Marcos Corrêa/PRBolsonaro e Braga Netto assistem ao desfile ao lado dos comandantes militares: ideia tresloucada

O general aloprado

Jair Bolsonaro encontra no ministro da Defesa, Walter Braga Netto, o parceiro que faltava para dar vazão a suas fantasias antidemocráticas. O perigo está evidente
13.08.21

Ao assumir o Ministério da Defesa em abril deste ano, o general Walter Braga Netto virou o tarefeiro predileto de Jair Bolsonaro. A relação com o presidente vai além do “um manda, outro obedece” personificado pelo ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Hoje, no Palácio do Planalto, Braga Netto obedece ao presidente antes mesmo de ele mandar. O desfile dos blindados fumacentos na terça-feira, 10, foi um exemplo dessa, digamos, subordinação sem reservas. Calculada para afrontar simbolicamente o Judiciário e intimidar o Legislativo, que votaria horas depois a PEC do voto impresso, uma pauta bolsonarista criada para lançar dúvidas sobre as eleições do ano que vem, a carreata mostrou que o presidente não está sozinho na alopragem.

Não foi a primeira tentativa do presidente de dar uma demonstração de força com tanques na Esplanada dos Ministérios. Em março do ano passado, Bolsonaro levou a proposta ao então comandante do Exército, Edson Pujol. Só que o general se negou a obedecer a ordem, e foi bancado pelo então ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva. O restante da história já é conhecido: por não capitular a esses e a outros devaneios do comandante em chefe, Azevedo e Silva acabou exonerado em março deste ano. Em sua nota de despedida, disse ter atuado com o objetivo de preservar “as Forças Armadas como instituições de Estado”.

Parecia um prenúncio do que estava por vir. Na sequência, os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica decidiram colocar seus cargos à disposição, mas foram surpreendidos ao saber pelo recém-anunciado ministro de Defesa que já estavam sendo exonerados. Por causa do mesmo personagem, Braga Netto, a história foi diferente nesta semana. A chamada Operação Formosa é realizada anualmente pela Marinha desde 1988, com o objetivo de preparar os fuzileiros navais para eventuais combates. As tropas e os veículos são deslocados do Rio de Janeiro até o município goiano de Formosa, a 75 quilômetros de Brasília, onde funciona um campo militar com espaço adequado para as simulações. Ninguém nunca deu muita trela para o treinamento nem para os tanques antiquados que eram utilizados lá. Até que Braga Netto resolveu executar a ideia que povoava as fantasias de Bolsonaro, mudou o percurso do comboio e ordenou uma volta pela Esplanada, no que foi um dos episódios mais patéticos da história recente do país.

A ordem para a Marinha desviar os tanques e lançadores de mísseis partiu do Ministério da Defesa ainda na sexta-feira, 6. Falando em nome do presidente, Braga Netto determinou ao comandante da Marinha, o almirante de esquadra Almir Garnier dos Santos, que o roteiro fosse alterado. Garnier abraçou a causa de pronto e fez circular a versão de que a ideia partiu dele. Àquela altura, os veículos com motores a diesel descalibrados já estavam em Formosa e tiveram de dar meia-volta. Ao mesmo tempo, como num jogo combinado, o presidente da Câmara, Arthur Lira, fazia sua parte: desconsiderava a derrota do voto impresso na comissão especial que havia debatido o tema e jogava a decisão para o plenário.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéOs tanques entre o Planalto e o Congresso: fumaça no ar
Coube igualmente ao ministro da Defesa, de novo falando em nome do presidente, acionar os comandantes do Exército e da Aeronáutica, forças que nunca haviam participado da operação, para que se juntassem à patacoada. Quando os tanques passaram em frente ao Palácio do Planalto, Braga Netto posava sorridente ao lado de Bolsonaro, no topo da rampa, ao lado dos chefes militares.

