RuyGoiaba

Boi preto conhece boi preto

06.08.21

Clodovil Hernandes, esse grande brasileiro (que como deputado foi um ótimo estilista, mas não se pode ter tudo), usava a frase “boi preto conhece boi preto” para dizer que um gay sabia reconhecer outro — fenômeno descrito pelos americanos com uma palavra só: gaydar, misto de “gay” com “radar”. Mas a frase, claro, é boa demais para ser aproveitada apenas nesse contexto: ela vale para qualquer circunstância em que os essencialmente iguais se reconheçam.

Comecei lembrando essa história de Clodovil para afirmar o seguinte, sem o menor receio de me enganar: a capacidade do governo de Jair Bolsonaro de atrair gente picareta é sem paralelo na face da Terra, mesmo considerando uma atividade (a política) e um país (o Bananão) em que os picaretas superabundam. Esta é a edição 171 da Crusoé  — simplesmente porque, se ainda não tiverem revogado a aritmética, o 171 costuma vir depois do 170 e antes do 172. Mas bastará vocês darem uma olhada nas outras seções da revista, em qualquer uma das edições, para concluir que esse número não tinha como ser MAIS adequado. É um governo de estelionatários e produtores seriais de fake news, 24/7.

Vejam, por exemplo, o tal reverendo Amilton de Paula, que depôs na CPI da Covid na última semana e dirige uma certa Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários — como se vê, já no nome a entidade quer passar por órgão governamental (que não é). O reverendo jogou na comissão uma conversa que só pode ser descrita pelo excelente e ultrapreciso termo carioca CAÔ: não tinha contato com ninguém no governo, mandou e-mail — meramente na condição de cidadão preocupado com a saúde do Brasil — dizendo que conhecia um cara aí que tinha umas vacinas aí para vender, rumou para o Ministério da Saúde horas depois (sim, no mesmo dia) e, chegando lá, foi recebido em reunião pelo secretário de Vigilância em Saúde. Vai ver foi Deus que agendou tudo e mandou um Moisés invisível abrir as portas do governo, como se fosse o Mar Vermelho.

Tem mais: a “secretaria” do reverendo é parceira de um advogado de Ponta Grossa, no Paraná, que 1) tem nome de estrela (Aldebaran von Holleben); 2) se apresenta como presidente de uma United Nations Mission of International Relations, que obviamente tem ligação zero com a ONU; 3) entrou na Justiça para obter o direito de ser conhecido como o Superman brasileiro. Vocês pensam que acabou? Não ainda: outro dos parceiros de Amilton de Paula é um tal Zigmund Ziegler Roberto Cohen, que diz ser psicanalista, monge, médico de Harvard, coronel-capelão do Exército americano e mantém sites cheios de logotipos de instituições internacionais postados na base do copia-e-cola, todos pessimamente diagramados. O próprio suposto reverendo declara, em seu currículo Lattes, ter sido “adjunto oficial general” do Ministério do Exército — O Antagonista constatou que não há registro dele na Força nem como recruta.

Já foi dito várias vezes, mas vale repetir: essa gente, esse exército de Brancaleone da picaretagem, foi recebida em questão de horas pelo MESMO Ministério da Saúde que ignorou, de acordo com a CPI, mais de 100 e-mails nos quais a Pfizer oferecia a vacina que é considerada uma das mais eficazes contra a Covid. Mesmo considerando que esse governo, e sobretudo seu chefe, é burro a ponto de acreditar no hoax do príncipe nigeriano, não há outra hipótese: são bois pretos reconhecendo (e negociando com) outros bois pretos. Não servem nem para o exercício do banditismo profissional, que em geral é menos ruminante.

E pensar que ainda há bois pretos — gado — mugindo em apoio a isso tudo.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Um dos grandes candidatos ao troféu na semana que passou foi a enquete em que a Jovem Pan perguntou, em resumo, “voto impresso é bom ou ruim?” e a maioria respondeu “sim” — confesso, sou do tempo em que a rádio não era assessoria de imprensa de governo e ainda sabia formular esse tipo de pergunta (isso faz muito tempo, é claro). Mas os campeões, já que esta é a Crusoé 171, são os malandros otários que hackearam o celular de Rodrigo Maia, tentaram dar um golpe de 20 mil reais em Luis Miranda e acabaram sendo forçados a depositar 50 reais na conta do deputado do DEM do Distrito Federal. Profissionalismo é isso.

Alessandro Dantas/via Fotos PúblicasAlessandro Dantas/via Fotos PúblicasLuis Miranda, o profissional, flagrado em um momento espontâneo de comoção

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