RuyGoiaba

Vamos queimar o Cristo Redentor?

30.07.21

O Brasil é mesmo uma delícia nisso de ser a vanguarda do atraso e justificar todo santo dia o apelido de “Bananão” que lhe foi dado pelo saudoso Ivan Lessa. Toda e qualquer ideia idiota da metrópole será importada e posta em prática na colônia com pelo menos um ano de atraso, e isso acontece nas duas pontas da ferradura ideológica que alguns brasileirinhos calçam. À direita, você sabe que quaisquer símbolos cretinos ou teorias conspiratórias da alt-right americana serão macaqueados aqui por Sorocabannon e similares. E, à esquerda, parece que a modinha de queimar ou derrubar ESTAUTAS, da qual falei nesta coluna publicada no ano passado, finalmente chegou a estas plagas.

Vamos, por enquanto, deixar de lado a inteligente noção de prioridade dos “ativistas” em um país com mais de 550 mil mortes por Covid e um presidente estúpido que ameaça a democracia dia sim, outro também: nossa, não consigo imaginar questão mais premente que tocar fogo em estátuas feias. Podemos também tratar apenas en passant da extraordinária ignorância histórica sobre o personagem Borba Gato, que viveu refugiado entre os tupis depois de ter assassinado um fidalgo espanhol branco. E nem nos deteremos nos débeis mentais da esquerda que elogiam a destruição do monumento a um “bandeirante genocida”, mas acham que é preciso entender o “contexto histórico” em que Stálin matou milhões — defensores de genocídios do bem.

Minha pergunta, já feita na coluna de mais de um ano atrás, é simples: onde é que a gente traça a linha, o limite (“até aqui derruba, para além daqui mantém”)? Evangélicos podem destruir estátuas de orixás? (Em Goiânia, conta um amigo, houve de fato um movimento para retirá-las de um parque da cidade.) Bolsonaristas podem pôr abaixo o Memorial JK, aquele projetado pelo comunistão Oscar Niemeyer que basicamente reproduz a foice sem o martelo? A turma da TFP está liberada para pulverizar a pedra em homenagem a Carlos Marighella na alameda Casa Branca, em São Paulo? Se a resposta a todas essas perguntas for “não”, por que em uma democracia esses grupos todos teriam menos “direitos” que a tal Revolução Periférica, incluindo o “direito” de impor a toda uma sociedade a história tal como ela é vista por seu grupelho?

E vou além: Borba Gato é um alvo fácil, o que só denota a covardia dos, ahn, revolucionários que o atacaram. É um monumento horroroso, motivo de escárnio há décadas, que provavelmente seria retirado de Santo Amaro e escondido num galpão para todo o sempre se fizessem um plebiscito para decidir. O que nos impede de queimar o Cristo Redentor, esse símbolo da opressão católica e branca sobre os povos originários do Brasil? Por que não também, pelo mesmo motivo, as igrejas de Salvador, Ouro Preto e Olinda? E os museus, esse recorte da história quase invariavelmente feito pelos opressores?

(Pôr fogo no Bananão inteiro, com os brasileiros dentro, não parece má ideia. Mas, no último caso, nem é preciso, porque a incúria e o descaso do país já dão conta do recado sozinhos — vide os museus Nacional e da Língua Portuguesa. Ou o galpão da Cinemateca, que queimou pouco depois de eu escrever o texto.)

Existe um motivo para que as leis punam quem vandaliza monumentos, e não se trata de corroborar a “história como é contada pelos opressores” — trata-se também, como lembrou um amigo da área do direito, de proteger minorias. A lei evita, por exemplo, que uma homenagem a Zumbi dos Palmares seja destruída sob o argumento de que ele tinha escravos, ou por algum grupo de negros de direita. Se for liberado queimar “monumentos ofensivos”, me parece pouco provável que a Revolução Periférica e seus groupies ganhem essa num lugar em que um direitista é eleito com 57 milhões de votos: algo me diz que não sobrará uma estatuinha de Zumbi e Marighella, ou mesmo aquela de Carlos Drummond de Andrade sentado num banco de Copacabana, para contar a história.

A questão não é apenas se a nossa época iluminada deve servir de régua a todas as outras: é se queremos conceder a pequenos grupos de militantes, de qualquer extremo da ferradura, o poder de decidir de que modo uma sociedade democrática — difícil equilíbrio de visões de mundo muito conflitantes — deve lidar com a sua história. Porque, se o que vocês quiserem for isso mesmo, lanço desde já a Revolução Goiabista e sua única proposta (100% paz & amor, sem destruição de qualquer espécie): trocar de vez o Cristo Redentor por uma versão reconstruída do saudoso Cocozão de Ponta Grossa. O Brasil merece, cada vez mais, ser saudado toda manhã por um Cocozão triunfante no alto do Corcovado.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Que vida triste deve ser a dessa gente que fica nas redes sociais pedindo atestado de ideologia dos atletas antes de torcer para os brasileiros que estão ganhando medalhas na Olimpíada de Tóquio — sim, até para a menina skatista Rayssa Leal, que tinha exatos 10 anos de idade na última eleição presidencial. No momento em que escrevo este texto, Rebeca Andrade ganhou há algumas horas a medalha de prata, melhor desempenho da ginástica do Brasil (até agora) na história dos Jogos. Espero que todos vocês aí já saibam se a Rebeca saiu em foto com pessoas indevidas e quais as opiniões dela sobre a reforma trabalhista, a Lava Jato, o impeachment da Dilma e a queima da estátua do Borba Gato.

Rebeca Andrade, que certamente será cancelada se achar que Lula merecia prisão

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