Carlos Fernandodos santos lima

A corrupção em transformação

23.07.21

A verdade pura e simples é que boa parte dos nossos políticos não se importa realmente conosco, povo brasileiro, e a aprovação do fundo eleitoral de 5,4 bilhões de reais é a definitiva confirmação disso. Para eles somos apenas números, cabeças de gado nos seus supostos rebanhos, como na música Admirável Gado Novo, de Zé Ramalho: “povo marcado, povo feliz“. A preocupação deles com a nossa república só vai até o ponto de não a deixar morrer exangue, de não matar a galinha dos ovos de ouro. A atual classe política age como clãs de vampiros a nos encurralar — aqui no sentido de nos manter em seus currais —, usando de nossos preconceitos e medos para não nos deixar sair, enquanto entregamos nosso sangue na forma de impostos para alimentarmos suas ambições pessoais.

Isso vale para a esquerda, com seus discursos fáceis de utopias de igualdade absoluta a serem atingidas pela firme liderança de seus iluminados guias, como também para a direita, amante de utopias de liberdade plena, guiada por uma entidade metafísica chamada mercado. Nenhuma delas está realmente preocupada com a realidade, mas apenas em nos usar como massa de manobra de seus interesses. Os iluminados guias da esquerda no Brasil cada vez mais se parecem com as locomotivas da direita, pois todos justificam seus malfeitos com o mesmo bordão: roubo, mas é pelo bem do país —como se o “rouba, mas faz” da direita, ou o “rouba, mas tem programas sociais” da esquerda fossem de qualquer forma justos, corretos ou, em uma visão meramente utilitarista, realmente eficientes.

Mas nem sequer essas justificativas são verdadeiras, pois o que ambas desejam do fundo do coração é exatamente o mesmo: chegar ao poder e mantê-lo o mais longo tempo possível. Poder pelo poder, pelas benesses do poder, pelos presentes do poder, pela vaidade do poder, pela ambição do poder, apenas. A questão é: nós, povo brasileiro, merecemos isso? E talvez até mereçamos pela nossa passividade e por nossos medos e preconceitos.

Isto porque ficamos nas redes sociais arrebanhados por notícias falsas e por uma polarização sem sentido, quando tudo não passa de estratégia de marqueteiros para nos manter como cães raivosos na internet, mas passivos fora dela. Tudo o que aconteceu no Brasil, com a degeneração dos ideais da Nova República, com a substituição de lideranças históricas por caciques fazedores de dinheiro, com uma corrida para roubar mais para se eleger e eleger o máximo de correligionários possíveis — tudo isso é esquecido e substituído por discursos de ódio, de uns contra outros, que não fazem qualquer sentido.

Alguns vão dizer que nossos políticos são o reflexo da sociedade brasileira, o que não é verdadeiro, mas apenas uma forma de nos culpar para além de nossa omissão e passividade. Não somos um povo ladrão, corrupto ou desonesto. Todas as vezes que ouvimos esse lugar-comum devemos perguntar para a pessoa que afirma isso se ela se considera ladra ou corrupta, e creio que ninguém admitirá isso. O que fazem é se retirar da categoria “povo”, preferindo imaginar-se uma elite esclarecida diferente da “turba” que chamam povo. Em realidade, somos todos povo, todos passageiros deste mesmo barco chamado Brasil.

Contudo, nossas elites brasileiras, aqui incluídos os políticos, querem realmente ser algo diferente do “povo”, talvez refletindo nossa estrutura colonial hierarquizada entre nobreza e plebe, entre aqueles que têm e podem e aqueles que apenas sobrevivem, entre os que recebem as benesses da lei e os que enfrentam a sua rigidez. O que temos, portanto, é um sistema de duas castas, em que ascender socialmente significa alcançar essa elite de poder, dinheiro e influência e escapar da vida comum de trabalho e impostos.

Infelizmente, para piorar ainda mais esse sistema de castas, os exemplos que grande parte dos políticos nos passa é o de que vale a pena usar meios imorais, desonestos e até mesmo criminosos para a ascensão social e o sucesso. Diante disso, o correto é dizer que nossos políticos não são reflexo do nosso povo, e sim maus exemplos de um sucesso à custa da sociedade brasileira.

