhos, São Paulo, tem 65 anos e mandou uma carta escrita à mão com letras arredondadas. “Somos uma empresa respeitada, muito séria, 100% brasileira. Estamos à beira de fecharmos as portas, lamentável. Faz 40 anos que trabalhamos muito e queremos continuar, mas nosso próprio país nos impede de trabalharmos. Somos uma família e vivemos de nossa metalurgia. Precisamos de ajuda, os impostos abusivos nos impedem de continuar”. Ana Cristina Noce Fraga, de 42 anos, mora em Belo Horizonte e é empresária. “Não é preciso dizer o quanto fiz campanha para a sua eleição. Empreender no Brasil é algo muito difícil. Muitas leis, muitos impostos, muita burocracia e o pequeno sempre fica com a pior parte.”

“Meu marido foi assassinado”

Entre as cartas que chegam ao Planalto estão ainda relatos dramáticos de quem sofreu na pele a criminalidade. Os remetentes reclamam do avanço do tráfico, da insegurança das favelas e pedem paz. Diana Guimarães escreveu de João Pessoa para contar que seu marido foi assassinado. Ela não entra em detalhes sobre a morte, mas diz que o companheiro sustentava a casa. “Minha situação é esta: sou mãe de quatro filhos. São casados, não moram comigo. Tenho a guarda de um dos netos e moro em uma casa cedida pelo meu tio. Trabalho vendendo frutas no Mercado Central e recebo Bolsa Família no valor mensal de 89 reais”, desabafa.

“Somos um povo criativo”

A vocação do brasileiro para empreender está registrada em boa parte das cartas que chegam ao gabinete de Jair Bolsonaro. Rockefeller Silva, de 48 anos, escreve de Perdizes, São Paulo, em tom firme. Diz que a iniciativa privada e o governo devem trabalhar juntos para o progresso do país, criando condições favoráveis à inovação. “Como o senhor mesmo disse, o empreendedor ‘não deve ter medo’ da burocracia, que muitas vezes atrapalha o desenvolvimento, a criação de empregos e riquezas.” Professor e inventor, Rockefeller aguarda pelo registro de uma patente no INPI, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial. “Há 10 anos espero, pagando anuidades e taxas requeridas. Investi todas as minhas economias nesse projeto e ainda precisei pedir dinheiro emprestado. Somos um povo criativo e nosso potencial não deveria ser refém da burocracia que emperra o progresso. Registrar uma patente, em nosso país, ainda é um esforço hercúleo para o cidadão comum, como eu”, diz.

Com letras garrafais caprichadas, Alexandre Barroso Brilhante escreve de Fortaleza para falar do sonho de virar empresário e das dificuldades para empreender. “Excelentíssimo presidente Jair Messias Bolsonaro, é com muito respeito e alegria que venho através desta carta. Eu creio que Deus colocou vossa excelência à frente do nosso país com o propósito de melhoria para os brasileiros que vêm sofrendo por algum tempo, e creio que Deus vai lhe dar força e vitória nesta missão”, diz o cearense. “Eu trabalho de motoqueiro em uma construtora, mas tenho muita vontade de ter meu próprio negócio. O que eu ganho é para o sustento da minha casa, não sobra nada para investimento e lazer.” Alexandre revela que seu sonho é ter uma Kombi para trabalhar por conta própria com vendas e faz um pedido: “Eu sei que é difícil esse pedido, mas quem sabe Deus toque no coração? Sei também que estamos vivendo tempos difíceis, nosso país está com problemas, mas eu creio que Deus está no controle”.

Na vida real, o país grita, como sempre gritou, mas Brasília não consegue – ou não quer – ouvir.

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