Um tucano esvoaçante na
República de Curitiba
A Lava Jato mostrou que a fauna política brasileira goza, nos tribunais superiores, de uma espécie de rede de proteção voltada a preservar seu ecossistema corrupto. É diário o esforço para evitar que tucanos sejam engaiolados, assim como para libertar jararacas e caranguejos – que só estão presos por ação independente de juízes e procuradores de primeira instância. Nas últimas semanas, a tensão em torno de mais uma investigação contra Beto Richa, ex-governador do Paraná, expôs novamente esse conflito.
Filho do ex-senador José Richa, um dos fundadores do PSDB, Beto Richa é a principal estrela do partido na terra da Lava Jato. Candidato ao Senado, após governar o estado por duas vezes e ter sido prefeito de Curitiba, o tucano tenta escapar da acusação de ter recebido 4 milhões de reais da Odebrecht para sua campanha de 2014 – em troca, teria beneficiado a empreiteira com a promessa do contrato de ampliação da rodovia PR-323.
A investigação, que se arrastava na Procuradoria-Geral da República em Brasília, desceu para a primeira instância meses atrás, logo depois de Richa ter renunciado ao governo para concorrer ao Senado. Desde então, a equipe de advogados de defesa, capitaneada por José Roberto Santoro, trava uma batalha jurídica (e política) para tentar restringir a acusação a mero crime eleitoral, evitando que o tucano responda por corrupção e lavagem de dinheiro na Justiça Federal. O medo maior, para variar, é que o caso acabe nas mãos de Sergio Moro.
Outros tucanões enrolados
Todo esse material levou o vice-PGR, Luciano Maia, a entender, num primeiro momento, que a investigação contra o ex-governador deveria ser remetida à Justiça Eleitoral e a Justiça Federal – leia-se a 13ª Vara Federal de Curitiba. Tão logo recebeu os autos, em abril, Sergio Moro mandou instaurar novo inquérito. Em pânico, os advogados de Richa bateram à porta de vários gabinetes em Brasília, entre eles o do ministro Og Fernandes, relator do caso no STJ.
Roberto Santoro e seu time expuseram os seus argumentos e protocolaram recurso para retirar o caso das mãos de Moro. Dias depois, quem bateu à porta de Og foi o próprio vice-PGR, para dizer que havia se “equivocado” ao mandar o caso para Moro. Desconfiado, o ministro recomendou ao vice-PGR que explicasse sua mudança de posição durante o julgamento na Corte Especial, que acabou acolhendo o recurso de forma unânime. A reviravolta do vice-procurador Maia irritou o seu principal assistente, o procurador Alexandre Espinosa Bravo, que resolveu entregar o cargo dias depois. Espinosa não fala de sua demissão oficialmente, mas interlocutores informaram a Crusoé que o vice-PGR cedeu a pressões superiores.
Depois do episódio, o clima entre a PGR, Raquel Dodge, e sua equipe azedou de vez. Em dezembro, os advogados de Richa já haviam conseguido de Gilmar Mendes liminar suspendendo o inquérito da Operação Publicano, que também atingia Richa. A investigação, de 2015, desbaratou um esquema de cobrança de propina na Receita Estadual do Paraná. Delator do caso, o ex-auditor Luiz Antonio de Souza disse ter pago R$ 4,3 milhões para a campanha de reeleição do ex-governador. Segundo Souza, quem coordenava a cobrança junto a empresas devedoras era Luiz Arbi, primo de Richa.
Os advogados do tucano alegaram que o Ministério Público Estadual usurpou competência da PGR ao firmar o acordo de colaboração que citava um governador. Responsável pela homologação, o juiz Juliano Nanúncio, da 3ª Vara Criminal de Londrina, disse que não chegou a autorizar qualquer diligência contra Richa, mas seu argumento foi ignorado. Em fevereiro, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski referendaram o entendimento de Gilmar, e o inquérito foi anulado pela Segunda Turma.
Ainda em dezembro, dias antes da liminar de Gilmar, a procuradora-geral da República anunciou a suspensão das negociações da colaboração premiada de Maurício Fanini, outro importante operador de Richa, preso em 2015, quatro meses depois de Abi, mas em outra investigação: a Operação Quadro Negro, contra desvios em obras de escolas estaduais. Raquel Dodge alegou que era necessário investigar os vazamentos da delação que estavam saindo na imprensa – repetindo o enredo de Rodrigo Janot por ocasião da divulgação da notícia de que Léo Pinheiro havia entregue Dias Toffoli em sua delação.
As negociações com Fanini nunca foram retomadas por Dodge, apesar do poderoso relato do engenheiro, amigo de Beto Richa desde a faculdade. Ameaçado de morte na cadeia, o ex-diretor de Engenharia da Secretaria Estadual de Educação do Paraná entregou à PGR detalhes do seu trabalho como arrecadador de propina do tucano, de 2002 a 2015. O dinheiro desviado da educação bancou campanhas e despesas pessoais da família Richa, inclusive viagens internacionais. Na quarta-feira 22, aliás, o MPE do Paraná pediu a impugnação da candidatura de Richa, por ele ter sido condenado por improbidade ao usar dinheiro público numa visita a Paris.
