MarioSabino

A norueguesa de Cabul

20.08.21

A retirada pusilânime dos americanos do Afeganistão me levou a  escrever uma série de artigos indignados para O Antagonista. A tragédia em curso do outro lado do mundo cancelou, por um momento, o estado de torpor que o Brasil vem me infligindo. A quantidade de idiotices ditas sobre o Afeganistão e o Talibã também contribuiu para a minha indignação. Como vacina para a idiotice, resolvi ter uma segunda dose de um livro extraordinário — estou relendo O Livreiro de Cabul, da jornalista norueguesa Åsne Seierstad (pronuncia-se Ósne Zaiershtad).

Conheci Åsne em 2007, quando ela esteve no Brasil, para lançar o seu livro aqui. Jantamos juntos no Rio de Janeiro, em mesa da qual o Diogo Mainardi fazia parte. Ela se mostrou interessada em saber sobre Lula e as suas bebedeiras, mas tenho certeza de que foi por cortesia. Não poderia haver nada mais desinteressante do que Lula e as suas bebedeiras para uma jornalista que chegara a Cabul em novembro de 2001, praticamente ao lado dos soldados americanos, depois de passar seis semanas com os comandantes da Aliança do Norte, no deserto próximo à fronteira com Tadjiquistão, nas montanhas de Hindu Kush, no vale do Pashir e nas estepes ao norte da capital afegã. Como ela própria relata no seu livro, Åsne estava na linha de frente dos ataques da Aliança do Norte contra o Talibã, “dormindo em chão de pedra, em cabanas de barro e viajando na boleia de caminhões, em veículos militares, a cavalo e a pé”.

Nos primeiros dias em Cabul, depois da queda do Talibã, a jornalista conheceu um livreiro, Sultan Khan, que lhe foi um oásis. “Após semanas entre pólvora e cascalho, ouvindo conversas sobre táticas de guerra e avanços militares, foi renovador folhear livros e conversar sobre literatura e história”, escreveu. Também deve ter sido renovador para Sultan Khan, tanto que o afegão aceitou que Åsne, de uma escandinavidade exemplar, morasse com ele e sua família durante algum tempo. O Livreiro de Cabul é exatamente isto: o relato da jornalista sobre o período em que viveu com a família Khan, num conjunto habitacional em ruínas, com as paredes crivadas de balas da guerra civil, construído sob os auspícios dos soviéticos.

O livro de Åsne, experimentada em descrever o cotidiano em teatros de guerra, como Sérvia e Tchetchênia, é um testemunho em registro literário da mentalidade afegã — mentalidade que, moldada integralmente pela religião, relega as mulheres a uma condição de absoluta inferioridade e tem no Talibã a sua exacerbação. Mesmo numa família de classe média (para os padrões afegãos) de um homem culto, como Sultan Khan, elas não são nem mesmo locatárias de si próprias e são vendidas a quem pagar mais para tê-las como esposas inteiramente submissas — e que podem ser mortas pelos próprios pais, se infringirem os códigos arcaicos que lhes regem. “Eu era hóspede, mas não demorei a sentir-me em casa. Cuidaram de mim de maneira excepcional, a família era generosa e aberta. Passamos muitos momentos divertidos juntos, mas poucas vezes na vida fiquei com tanta raiva como da família Khan, poucas vezes briguei tanto ou tive tanta vontade de bater em alguém. O que me revoltava era sempre a mesma coisa: a maneira como os homens tratavam as mulheres. A crença na superioridade masculina era tão impregnada que raramente era alvo de questão. Em discussões ficava claro que, para a maioria deles, as mulheres são de fato mais burras que os homens, que o cérebro delas é menor e que não podem pensar de maneira tão clara quanto os homens”, escreve Åsne. Por breves intervalos, um deles a ocupação soviética, o que é ilustração suplementar da desgraça intrínseca ao Afeganistão, as mulheres tiveram chance de usufruir de alguma liberdade.

