Divulgação"Creio que André Mendonça precisa ser submetido a um teste de fidelidade constitucional"

‘Ninguém deveria escolher o seu próprio juiz’

Professor da FGV, Oscar Vilhena diz que o STF virou importante barreira de contenção ao negacionismo e ao arbítrio, mas critica a mistura de interesses entre o Judiciário e o Executivo, o excesso de decisões monocráticas e o processo de nomeação de ministros para o tribunal
16.07.21

O presidente Jair Bolsonaro cumpriu uma de suas promessas de campanha nesta semana ao indicar para o Supremo Tribunal Federal seu ministro “terrivelmente evangélico”. O advogado-geral da União, André Mendonça, será sabatinado em breve pelo Senado para tentar conquistar a vaga de Marco Aurélio Mello – o decano acaba de se aposentar, após 31 anos de judicatura na corte. Essa movimentação, com repercussão no STF pelas próximas décadas, é acompanhada com atenção especial por Oscar Vilhena, professor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. Versado na rotina e na história do Supremo, o doutor em ciência política pela USP vê com preocupação a prevalência do critério religioso na seleção do futuro ministro. O histórico antidemocrático de Mendonça, entretanto, é o que mais inquieta Vilhena. Como ministro da Justiça, o escolhido de Jair Bolsonaro sacou do bolso a anacrônica e autoritária Lei de Segurança Nacional para perseguir críticos do presidente da República. “Esse é um fato profundamente desabonador na carreira de André Mendonça”, diz ele.

Nesta entrevista a Crusoé, o advogado até louva o papel por vezes exercido pelo Supremo de “barreira de contenção ao negacionismo, à irracionalidade e ao arbítrio”, mas critica o excesso de decisões monocráticas, a indesejada mistura de interesses entre o Judiciário e o Executivo e até o processo de nomeação de ministros do STF, baseado no modelo americano. “É muito ruim que a sabatina fique restrita a senadores que poderão vir a ser julgados pelo futuro magistrado. Ninguém deveria escolher o seu próprio juiz. Esse defeito decorre da existência do chamado foro privilegiado no Brasil, que deveria ser extinto”. Confira a entrevista.

O ministro Marco Aurélio Mello se aposentou, após mais de três décadas no Supremo Tribunal Federal. Além do dissenso e dos votos vencidos, qual marca o ministro deixará?
Marco Aurélio Mello foi certamente um dos ministros mais marcantes do STF desde a redemocratização. Sua indicação pelo primo Fernando Collor de Mello foi recebida com alguma desconfiança, ainda que já fosse um magistrado proeminente na esfera trabalhista e contasse com apoio da corporação. Sua judicatura, no entanto, foi marcada por enorme autonomia e inteligência. Substantivamente, Marco Aurélio se notabilizou por uma visão consistentemente progressista no campo dos direitos fundamentais. Ao lado de Carlos Ayres Brito, e mais recentemente de Luís Roberto Barroso, foi o principal defensor da liberdade de expressão e manifestação em seu tempo. Marco Aurélio também sempre se colocou como um ministro “principista”, em contraposição a ministros “consequencialistas”, ou seja, suas decisões buscavam fundar-se nas regras e princípios esculpidos na Constituição e não em projeções de potenciais consequências políticas e econômicas. Também importa dizer que, apesar da personalidade forte, Marco Aurélio sempre foi um ministro dialógico. Demonstrava uma enorme disposição para ouvir e reagir a cada ponto apresentado pelas partes, assim como certo prazer em encontrar incongruências e pontos falhos nos votos de seus colegas.  

Jair Bolsonaro formalizou a indicação do “terrivelmente evangélico” advogado-geral da União, André Mendonça, para a vaga de Marco Aurélio. Que implicações a escolha pode ter na corte?
Tivemos muitos ministros com sentimento religioso forte no passado, mas que não deixaram que sua judicatura fosse caudatária desse sentimento. O ministro Aleomar Baleeiro, durante o regime militar, liberou a circulação da Revista Realidade, que havia sido censurada por um juiz de menores. Ele fez questão de afirmar que, muito embora o conteúdo afetasse sua moral católica, não poderia impô-la sobre outras pessoas que pensavam diferente dele. O fato é que o Estado é laico e a função do Supremo é garantir a Constituição. Portanto, a religião não deveria ocupar nenhum espaço na indicação e muito menos no exercício da função judicial. A manutenção da laicidade do Estado é uma condição necessária para que pessoas com diferentes credos possam conviver dentro de uma comunidade. Se o Estado tomar partido em disputas religiosas, estaremos regredindo alguns séculos em termos de processo civilizatório.

