O Centrão na sobremesa
Ao oficializar nesta semana o senador Ciro Nogueira no comando da Casa Civil e se render por completo ao suprassumo do fisiologismo no Congresso, o presidente Jair Bolsonaro fez um movimento calculado, embora previsível. Com a iniciativa, ele tenta resolver duas questões de uma tacada só: se safar do risco de perder o mandato, em um momento de deterioração crescente de sua popularidade, e amarrar o Centrão a seu projeto da reeleição, o que é algo ainda incerto.
Em audiência com Ciro Nogueira, o quarto ministro da Casa Civil do atual governo, o presidente prometeu a ele total autonomia, a partir de agora, para exercer a articulação política do Planalto com o Congresso. Significa que o até agora presidente do Progressistas terá, como ministro, sinal verde para negociar nomeações e articular a liberação de emendas dos parlamentares – a segunda função ele fará em parceria com a ministra da Secretaria de Governo, Flávia Arruda, do PL de Valdemar Costa Neto. Com isso, o Centrão passa a controlar o ciclo de indicações políticas para postos no governo de ponta a ponta. “Fomos nos moldando”, reconheceu sem corar o presidente, ao ser indagado sobre sua rendição aos profissionais da política.
O problema, para Bolsonaro, é que nada garante que os partidos que compõem o Centrão irão lhe franquear apoio incondicional até o final – muito menos que abraçarão o seu projeto de reeleição. Essa, inclusive, é a exata condição em que Centrão se sente mais confortável. A de, como principal bloco de sustentação de um presidente frágil, poder sempre amealhar mais e mais poder até que uma possibilidade real de impeachment os leve a abandonar o governo sem a menor cerimônia.
Na condição de presidente da legenda, Ciro Nogueira administrou a quarta maior fatia do fundo eleitoral. Se o fundão alcançar mesmo os 4 bilhões de reais, com a bênção de Bolsonaro, o Progressistas deve abocanhar 280 milhões de reais para a eleição nacional. Para que toda essa estrutura esteja a serviço de outra candidatura que não a de Bolsonaro, basta que o governo termine de se inviabilizar politicamente e outro aspirante ao Planalto apresente uma negociação mais vantajosa.
Ciro Nogueira, por exemplo, que até há pouco tachava Bolsonaro de “fascista” e hoje é chamado por ele de “filho 05”, não terá a menor dificuldade para mudar de lado se lhe for mais conveniente. Menos de três anos atrás, ele era aliado de primeiríssima hora de Lula e Dilma Rousseff. Em 2018, durante a campanha para senador, chegou a dizer que deixar Lula de fora da disputa presidencial – na ocasião, o petista estava na cadeia – era “tirar do eleitor um direito de escolha”. Afirmou ainda que ficaria com Lula “até o fim”. “Se preciso for, ele volta a ser lulista”, afirma um interlocutor do senador.
A ala militar do governo, que está sendo engolida pelo Centrão, também torce o nariz para a ascensão de Ciro ao coração do Planalto. Depois que soube que não permaneceria mais no posto de chefe da Casa Civil, o general Luiz Eduardo Ramos batalhou até o último minuto para evitar ser substituído pelo senador do Progressistas. Não deu certo. Ramos teve de aceitar em silêncio ser deslocado para a Secretaria-Geral da Presidência na mesma dança das cadeiras que guindou Onyx Lorenzoni – então ocupante do cargo transferido para o general – ao novo Ministério do Emprego e Previdência.
A convivência dos militares com o Centrão nunca foi pacífica, mas piorou há duas semanas quando o próprio Ciro Nogueira e o presidente da Câmara, Arthur Lira, também do Progressistas, foram acusados de vazar para a imprensa que o ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, teria dito que sem voto impresso não haverá eleição em 2022. Ali, o caldo entornou de vez.
O que pode contribuir para que o Centrão vire a casaca são os desdobramentos da CPI. A comissão de inquérito, que retoma os trabalhos na próxima semana, volta com agenda cheia. Senadores pretendem lançar luz, por exemplo, sobre o turvo contrato entre o Ministério da Saúde e a Precisa Medicamentos para a aquisição da vacina indiana Covaxin, que tem como pivô o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, do mesmo partido de Ciro Nogueira.
Mas o mais encalacrado é mesmo Jair Bolsonaro. Para integrantes da CPI, as gravações trazidas à tona por Crusoé de reuniões interministeriais ocorridas em 2020 para debater a adesão do Brasil ao consórcio de vacinas Covax Facility, liderado pela OMS, constituem prova de que o presidente boicotou a compra dos imunizantes que poderiam ser usados em 50% da população. Isso, por si, já configuraria crime de responsabilidade.
“Já estão comprovados crimes contra a saúde pública, que chegam a crime de responsabilidade, e que poderiam ser usados pela Câmara para abrir um processo de impeachment”, diz a senadora Simone Tebet.
As provas coletadas pela comissão de inquérito serão encaminhadas à Procuradoria-Geral da República. Se Augusto Aras não servir de escudo para o Planalto, integrantes da comissão acreditam que haverá evidências suficientes para acusar o presidente pelo crime de epidemia, na forma qualificada, com pena de reclusão de 20 a 30 anos. Há ainda a possibilidade de uma acusação pelo crime de prevaricação, que teria ocorrido tanto na omissão na compra de vacinas quanto na inação de Bolsonaro após ser informado pelo deputado Luís Miranda e seu irmão, Luis Ricardo Miranda, sobre as graves suspeitas em torno da compra da Covaxin. Agravado o quadro político do presidente, se alguém no Planalto gritar “cadê o Centrão?”, pode ser que nem ouça resposta. Por ora, a turma de Ciro Nogueira, Arthur Lira e companhia faz aquilo que mais gosta: se lambuza no banquete.
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