Agência Brasil

O escárnio do Fundão

Crusoé esmiuçou os gastos atualizados do fundo eleitoral e encontrou uma série de excrescências com o dinheiro que sai dos cofres públicos
23.07.21

O aumento do fundão eleitoral para 5,7 bilhões de reais, aprovado pelo Congresso Nacional na semana passada, causou revolta e suscitou o início de um motim entre apoiadores de Jair Bolsonaro, que pressionaram o presidente a rever a farra de dinheiro público para campanhas políticas. A elevação desproporcional da bolada destinada aos candidatos é indefensável, além de um escárnio sem precedentes.

Depois da repercussão negativa, o valor para o ano que vem ainda é uma incógnita, mas parlamentares e presidentes de partidos apostam em um montante de pelo menos 4 bilhões de reais em 2022, o dobro do valor gasto na campanha de 2020. Com Bolsonaro cada vez mais submisso ao Centrão, ninguém tem dúvidas de que o presidente cederá às pressões e apoiará a orgia política com recursos do Tesouro.

Para mostrar a gravidade do golpe à vista, Crusoé esmiuçou os balanços mais atualizados de gastos do fundão e encontrou uma série de excrescências com o dinheiro público. Nas eleições municipais do ano passado, realizadas em um momento crítico da pandemia, os partidos despejaram 2 bilhões de reais nas campanhas dos candidatos a vereador e prefeito –o equivalente, por exemplo, a 40 milhões de doses da vacina da Pfizer.

Os valores das despesas são escandalosos. Os políticos gastaram juntos 101,9 milhões de reais apenas com adesivo. Levando em conta o valor unitário de 30 centavos para um adesivo simples, mais conhecido como praguinha, seria possível produzir 340 milhões de unidades, mais de dois para cada eleitor brasileiro.

Agência BrasilAgência BrasilO fundão financia gastos milionários com adesivos e santinhos
A despesa com material impresso alcançou 282,6 milhões de reais. Como um santinho de 7x10cm custa, em média, 4 centavos, seria possível imprimir mais de 7 bilhões de unidades de propaganda impressa – o suficiente para distribuir um santinho para cada habitante da Terra. Já os 153 milhões de reais gastos com o pagamento de militância de rua equivalem a diárias para 2 milhões de cabos eleitorais.

A pandemia e as restrições de circulação também não impediram os candidatos de torrar no ano passado 102,7 milhões de reais com gasolina e aluguel de carros. O gasto com combustível equivale a 9 milhões de litros de gasolina, o suficiente para rodar 126 milhões de quilômetros, ou dar 3 mil voltas em torno do planeta.

Os aportes milionários destinados pelo TSE aos partidos políticos são gerenciados diretamente pelos diretórios nacionais das legendas. É a nata dos caciques que decide quem ganha um quinhão das generosas verbas federais reservadas para campanhas. Na prática, o cheque em branco vai parar na mão dos próprios dirigentes e de seus apadrinhados. O caso do Progressistas, partido de Arthur Lira e presidido pelo quase-ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, é ilustrativo. Nas eleições de 2020, a sigla distribuiu 146,9 milhões de reais a candidatos a prefeito e vereador em todo o país. O diretório que mais recebeu repasses da sigla foi justamente o do Piauí, de Ciro, agraciado com 19,3 milhões de reais. O principal fornecedor da sigla no Piauí, por sua vez, é um escritório de advocacia ligado à deputada Margarete Coelho, braço direito e aliada de primeira hora de Ciro Nogueira. Apenas durante a campanha de 2020, a banca recebeu 320 mil reais do diretório piauiense do PP.