Essas colocações são a única forma de compreendermos nossa história, especialmente a da corrupção endêmica que sofremos. A apropriação do estado e do interesse público por interesses privados, que era a regra das relações no Brasil colonial e durante a monarquia, não poderia resistir aos ideais republicanos, pois república significa res publica, coisa pública em latim, sendo incompatível com ela um sistema em que todos não fossem formalmente iguais. Assim, durante a história republicana, a apropriação pessoal do interesse público migrou da luz dos candelabros da corte para mal iluminados quartos de hotel e corredores de palácios. E a quebra da confiança republicana por servidores e autoridades tornou-se a corrupção que todos conhecemos.

O que se desenvolveu durante boa parte de nossa história, entretanto, foi um sistema de corrupção atomizado, com políticos criando seus pequenos feudos em órgãos e estruturas do estado, sem uma clara hierarquia. Mesmo as grandes lideranças políticas do passado faziam vista grossa para seus correligionários que roubavam, denunciando apenas a corrupção de seus opositores políticos. A realidade era que ninguém acreditava que qualquer coisa acontecesse na Justiça, vigorando um sistema de impunidade implícito quando os crimes fossem cometidos por pessoas poderosas.

Esse sistema cresceu exponencialmente durante a Nova República, chegando alguns caciques a formar bancadas próprias de deputados federais do baixo clero. Tudo, entretanto, mudou com a chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder federal. Esse partido, que construiu boa parte de sua justificação histórica no combate à corrupção da direita, ao chegar à Presidência da República instituiu um sistema de controle centralizado da corrupção federal por meio de seus tesoureiros. Assim, como revelado na Operação Lava Jato, em vez de se permitir negociações individuais de propina entre empresários e servidores públicos, houve a instituição de uma taxa de cerca de 3% sobre o valor dos contratos, divididos entre a “casa um”, a alta administração do órgão público, colocada ali por indicação política, e a “casa dois”, os partidos ou políticos responsáveis pelo apadrinhamento.

Esse sistema gerou fluxos regulares de valores para a classe política, em troca de apoio partidário ao governo, método parcialmente revelado no escândalo do mensalão que tramitou no Supremo Tribunal Federal. Depois disso, veio a Operação Lava Jato, que definitivamente mostrou para a população que esse esquema não somente se dava no governo federal, com a Petrobras e Eletrobras como exemplos mais relevantes, mas também em governos estaduais, como o governo do MDB no Rio de Janeiro e o governo tucano em São Paulo. De repente, aquilo que era subentendido como regra do jogo político, a impunidade dos políticos, foi subvertida por um Ministério Público Federal independente, por uma Polícia Federal autônoma e por um Judiciário realmente corajoso.

Entretanto, em um movimento de reação à quebra dessa regra implícita da impunidade, a classe política se uniu, utilizando-se não somente dos mecanismos formais de controle dos órgãos públicos, mas também de uma cúpula do Judiciário que foi lá colocada por representar os mesmos interesses, e passou a retaliar instituições, interferir em investigações, anular processos, perseguir membros do Ministério Público e destruir o arcabouço legal de combate à corrupção.

Agora, também como reação à Operação Lava Jato, surgiram os fundões eleitoral e partidário, as emendas impositivas no Orçamento federal e o orçamento secreto comandado pelo presidente da Câmara dos Deputados, tudo a revelar uma mudança nos métodos de apropriação do dinheiro público pelos políticos. Como as empresas encontram-se cada vez mais refratárias a se envolver em corrupção, o sistema político simplesmente deixou de lado qualquer pudor para se apropriar diretamente das tetas do governo. Agora pagamos sem intermediários, direto do Tesouro Nacional, a compra de partidos e correligionários, a manutenção no poder de elites políticas e o abuso do poder econômico nas eleições. Com Rodrigo Maia e Arthur Lira, finalmente a classe política chegou ao paraíso.

Podemos assistir a tudo isso, como aliás faz boa parte de nossa grande imprensa, dizendo que a política é assim mesmo, que se trata apenas uma guerra de versões igualmente válidas, ou como ignorantes dos valores constitucionais que deviam guiar nossa democracia e república. Em outros tempos, abusos como esse levavam pessoas com forcados, foices e tochas para as ruas, pois era a maneira de serem ouvidas. Agora, quando a única coisa que os políticos ainda temem é que o povo desperte de sua letargia, precisamos de faixas, buzinas e panelas nas mãos de milhões de brasileiros, nas ruas, janelas e redes sociais, para reverter esse cenário deprimente, pois de outra forma eles vão se apropriar definitivamente do sangue de nosso trabalho e da esperança de um futuro melhor.

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