O efeito da pretensa exibição de força, como era de se esperar, foi exatamente o oposto do desejado. Os veículos, muitos deles fabricados na segunda metade do século passado, acabaram por compor o retrato da fragilidade presidencial. Bolsonaro conseguiu a proeza de afrontar ainda mais as instituições e virar piada nas redes sociais. Na Câmara, a proposta do voto impresso foi rejeitada. O texto elaborado pela deputada bolsonarista Bia Kicis teve o apoio de 229 deputados – para ser aprovada, a PEC precisava de, no mínimo, 308 votos.  A derrota só não foi acachapante porque Lira se prestou ao papel de passar o dia em seu gabinete cabalando votos para evitar o vexame. Mesmo assim, foram contabilizadas traições no Centrão, incluindo o Progressistas do próprio Lira e do novo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira.

Para as Forças Armadas, o desfile significou uma desmoralização e mais uma demonstração da enrascada em que muitos fardados se enfiaram ao apoiar Bolsonaro e integrar seu governo. No Alto Comando do Exército, a pantomima na Praça dos Três Poderes recebeu uma enxurrada de críticas. A opinião quase unânime nesta semana era a de que o comandante Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira não deveria ter ido ao evento. O chefe do Exército até cogitou não comparecer, mas acabou dissuadido por Braga Netto, segundo relatos ouvidos por Crusoé.

A contragosto ou não, o fato é que não só Paulo Sérgio de Oliveira como os demais comandantes militares – Garnier, da Marinha, e Carlos Almeida Baptista, da Aeronáutica – seguem se dobrando aos voluntarismos do ministro da Defesa e do presidente. Em Brasília ainda ecoa a ameaça que Braga Netto fez no início de julho a Arthur Lira, por meio de um interlocutor político, de que, sem voto impresso, não haveria eleição. Ao mandar o recado, o ministro estava acompanhado dos chefes das três forças, que aparentemente assistiram a tudo calados.

Um dia antes do aviso, a pretexto de repreender o presidente da CPI, Omar Aziz, por suas declarações sobre “membros do lado podre” da caserna, uma nota com todas as digitais do ministro da Defesa já havia deixado no ar outra ameaça: a de ruptura institucional. O texto afirmava que as Forças Armadas constituíam “fator essencial de estabilidade do país”.

Cleia Viana/Câmara dos DeputadosCleia Viana/Câmara dos DeputadosA sessão que enterrou o voto impresso ocorreu horas após o desfile
Antes de transformar o Ministério da Defesa em puxadinho do Planalto e de virar um dos mais influentes ministros da Esplanada dos Ministérios já no comando da Casa Civil, Braga Netto passou por cargos estratégicos na hierarquia militar. Promovido a general em 2009, atuou como chefe do Comando Militar do Leste, com sede no Rio de Janeiro, e chegou ao posto de chefe do Estado-Maior do Exército, um dos mais importantes da força. Sua aproximação com o meio político começou em 2011, quando virou adido militar na Embaixada de Washington, nos Estados Unidos, e se consolidou com a sua escolha para coordenar ações do Exército na Olimpíada de 2016.

A preparação para os Jogos abriu as portas para que o general ocupasse em seguida o cargo de maior visibilidade de sua carreira, o de interventor federal na segurança pública do Rio de Janeiro. Braga Netto assumiu a função em 2018, por determinação do então presidente da República, Michel Temer. Com um orçamento de quase 1 bilhão de reais, a intervenção foi celebrada à época por ajudar a reduzir os índices de criminalidade no Rio e aumentar a sensação de segurança, mas teve ações polêmicas, como o crescimento do registro de práticas policiais violentas, sobretudo em favelas. “Muito tiroteio, pouca inteligência”, resumiu um relatório realizado pela entidade Observatório da Intervenção. Houve também controvérsias orçamentárias. Ao analisar a aplicação da verba destinada à ação, técnicos do Tribunal de Contas encontraram sinais de desvio de finalidade em 80% dos gastos analisados. Encontraram até a compra de camarão e bacalhau.