Marcos Oliveira/Agência SenadoMarcos Oliveira/Agência SenadoO Piauí de Ciro Nogueira foi o maior beneficiado com verbas de seu partido
A elevação de 2 bilhões para 5,7 bilhões de reais na previsão do fundão eleitoral passou pelo Congresso durante uma sessão tumultuada na quinta-feira da semana passada, quando Jair Bolsonaro ainda se recuperava de um quadro de obstrução intestinal, em um hospital de São Paulo. A pressão sobre o presidente foi instantânea: antes mesmo de ter alta, ele começou a ser bombardeado nas redes sociais com pedidos para que vetasse o golpe do fundão. Parlamentares bolsonaristas que votaram a favor da LDO também sofreram fortes questionamentos, o que elevou a temperatura da crise no Planalto. Como sempre faz quando se sente acuado, o presidente passou então a buscar culpados para a crise. Sobrou para o vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos, do PL, que, segundo Bolsonaro, teria colocado uma “casca de banana” durante o debate da Lei de Diretrizes Orçamentárias e do fundão. A estratégia teve efeitos desastrosos e Ramos, um deputado influente no Congresso, deixou a postura independente e se declarou oficialmente como oposição. Pressionado de um lado pelos eleitores contrários ao fundão e, de outro, pelos aliados sedentos por mais verbas para a campanha, Bolsonaro buscou desculpas sem embasamento. “Se eu vetar, estou incurso no Artigo 85 da Constituição, que fala dos crimes de responsabilidade. Tenho que cumprir a lei”, disse o presidente na terça-feira, 20.

O argumento é uma balela. “Não é verdade que o veto ou a sanção configure crime de responsabilidade. Essa é uma decisão política, de conveniência e oportunidade, não há questão jurídica envolvida”, explica Elival Ramos, professor do Departamento de Direito do Estado da USP. No dia seguinte, Bolsonaro sacou da manga outra declaração falsa e afirmou que “a lei manda” o governo reajustar o fundão eleitoral pela inflação. “Se tivesse chegado um fundão na ordem de quase 3 bilhões de reais, eu seria obrigado a sancionar isso daí”, afirmou o presidente, perdido em meio ao tiroteio de opiniões.

O achincalhe promovido pelos parlamentares, no entanto, é apenas a ponta do iceberg. O golpe em curso no Legislativo é muito mais amplo e bem arquitetado. O estratagema inclui escancarar de vez portas para a gastança desmedida nas campanhas, com brechas para afrouxar a fiscalização e propiciar outros casos de desvio de recursos e lavagem de dinheiro. Para isso, as excelências pretendem mudar a legislação eleitoral no início de agosto. A alteração legal, considerada um grande retrocesso por especialistas, é capitaneada por aliados do presidente da Câmara, Arthur Lira, e tem o apoio discreto de vários segmentos do Congresso, entre eles partidos de esquerda. Se a tática funcionar, os partidos terão ainda mais dinheiro nas mãos, com regras permissivas e uma fiscalização cada vez mais frouxa.

Pablo Valadares/ Câmara dos DeputadosPablo Valadares/ Câmara dos DeputadosArthur Lira articula um golpe ainda mais grave que o fundão eleitoral
 “O diabo mora no detalhe. O risco é que as atenções fiquem concentradas apenas no fundão e, paralelamente, os parlamentares promovam outros retrocessos, sobretudo com relação à fiscalização e ao controle das contas dos partidos”, diz o diretor-executivo da organização Transparência Partidária, Marcelo Issa. Ele classifica o aumento do fundão aprovado pelo Congresso como “imoral e antiético”, mas afirma que o debate em torno do tema pode tirar o foco de outro assunto de extrema relevância: o novo Código Eleitoral. A proposta tem relatoria da deputada Margarete Coelho, do Progressistas. O projeto tramita informalmente na Câmara e nem sequer foi protocolado, mas já há articulação para que seja votado logo depois do recesso. Entre os absurdos, a iniciativa inclui nas possíveis destinações do fundo partidário qualquer tipo de despesa, desde que aprovada pela direção do partido. Hoje, compras de bens luxuosos, como helicópteros, e pagamento de festas com bebida alcóolica, por exemplo, são questionadas na Justiça Eleitoral. O dispositivo articulado no Congresso libera as siglas dessas amarras. O texto muda também a dinâmica de fiscalização das contas. Hoje, os partidos usam um sistema eletrônico da Justiça Eleitoral e os parlamentares querem substituí-lo por outra tecnologia com menos detalhamento e padronizações. Outro ponto que preocupa especialistas é a mudança no processo de prestação de contas. Pelas regras atuais, ele tem natureza jurisdicional, ou seja, está sujeito a institutos do processo judicial. Se um partido não apresenta documentos ou esclarecimentos no prazo legal, por exemplo, perde os direitos de fazê-lo. A ideia dos parlamentares é transformar a prestação de contas em um processo administrativo, reduzindo o prazo de prescrição de cinco para dois anos. No Congresso, vale a máxima de que o que já é ruim sempre pode piorar.

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