A democracia como exceção

13.08.21

Guarde bem esse número: 57 países no mundo são comandados por regimes autoritários. 

Isso significa dizer que 35% da nossa espécie, mais de dois bilhões e meio de homo sapiens, acordam todas as manhãs governados por um regime fechado, sem direitos políticos. Um terço da humanidade. Nós estamos falando de bilhões de pessoas que literalmente sobrevivem às horas e aos dias sem qualquer garantia de expressar livremente suas opiniões.

Há cem anos esse cenário era muito pior. Mas ainda estamos longe do ideal. Menos da metade da população mundial vive hoje em algum tipo de democracia. E menos de 1 em cada 10 seres humanos reside em uma democracia plena. Nós, brasileiros, estamos tão acostumados com a ideia de escolher nossos representantes políticos que frequentemente esquecemos o quão raro é esse processo ao longo da história. E não apenas em terras distantes, mas em nossas próprias paragens.

Desde 1822, o Brasil sobreviveu a 9 golpes de Estado. Na República, nossa liderança mais longeva – e provavelmente a figura mais popular já nascida em nossas cercanias – foi um ditador. As homenagens em praças e avenidas podem até tentar esconder as sombras da História, mas Getúlio Vargas fechou o Congresso Nacional, extinguiu partidos políticos, deportou e torturou opositores, censurou a imprensa e limitou direitos civis. Nada disso ainda hoje é impeditivo para vê-lo coroado como uma referência mesmo por candidatos bem posicionados para as próximas eleições presidenciais. E Getúlio nem sequer é o nosso único ditador de estimação. Por todo o Brasil, nossas praças e avenidas também homenageiam os 21 anos de ditadura militar impostos a partir de 1964. Duas décadas de violência política, censura, corrupção e estupidez.

Nossa democracia é tão imatura que até 1989 nenhuma eleição presidencial na história brasileira havia contado com a participação de mais de 20% da população. Desde então, nós elegemos 5 presidentes, dos quais dois sofreram impeachment e um foi preso. Na verdade, se considerarmos os últimos 95 anos da nossa história, apenas 5 presidentes foram eleitos pelo voto popular e completaram o mandato: Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma. Mas mesmo Dilma acabou sofrendo um impeachment em seu segundo mandato, e Lula foi preso anos após deixar o governo. Lula e Dilma, aliás, possuem um longo histórico de aproximação ideológica com ditadores. Quando Fidel Castro faleceu em 2016, Lula o chamou de “o maior de todos os latino-americanos”. Quando Hugo Chávez morreu, três anos antes, Dilma decretou luto de três dias e disse que seu falecimento representava uma “perda irreparável” à América Latina.

Desde 2019 nós somos governados por outro sujeito que sequer se dá ao trabalho de disfarçar sua vocação autoritária. Jair Bolsonaro, um herdeiro do capital político do período militar, coleciona três décadas de apologia a ditaduras. Já defendeu fechamento do parlamento, fuzilamento de opositor político e volta dos militares. Já elogiou torturador, ditador pedófilo e assassino. É o pacote completo. Você viu cenas como essas se repetirem inúmeras vezes nos últimos anos.

Bolsonaro exaltou Pinochet, apoiou Fujimori, defendeu a esterilização dos mais pobres para combater a miséria e o crime, e abraçou a ideia de que só uma guerra civil é capaz de mudar o país. Para ele, “o erro da ditadura foi torturar e não matar“. Parece um acaso no rumo da nossa história? Nem tanto.

É perfeitamente compreensível que uma nação sem tradição democrática, com baixa qualidade na educação e altos índices de violência, eleja uma figura como Jair Bolsonaro a presidente, inebriada pela pobreza de sua cultura política. O bolsonarismo é coerente com as tradições terceiro-mundistas da América Latina, um continente sempre disposto a aclamar bufões de coturno, dedo em riste e peito estufado; um território reconhecido pela produção inesgotável de figuras caricatas que atraem atenção do mundo por desafiarem os limites da estupidez humana. E é exatamente por isso que o bolsonarismo não deve ser subestimado – inclusive enquanto fenômeno não apenas apto a promover tentativas de golpes de Estado, como de se reconstruir, apoiando-se em novos delírios coletivos eleitorais, com novas lideranças políticas, ainda mais grosseiras e impetuosas.

A única arma qualificada a desafiar este longo e trabalhoso processo de subdesenvolvimento a que estamos submetidos, capaz de ameaçar eleições e radicalizar o debate público, é a defesa intransigente da democracia. E não apenas como oposição ao bolsonarismo, mas a qualquer movimento político relevante malsucedido em resistir às seduções do autoritarismo. É a defesa da democracia sem asterisco.

Você ainda deve lembrar dessa informação: 57 países no mundo são comandados por regimes autoritários. Um terço da humanidade vive nesses lugares. Fora dessa conta, ainda há outro bilhão de pessoas governadas por regimes híbridos, parcialmente livres – ou seja, nações com líderes populistas suprimindo grupos de oposição, adiando eleições, controlando a imprensa e violando direitos humanos. Basta um olhar um pouco mais atento para perceber que a violência política não é a exceção na história do mundo. Quem ocupa esse papel é a democracia.

Em nações politicamente instáveis, líderes com vocação autoritária frequentemente ameaçam alterar as leis do jogo democrático, concentrando poder, supostamente em defesa dos interesses populares e da proteção do próprio processo político. É preciso estar atento e forte. Como escreveu Thomas Jefferson, um dos pais fundadores da nação que inventou o republicanismo, o preço da liberdade é a eterna vigilância.

Rodrigo da Silva é documentarista e fundador do canal Spotniks, no YouTube.

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