A jornalista experimentou a burca em diversas ocasiões. Somos informados de que essa prisão de tecido foi criada por ricos, para esconder as suas lindas mulheres. Um símbolo de status que, com o tempo, viria a se disseminar pelas classes populares, como concretização e símbolo da opressão masculina. Com o raio de visão limitado para a frente, como se fossem cavalos que puxam carroças, as mulheres são obrigadas a virar a cabeça para olhar para os lados — o que funciona como instrumento de controle, uma vez que lhes é tolhida a possibilidade de observar algo ou alguém sem que isso seja imediatamente percebido. “Também vestia a burca para saber como é ser uma mulher afegã. Como é espremer-se num dos três bancos traseiros de um ônibus quando há bancos livres na frente. Como é dobrar-se no porta-malas de um táxi porque há um homem no banco de trás. Como é ser olhada como uma burca alta e atraente e, ao passar pela rua, receber o primeiro elogio ‘burca’ de um homem. Com o tempo comecei a odiá-la. A burca aperta e dá dor de cabeça, enxerga-se mal através da rede bordada. É abafada, deixando entrar pouco ar, e logo faz suar. É preciso tomar cuidado o tempo todo onde pisar, porque não podemos ver nossos pés, e como junta um monte de lixo, fica suja e atrapalha. Era um alívio tirá-la ao chegar em casa”. 

Por 316 páginas, o leitor convive com Sultan Khan, as suas mulheres Sharifa e Sonya, as irmãs Shakyla, Leila e Bulbula, o irmão Yunus, a matriarca Bibi Gul, os filhos do livreiro, Mansur, Eqbal e Aimal, as filhas Shabnam e Latifa, todos morando juntos num pequeno apartamento praticamente sem móveis, com eletricidade e água escassos e fragmentos de privacidade guardados em caixas, muitas caixas, o ambiente envolto em poeira permanente suspensa no ar e depositada na pele. Mas o assunto de Åsne não é a pobreza material, e sim a miséria existencial de um povo que, refletido naquele universo doméstico, só conhece o imobilismo secular. Vidas secas aprisionadas numa imensa caixa etiquetada com o nome de Afeganistão — inclusive os homens, eles também prisioneiros no seu papel de eternos dominadores.

O Talibã, como já dito, aprofundou essa não-existência que o precedia. Quando a chusma de fanáticos assumiu o poder, em 1996, dezesseis decretos foram transmitidos pela Rádio Sharia. Faço um resumo da lista que consta do livro de Åsne:

  1. É proibido às mulheres andar descobertas.
  2. É proibido ouvir música.
  3. É proibido barbear-se.
  4. As orações diárias são obrigatórias.
  5. É proibido criar pombos e promover rinhas de aves.
  6. É proibido vender e usar drogas.
  7. É proibido soltar pipas.
  8. É proibido reproduzir imagens.
  9. Estão proibidos rigorosamente os jogos de azar.
  10. É proibido usar corte de cabelo no estilo americano ou inglês.
  11. São proibidos empréstimos a juros, taxas de câmbio e de transações.
  12. É proibido lavar roupa à margem dos rios.
  13. Música e dança são proibidas em festas de casamento.
  14. É proibido tocar tambor.
  15. É proibido a alfaiates costurar roupas femininas ou tirar medidas de mulheres.
  16. É proibida a prática de bruxaria.
Os dezesseis decretos foram acompanhados de um comunicado às mulheres de Cabul, como conta a jornalista:

“O Islã é uma religião salvadora e determinou que as mulheres devem ter uma dignidade especial. As mulheres não devem atrair a atenção de pessoas nocivas que lhes dirijam olhares maliciosos. As mulheres são responsáveis pela educação e união da família, pela provisão de alimentos e vestuário. Caso precisem sair de casa, devem se cobrir de acordo com a lei da Sharia. Se andarem com as roupas da moda, ornamentadas, apertadas e atraentes para se exibir, serão condenadas pela Sharia e perderão a esperança de um dia chegar ao paraíso. Serão ameaçadas, investigadas e duramente punidas pela polícia religiosa, assim como os membros mais velhos da família. A polícia religiosa tem o dever de combater esses problemas sociais e continuará com os seus esforços até o mal ser erradicado.” 

Eles voltaram.

Alá é grande; Joe Biden é pequeno.

 

 

 

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