Àquela altura, ainda como deputado, Bolsonaro repudiou a intervenção militar no Rio e classificou a medida como “política”. As críticas públicas, entretanto, jamais se estenderam ao comandante da intervenção com quem já cultivava boas relações. Braga Netto e Bolsonaro se conhecem desde os tempos da Escola de Educação Física do Exército, onde ingressaram no final dos anos 1970. “Eles são da mesma turma e têm relação há mais de 45 anos”, diz o general da reserva Roberto Peternelli Júnior, contemporâneo dos dois no mesmo curso e hoje deputado federal pelo PSL.

“O general Braga Netto é um bom militar e um cumpridor dos regulamentos”, garante Peternelli, a despeito dos episódios recentes. Militares que conviveram com o general no Rio o classificam como um “linha dura com jeito mineiro” – uma figura de linguagem para explicar a mistura de rigidez militar com o jogo de cintura típico dos políticos de Minas. Foi justamente essa a característica, segundo colegas de farda, que determinou a ascensão de Braga Netto.

A tarimba política desenvolvida nos tempos de intervenção federal foi determinante para que o general ascendesse à Casa Civil, em fevereiro de 2020. Ao substituir Onyx Lorenzoni, ele herdou um ministério esvaziado. Com a troca de comando, a pasta perdeu as áreas de assuntos jurídicos, articulação política e o programa de parcerias e investimentos, o PPI. Aos poucos, o general foi conquistando espaço e ganhando ainda mais a confiança de Bolsonaro.

Luis Macedo/Câmara dos DeputadosLuis Macedo/Câmara dos DeputadosLira: deputados querem reação institucional à provocação bolsonarista
A proximidade com o presidente e a postura submissa fizeram com que Braga Netto embarcasse em uma desastrada missão: a coordenação do combate ao coronavírus. Como a CPI da Covid já mostrou, os equívocos e as omissões do governo federal durante a crise sanitária causaram centenas de milhares de mortes. Na Casa Civil, o general chancelou boa parte das ações de Bolsonaro, como a prescrição indiscriminada de remédios ineficazes e o pouco caso com o uso de máscaras.

Em conversa reservada com a cúpula da CPI, o ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde Roberto Dias chegou a dizer que teria um dossiê contendo provas de que Braga Netto pressionava os integrantes do Ministério da Saúde a receber intermediários suspeitos das vendas de vacinas. O papelório nunca veio à tona. De todo modo, a comissão de inquérito requisitou informações sobre a atuação do general no combate à pandemia. A cúpula da CPI também tem a intenção de convocar Braga Netto para depor, mas só vai colocar o requerimento em votação quando houver segurança de que ele será aprovado, porque parte do colegiado ainda resiste à ideia.

Contribuiu para aumentar a pressão em favor da convocação a postura do ministro durante o episódio da parada militar desta semana. Mas não só isso. Uma denúncia apresentada na semana passada à CPI pelo senador petista Rogério Carvalho sugere que Braga Netto cometeu excessos de outra natureza. O senador sustenta que um coronel da reserva e um oficial da ativa foram escalados pelo ministro da Defesa para bisbilhotar sua vida. A suposta espionagem, diz Carvalho, teria sido ordenada em retaliação ao pedido que ele fez à comissão para quebrar o sigilo telemático de Braga Netto.

O coronel da reserva a que Carvalho se refere como possível espião é um ex-colega do ministro da Defesa na Academia Militar das Agulhas Negras, a Aman. “Eu quero dizer ao senhor Braga Netto que eu não tenho medo, que eu não abrirei mão das minhas convicções. A gravidade é grande, porque eu estou sendo espionado por conta do exercício da função”, disse o senador, sem, no entanto, apresentar provas da espionagem. O parlamentar alega que não fala mais, a fim de proteger as pessoas que foram abordadas pelos militares. Instado pelo petista, Omar Aziz enviou um ofício ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, pedindo que Braga Netto seja interpelado oficialmente pela casa. O ministro da Defesa nega que tenha determinado a ação.

Ante o recrudescimento da tensão institucional nas últimas semanas, é de se esperar que o ministro da Defesa deixe de lado sua face linha-dura e recupere o “jeito mineiro” tomado pela alopragem bolsonarista. Afinal, alguém precisa dizer para o chefe que a cadeira presidencial não é um bom lugar para cometer fantasias.

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