SergioMoro

Sobre gravações

16.07.21

Nunca me interessei muito na faculdade por direito penal ou processual penal. Na época, fazia um bom estágio profissional e, por conta do trabalho, o meu foco era o direito tributário. Foi apenas quando comecei a atuar como juiz em casos criminais é que passei a refletir e estudar mais profundamente sobre este ramo do Direito. Mergulhei então a fundo e posso dizer, com certa tranquilidade, que dominei a matéria, embora a vida seja um constante aprendizado e as dúvidas sejam mais constantes do que as certezas para aqueles que mantêm a mente aberta.

Jamais imaginaria, porém, que debates sobre direito penal assumiriam tamanha relevância na vida cotidiana do país. Desde o mensalão, passando pela Operação Lava Jato, e agora, em menor grau, durante a CPI da Covid, é impressionante como temas de direito penal, antes restritos às rodas dos especialistas, ganharam lugar de destaque nas páginas dos jornais e nas conversas entre as pessoas. Embora o debate público de temas de direito penal seja sempre salutar, desmitificando a ideia de que eles cabem, exclusivamente, aos juristas, a causa disso é um pouco desalentadora: a sucessão de escândalos criminais no mundo político. Será que um dia teremos uma distinção clara entre notícias do mundo político e as páginas policiais? A ver.

Há pessoas muito boas na esfera política, mas é forçoso reconhecer a dificuldade em expelir da vida pública aqueles que cometem crimes e continuam com seus malfeitos a dominar os noticiários e a atenção pública. É interessante notar que, de escândalo em escândalo, muitos nomes se repetem e alguns vão ficando conhecidos pela imprensa e pelo público em geral. Eu mesmo, nesta coluna, de uma revista que não é especializada em Direito, já escrevi sobre diversos temas jurídicos, alguns mais amplos como o combate a corrupção, outros mais restritos como a execução da condenação em segunda instância ou foro privilegiado. Quem poderia imaginar que o brasileiro comum se interessaria sobre esse tipo de assunto que à primeira vista parece tão hermético?

Mais recentemente, escrevi sobre o direito ao silêncio, cujo exercício tem atormentado os inquiridores da CPI da Covid. Aproveitando os assuntos suscitados pela comissão e autorizado pelo interesse popular sobre o direito penal, resolvi na coluna de hoje escrever sobre gravações ambientais. Começo com um exemplo. Jimmy Hoffa era o líder do sindicato dos caminhoneiros nos Estados Unidos. Era uma figura pública poderosa. Não era exatamente alguém impoluto e tinha laços com organizações criminosas. O FBI aproximou-se de um de seus cúmplices e o convenceu a colaborar com a Justiça. Ele foi orientado a reunir-se com Hoffa, munido de um gravador escondido, para captar conversas incriminadoras, no que foi bem sucedido. Hoffa foi processado e condenado por ter subornado um jurado em processo anterior. Tentou escapar da Justiça alegando que a prova era ilícita e violava seu direito à privacidade. A Suprema Corte refutou a reclamação, argumentando, em síntese, que o devido processo legal não protegia o criminoso que confiou na pessoa errada e lhe confidenciou seus crimes. Se o interlocutor podia testemunhar o que lhe foi confessado, também não estaria impedido de usar um gravador para registrar o ocorrido com mais fidedignidade.

No Brasil, o tema foi objeto de acirrados debates durante muito tempo nas cortes de Justiça. Inicialmente, os tribunais não admitiam que um interlocutor gravasse o outro sem prévia autorização da Justiça. Por exemplo, no julgamento da ação penal contra o ex-presidente Fernando Collor, uma gravação feita pelo ex-deputado Sebastião Curió, sem o conhecimento do interlocutor, foi excluída sob o argumento de que seria ilícita. Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal acolheu posição semelhante à da Suprema Corte americana, que, aliás, predomina no mundo inteiro, a de que a gravação de conversa própria feita por um dos interlocutores pode ser usada como prova mesmo sem prévia autorização judicial. Isso foi consolidado em um caso envolvendo acusação por crime de desacato a um juiz e no qual o acusado pretendia utilizar como prova a gravação que havia realizado da audiência em que o fato teria ocorrido.

No pacote anticrime que resultou na Lei 13.694/2019, buscamos regular a escuta ambiental como meio de prova de crimes, condicionando-a à prévia autorização judicial. Mas a exigência dizia respeito à intromissão em conversa alheia, de conteúdo criminoso, sem que qualquer dos interlocutores soubesse da gravação. Para a gravação feita por um dos interlocutores, ou seja, de conversa própria, propusemos, no projeto, que ela seria válida mesmo sem prévia autorização judicial e desde que fosse realizada sem que o caso tivesse chegado antes ao Ministério Público ou à polícia. Se alguém, buscando denunciar um crime, procurasse primeiro o Ministério Público ou a polícia, teriam estes condições de requerer autorização judicial para realizar a gravação mesmo que esta fosse realizada pelo denunciante de conversa da qual fosse participar. No entanto, muitos denunciantes de crimes só se sentem à vontade para procurar as autoridades depois de gravarem a conversa, com a qual obtém uma prova mais segura do ilícito que pretendem denunciar. Isso ocorre muito em casos de ameaças, extorsões, violência doméstica e mesmo para ofertas ou solicitações de subornos.

Infelizmente, a Câmara alterou essa parte do projeto, admitindo a validade como prova da gravação por um dos interlocutores sem prévia autorização judicial somente “em matéria de defesa”. Não ficou claro se a gravação só pode ser utilizada pela defesa contra uma acusação criminal ou se pode também ser utilizada para provar um crime por quem é vítima dele, como alguém que grava uma ameaça recebida. Parece-me que a última alternativa é a correta e segue a linha da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que admitia a gravação pelo interlocutor para legítima defesa de quem era vítima de um crime.

Controvérsias à parte, foi aprovada uma outra norma fundamental que estabelece que não é crime a realização de gravação por um dos interlocutores mesmo sem autorização judicial (“não há crime se a captação é realizada por um dos interlocutores”). Assim, ainda que a gravação não possa ser utilizada eventualmente como prova contra terceiro, pelo menos a pessoa que realizou a gravação não pode ser penalizada. A regra é clara e categórica e constitui um alívio para aqueles que, em circunstâncias extremas, se veem forçados a realizar gravações escondidas para denunciar ilícitos dos quais muitas vezes são vítimas. Não altera a regra o fato de o interlocutor gravado ser uma pessoa comum, um poderoso empresário ou uma elevada autoridade pública. A norma não faz qualquer distinção e seria absolutamente estranho, mesmo em uma República acostumada com privilégios, outorgar um tratamento especial dessa espécie.

Este, em síntese, é o estado atual da questão. Para que uma gravação ambiental seja utilizada como prova de um crime, é necessária prévia autorização judicial. A exceção é a gravação feita por um dos interlocutores para “matéria de defesa” e que não depende de anterior decisão judicial. Ainda assim, o interlocutor que grava conversa da qual participa não comete qualquer crime, ainda que o conteúdo gravado não possa eventualmente ser utilizado, como prova, contra a pessoa gravada, em vista da restrição imposta, a meu ver injustificadamente, pelo legislador. Uma gravação que não pode ser utilizada como prova pode ainda assim ter um valor significativo a depender de seu conteúdo e de seus reflexos fora dos processos. O mundo real é maior do que os autos de um processo.

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