O delator Fanini também contou à Lava Jato que a propina arrecadada foi usada para a compra de um apartamento para o filho primogênito de Richa, Marcello, que estava prestes a casar-se. No depoimento, ele detalhou a entrega da mala de dinheiro a um emissário de um primo de Richa. Fanini revelou ainda que o tucano destruiu provas, ao ser informado com antecedência das prisões de seus subalternos.
Todas essas vitórias jurídicas do advogado Santoro e sua equipe chamaram a atenção de gente do próprio Ministério Público e passaram a ser observadas com lupa. Santoro é figura carimbada em vários escândalos políticos em Brasília. Ex-colega de Dodge no MP e ligadíssimo a José Serra, aposentou-se do serviço público depois de se envolver no caso Waldomiro Diniz, em 2004. Flagrado numa conversa pouco republicana com Carlinhos Cachoeira, que gravara o assessor de José Dirceu, virou alvo de investigação interna por “extrapolar suas funções” com subprocurador-geral. Ao deixar o serviço público, passou a advogar para o tucanato. E vem prosperando desde então.
Com a boa vontade de Gilmar Mendes, Santoro já conseguiu este ano soltar duas vezes o engenheiro Paulo Vieira de Souza, o Paulo Preto, ex-diretor da Dersa, que é investigado ao lado de José Serra por desvios nas obras do Rodoanel. E garantiu o arquivamento do inquérito de Aloysio Nunes no caso de ‘caixa 2’ da UTC. A PGR não viu indícios suficientes para aprofundar a investigação, especialmente depois da morte da principal testemunha do caso.
Santoro está prestes a conseguir outro arquivamento de inquérito sobre repasses da Odebrecht para Aloysio Nunes. A tese do advogado já conta com a boa vontade de Gilmar Mendes e Dias Toffoli. Edson Fachin chegou a pedir vistas do caso, mas a Segunda Turma deve quitar a fatura ainda este mês.
No caso de Richa, Santoro é acompanhado da também ex-procuradora Antonia Lelia Sanches, que se aposentou da Procuradoria Regional da República há cerca de um ano e meio. Com atuação no TRF-4, ela foi a responsável pelo pedido de abertura de inquérito da Operação Quadro Negro. É isso mesmo que você leu: a procuradora que investigava Richa deixou o MP e passou a advogar para… Richa. Ela garante que não há conflito de interesses, pois não atua no TRF-4.
Com a vantagem de transitar quase como uma anônima nos tribunais superiores em Brasília, Antonia Lelia tem como cartão de visitas a amizade com Raquel Dodge. As duas também têm uma amiga em comum: a advogada Maria Tereza Uille Gomes, ex-secretária de Justiça de Beto Richa. Em 2013, Antonia Lelia, Maria Tereza Uille e Raquel Dodge estiveram juntas na conferência “Partnerships for Sustainability”, organizada pelo Pacto Global da ONU.
Não há nenhum crime na relação fraternal de Dodge com as advogadas ligadas a Richa. Mas é natural que surjam questionamentos sobre a influência dessas relações depois de tantas decisões favoráveis – e contraditórias – ao tucano. Vale ressaltar que a defesa de Richa também conseguiu no TRF-4 decisão favorável para retirar o caso da Odebrecht das mãos de Moro. Como O Antagonista revelou, quem deu a liminar foi o desembargador Luiz Fernando Wowk Penteado, cuja filha ganhou cargo comissionado no governo Richa.
O escorregadio tucano paranaense agora quer chegar ao Senado para recuperar o foro privilegiado. Se for eleito, pela nova regra, ele poderá responder por crimes anteriores ao mandato na primeira instância, mas estará protegido da prisão por seus colegas de parlamento.
Em nota enviada à Crusoé, Beto Richa criticou os delatores. “São acusações falsas, apresentadas por criminosos que constroem versões e mudam a cada momento, na vã tentativa de transferirem a responsabilidade pelos crimes por eles próprios praticados e já confessados, de forma a se livrarem das condenações que virão a sofrer”.
Procurado pela reportagem, o advogado Santoro reiterou que o caso da Odebrecht é restrito à esfera eleitoral. “O próprio Ministério Público reconheceu que houve um equívoco”. Segundo ele, o que está em discussão não é a 13ª Vara. “O fato é que não há prova de corrupção. O que os delatores falam é de doação para a campanha. O juízo adequado é o eleitoral”.
Em relação à operação Quadro Negro, o advogado criticou o vazamento da delação de Fanini e disse que Dodge cumpriu a lei. “Não pode vazar e o rapaz não tem credibilidade”. Em relação à anulação do inquérito da Publicano, o advogado disse que muitos promotores no Paraná exageram e têm até coagido testemunhas. “Há gravações horripilantes”. Mas ponderou: “Isso não é uma crítica generalizada. Adoro a classe à qual pertenci e não trataria de forma leviada o MP, seja o estadual o federal. Mas o fato é que essas coisas ganham velocidade ímpar no processo eleitoral. As investigações de todos foram para a Justiça Eleitoral. Por que para Richa é diferente?”. Sobre a parceria com Antonia Lelia, Santoro não quis falar. “Me desculpe, mas preciso atender o meu médico”.
Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.