MarioSabino

Sejamos ingênuos e fanáticos

23.07.21

Desde a redemocratização, todo governante brasileiro eleito que fez aliança política com gente atrasada e malandra justificou o fato dizendo que não dá para governar sem ela — de Fernando Henrique Cardoso a Jair Bolsonaro, passando por Lula e Dilma Rousseff. Reconheça-se que, dada a quantidade de  parlamentares que fazem oposição aos interesses do país, em defesa apenas do seu próprio butim, fica mesmo difícil ignorá-los. A distorção é fruto de um sistema que desvaloriza o voto dos cidadãos, que também não contam com politização suficiente para entender o peso da sua responsabilidade quando apertam o número de um candidato na urna eletrônica. Mas não vou falar da necessidade de estimular a educação da população em todos os níveis, inclusive a cívica. Assim como não vou falar da urgência de impor cláusulas de barreira rígidas aos partidos, a fim de exterminar as legendas de aluguel, e da emergência em adotar o voto distrital (que nada tem a ver com esse distritão infame que querem emplacar). Gostaria apenas de fazer uma reflexão sobre a entrada formal do Centrão no Palácio do Planalto, com a nomeação de Ciro Nogueira para ministro-chefe da Casa Civil. Na verdade, não sobre a entrada, mas a partir dela.

O Centrão chegou ao coração do governo porque Jair Bolsonaro quer evitar o impeachment, e o preço ficou mais salgado no Congresso depois que o escândalo da compra das vacinas pelo Ministério da Saúde veio à tona. O presidente está obcecado, ainda, pela ideia de se reeleger em 2022, e acha que atingirá o seu objetivo por meio da captura fisiológica de boa parte do coronelato e do assistencialismo mais rastaquera. A sua entrega de corpo e alma (se é que Jair Bolsonaro a tem) ao Centrão nada tem a ver, portanto, com “governabilidade”, palavrona costumeiramente evocada pelos inquilinos do Planalto que fizeram os seus pactos com os suspeitos de sempre.

Por motivos que curriculares saltam aos olhos, Fernando Henrique Cardoso foi o único que tentou dar explicação filosófico-política ao seu amálgama com certo coronelato, quando era presidente da República. No livro A Arte da Política, lançado em 2006, ele evoca os conceitos de “ética da convicções” e de “ética da responsabilidade”, ao abordar o tema. Eu fiz referência a isso num artigo escrito em 2016, intitulado O PSDB e a ética da responsabilidade, no qual critiquei o tucanato que se recusava a entrar no governo de Michel Temer, sob o pretexto de querer mudar a forma de como se faz coalizão de forças no Brasil.

Ao reler o artigo, que integra a coletânea Cartas de um Antagonista, constatei que atribuí erroneamente os conceitos ao filósofo alemão Immanuel Kant. Na verdade, eles são de outro pensador, o também alemão Max Weber, sociólogo que desdobrou por caminhos próprios o pensamento de Kant. (Tenho de ser menos autoconfiante sob pena de acabar dizendo que Cristo foi enforcado). Max Weber diferenciava “a ética da convicções” — o conjunto de valores que molda a ação do político na esfera privada, em consonância com os fins últimos de uma moral social — da “ética da responsabilidade”, que direciona as suas decisões no âmbito da sua atuação cotidiana, visando ao bem geral. Essa diferenciação existe, mas só até certo ponto. Não é passe livre para ligar-se indissociavelmente à malta, ou se estaria no âmbito do fim que justifica os meios — que é onde nos encontramos desde há muito.

O político maduro é o que busca conciliar ambas as éticas, sem abrir mão dos fins últimos das convicções. Fernando Henrique Cardoso, em A Arte da Política, diz: “Weber não separa de modo absoluto as duas éticas. Apenas as distingue: uma, a das convicções, ajuíza as ações antes da sua vigência; a outra, a da responsabilidade, julga as consequências do ato praticado. Na ação do grande político, elas não podem ser separadas; se assim ocorrer, no primeiro caso levará ao fanatismo e, no segundo, ao cinismo”.

Max Weber, que teve carreira política, escrevia com base na sua experiência — e lindamente. Fernando Henrique Cardoso extraiu o seguinte trecho do volume Ensaios de Sociologia: “Também os primeiros cristãos sabiam muito bem que o mundo é governado pelos demônios, e quem se dedica à política, ou seja, ao poder e a força como um meio, faz um contrato com as potências diabólicas, e pela sua ação se sabe que não é certo que o bem só pode vir do bem e mal só pode vir do mal, mas que com frequência ocorre o inverso. Quem deixar de perceber isso é, na realidade, um ingênuo em política”.

Uma pena que Fernando Henrique Cardoso tenha deixado de lado a ética das convicções, ao fazer o contrato com as potências diabólicas para aprovar a emenda da reeleição, que avacalhou com a Nova República, como já apontei. Ele achou que desse mal podia ver o bem e deu nisto: não há mais política e muito menos arte da política. O cinismo fez terra arrasada de qualquer ética, e só poderemos reverter esse quadro com alguma ingenuidade. Sejamos fanáticos neste momento pela ética das convicções.

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