DivulgaçãoDivulgação“O Estado é laico e a função do Supremo é garantir a Constituição. Portanto, a religião não deveria ocupar nenhum espaço na indicação”
Como ministro da Justiça, André Mendonça teve uma atuação marcada por investigações contra críticos do presidente Jair Bolsonaro, com base na Lei de Segurança Nacional. O que o sr. acha dessa conduta?
Esse é um fato profundamente desabonador na carreira de André Mendonça. Desconhecer ou não se submeter ao robusto regime de liberdade de expressão criado pela Constituição de 1988 é um fato gravíssimo para quem almeja tomar parte num tribunal que tem por missão primordial garantir os direitos fundamentais. Da mesma forma, a elaboração de um dossiê sobre eventuais personagens antifascistas pelo Ministério da Justiça, durante sua gestão, gera desconfiança sobre sua fidelidade à Constituição.  

Como o sr. vê o processo de escolha de ministros do Supremo, em que os indicados precisam fazer um “beija mão” a parlamentares, para conseguirem ser aprovados no Senado?
Nosso processo de nomeação de ministros do Supremo inspirou-se no modelo americano. O presidente indica, o Senado sabatina e autoriza ou não a nomeação do candidato. Nos regimes parlamentaristas, as indicações vêm do governo, do próprio parlamento e dos tribunais. Isso não reduz a politização do processo. O que não podemos é nos deixar seduzir por demandas corporativistas, que entreguem os postos do Supremo às corporações de magistrados, advogados e promotores. Evidentemente, no entanto, o sistema poderia ser melhorado, sobretudo dando mais transparência e oportunidade para que a sociedade participasse das sabatinas. Os candidatos deveriam ser submetidos a audiências públicas no Senado. É muito ruim que a sabatina fique restrita a senadores que poderão vir a ser julgados pelo futuro magistrado. Ninguém deveria escolher o seu próprio juiz. Esse defeito decorre da existência do chamado foro privilegiado no Brasil, que deveria ser extinto.   

Quais questionamentos o sr. acredita que não podem ficar de fora da sabatina de André Mendonça no Senado?
Creio que André Mendonça precisa ser submetido a um teste de fidelidade constitucional. O tema da laicidade é central. Recentemente, vi uma pichação em um muro no Rio de Janeiro onde havia uma bíblia esmagando a Constituição. Sua independência em relação a quem o está indicando deve ser aferida.

À época da gestão do ministro Dias Toffoli à frente do Supremo, ele foi criticado por se envolver demais em assuntos do Executivo, com frequentes reuniões com o presidente da República. Como o sr. vê essa interação entre os poderes?
A função do Supremo é guardar a Constituição, o que deve ser feito por intermédio de decisões de casos que lhe são submetidos. Como ministros do STF não são eleitos por voto popular e não perdem seus cargos porque decidem de modo impopular, deveriam se manter alheios ao jogo político. A base da autoridade do Supremo é a defesa da Constituição, a partir de decisões fundamentadas na letra da Constituição, e não sua capacidade de articulação política. Na relação entre os poderes há um certo cerimonial, um certo protocolo, que deveria ser seguido, mas que foi se perdendo nos últimos tempos. De qualquer maneira, é fundamental reconhecer que temos um presidente muito disfuncional e hostil à institucionalidade, que faz questão de afrontar esses limites, impondo aos demais poderes agir de maneira não ortodoxa. Creio que o que vimos nesta semana foi um puxão de orelhas no presidente, que somente se submeteu a isso porque precisa ver aprovado pelo Senado o seu candidato ao Supremo.

DivulgaçãoDivulgação“Como ministros não perdem seus cargos porque decidem de modo impopular, deveriam se manter alheios ao jogo político”
O presidente Jair Bolsonaro chamou o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, de “imbecil” em razão de divergências sobre o voto impresso. Que impactos esse tipo de comportamento traz para as instituições?
Isso apenas comprova a falta de postura do presidente. As posturas liberais do ministro Barroso, assim como sua intransigente defesa da democracia, têm desagradado ao bolsonarismo há muito. Portanto, os ataques toscos se devem, sobretudo, a seus méritos. No caso concreto, o ministro tem defendido a integridade do processo eleitoral, que se demonstrou extremamente robusto desde sua implementação, contra um movimento liderado pelo presidente que busca desacreditar o mesmo processo, abrindo espaço para a contestação de uma eventual derrota, na trilha aberta por Trump. Com a queda de popularidade do presidente, o impulso para desqualificar o processo eleitoral cresceu, chegando ao ponto de o presidente ameaçar a própria realização das eleições de 2022. Isso, em si, consiste em crime de responsabilidade. Como todo populista de extração autoritária, o presidente não se sente confortável dentro dos limites que são estabelecidos pela Constituição para que o exercício do poder se dê de maneira legítima. Ele passa o tempo todo buscando corroer a institucionalidade, de forma a tentar se livrar dos limites e procedimentos que condicionam o exercício do poder numa República. O que temos de destacar neste momento é a resiliência da sociedade civil, de setores da imprensa e mesmo de algumas instituições às investidas autoritárias do governo, como o Supremo Tribunal Federal, que tem se colocado como uma importante barreira de contenção ao negacionismo, à irracionalidade e ao arbítrio em diversos campos. 

Na eleição de 2018, o combate à corrupção foi um dos temas preponderantes. Agora, com o governo Jair Bolsonaro investigado pela CPI e com a perspectiva de o ex-presidente Lula disputar a Presidência, a expectativa é que o assunto fique em segundo plano?
O governo jamais teve qualquer compromisso de combate à corrupção. A aliança com a Lava Jato foi, sobretudo, um movimento oportunista. Perdemos a oportunidade de discutir as reformas necessárias para reduzir os incentivos de processos de corrupção. Ao se alinhar ao Centrão para se proteger de um eventual processo de impeachment, o governo impediu qualquer discussão no sentido de reduzir a fragmentação partidária, que está na raiz da corrupção política no Brasil.

O Supremo frequentemente é criticado em razão de um suposto “ativismo judicial” e pelo excesso de decisões monocráticas. Qual a opinião do sr. sobre isso?
Há uma grande confusão em torno desse termo, que normalmente é empregado por quem se vê derrotado em um tribunal. Ativismo significa julgar além daquilo que está expressamente estabelecido pela lei ou pela Constituição. Há ativismo de direita, de centro e de esquerda. O ideal é que os magistrados tomem decisões fundadas exclusivamente naquilo que determina a lei e a Constituição. Evidente que isso não é uma tarefa clara em certas circunstâncias, até porque a Constituição e as leis não determinam com precisão qual é a conduta a ser perseguida. Existem também situações em que há mandamentos constitucionais que se contrapõem. Assim, é natural que cortes constitucionais precisem empregar métodos interpretativos mais amplos. Isso é válido até o ponto em que os juízes não substituem o direito por suas escolhas pessoais, sejam elas pautadas na ideologia, religião ou mesmo interesses, na hora de tomar uma decisão.

Divulgação/FGVDivulgação/FGVO governo jamais teve qualquer compromisso de combate à corrupção. A aliança com a Lava Jato foi, sobretudo, um movimento oportunista”
E com relação às decisões monocráticas?
Eu julgo ser esse o principal problema de nossa jurisdição constitucional. Como ela se ampliou desde 1988, o Supremo foi ampliando o papel dos ministros na solução de conflitos, de forma a dar conta de sua pauta pesada. Isso, porém, acarreta inúmeros problemas para o tribunal. Em primeiro lugar, gerou uma certa usurpação dos poderes do plenário pelos gabinetes. Segundo, criou um grande número de contradições, que não favorecem a segurança jurídica e o alinhamento dos tribunais inferiores com o Supremo. Afinal, o que decidiu o Supremo? Essa resposta muitas vezes não existe, pois há inúmeras decisões monocráticas em direções contrapostas. Por fim, esse fenômeno do monocratismo expõe o capital reputacional da corte, pois, quando um juiz decide, ele o faz em nome do tribunal, mas, de fato, o tribunal não foi consultado.

O último Datafolha mostrou que a reprovação do STF cresceu e chegou a 33%. Qual é a sua avaliação?
O Supremo tem de zelar é pela sua reputação de imparcialidade. Num ambiente de crescente polarização política, como temos testemunhado a partir de 2013, é muito difícil exercer esse papel de guardião imparcial da Constituição sem ser criticado. Qualquer decisão é imediatamente criticada pelo lado que se vê derrotado, não com argumentos técnicos, mas de maneira a desqualificar quem a tomou. O Supremo tem inúmeras falhas, que devem ser apontadas. O excesso de decisões monocráticas, a falta de consistência em sua jurisprudência, a cacofonia causada por alguns ministros que interferem demais na dinâmica política, fora dos autos: tudo isso precisa ser calibrado, com maior colegialidade, transparência e circunspecção. Mas nada disso justifica a retórica de que basta um “cabo e um soldado” para fechar o Supremo. 

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