Roteiro conhecido
Desde o diagnóstico do primeiro caso de Covid-19 no país, em fevereiro do ano passado, o Ministério da Saúde já gastou mais de 56 bilhões de reais no combate à pandemia. Graças à legislação que permitiu a dispensa de licitação para a compra de bens, serviços e insumos, a pasta fechou contratos vultosos para a compra de itens como ventiladores pulmonares, seringas, máscaras, testes e vacinas. Nas últimas semanas, a CPI da Covid do Senado revelou como parte dessa bolada foi empenhada a partir de tratativas heterodoxas, com grandes indícios de irregularidades. A negociação para a compra de 20 milhões de doses da vacina indiana Covaxin envolve denúncias de propina e superfaturamento, por causa da atuação de atravessadores interessados em lucrar com altíssimas comissões e de políticos de olho no dinheiro do suborno.
Parlamentares e assessores da CPI se debruçaram sobre o contrato de 1,6 bilhão de reais firmado pelo Ministério da Saúde com a Precisa Medicamentos, temporariamente suspenso após a denúncia de irregularidades. Analisaram com lupa notas fiscais, e-mails trocados por servidores e empresários, além de dados bancários, fiscais e telefônicos dos envolvidos na negociata. Esse trabalho revelou as engrenagens do esquema, além do papel de militares, empresários, atravessadores e dos onipresentes políticos do Centrão – um modus operandi que o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público Federal já haviam identificado e alertado em outras negociações feitas para o enfrentamento da pandemia. Crusoé elencou uma série de transações que estão na mira dos órgãos de controle e que envolvem o mesmo método adotado no contrato da Covaxin, como firmas em paraísos fiscais e intermediadores enrolados na Justiça ou sem experiência no ramo.
Alvo da CPI da Covid e acusado de cobrar propina de 1 dólar por dose de vacina, o ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde Roberto Ferreira Dias, apadrinhado do Centrão, assinou boa parte das negociações com dispensa de licitação firmadas ao longo de 16 meses de pandemia.
A Life Technologies, que negociou os kits para testes com o governo brasileiro, é representante comercial no Brasil de uma firma americana que integra o conglomerado Thermo Fisher, instalado no estado americano de Delaware, um conhecido paraíso fiscal. Com as suspeitas de irregularidades no contrato dos testes, Roberto Dias acabou não sendo indicado para uma diretoria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. A nomeação interessava ao líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, e a parlamentares do Centrão que, há nove meses, já viam o potencial de lucratividade da negociação de imunizantes e sonhavam em ter ingerência na Anvisa. Dias perdeu a vaga na agência reguladora, mas, a despeito das tratativas nebulosas de 133 milhões de reais, manteve o posto no Ministério da Saúde. Em depoimento à CPI na última quarta-feira, 7, ele garantiu que a indicação à Anvisa foi um pedido dele ao então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e não uma iniciativa de políticos. O ex-diretor de Logística disse que estava “cansado da rotina” na pasta e afirma que a denúncia envolvendo o contrato com a Life Technologies é um “fato extremamente mal explicado”.
Outro contrato milionário assinado por Roberto Dias e cercado de questionamentos foi fechado com a empresa Global Base Development HK Limited, sediada em Hong Kong. O negócio previa a entrega de 240 milhões de máscaras de proteção, ao custo total de 132 milhões de dólares. Cada equipamento custou, em média 55 centavos de dólar, o equivalente a 2,90 reais, em cotação da época do acerto. O valor é considerado acima do mercado até mesmo para abril de 2020, quando a negociação foi fechada. A empresa já recebeu mais de 700 milhões de reais – com exceção das negociações de vacinas, essa é a dispensa de licitação de valor mais alto entre as divulgadas pelo Ministério da Saúde. A Global Base escolheu como representante no Brasil a 356 Distribuidora, uma empresa do ramo de joias e bijuterias, segundo o registro na Receita Federal. O diretor da firma, Freddy Rabbat, atua no mercado de relógios de luxo. Mas o detalhe mais gritante é a qualidade dos produtos comprados: segundo a Anvisa, as máscaras não eram adequadas para uso hospitalar. A empresa atribui o questionamento da agência a uma falha de tradução: de acordo com a representante comercial, a expressão “non-medical” estampada na caixa dos produtos significa que eles não são indicados para uso em centros cirúrgicos, mas podem ser usados por profissionais de saúde.
A falta de planejamento ficou patente em algumas tratativas da pasta durante a pandemia. A partir da negociação de vacinas, o ministério passou a buscar insumos necessários para garantir a imunização e incluiu na lista de compras aventais e luvas para os profissionais que aplicam as vacinas. A Diretoria de Integridade da pasta alertou, entretanto, que os itens são dispensáveis e que nem o CDC, dos Estados Unidos, classifica os produtos como necessários. O edital para a compra já estava pronto e, após a polêmica, os aventais e luvas foram retirados do certame. O resultado foi uma economia de 380 milhões de reais. A compra de seringas e agulhas também envolveu falta de dados precisos na definição da contratação. O ministério abriu o certame para a aquisição de 300 milhões de unidades do material, quando 11 estados informaram que já tinham iniciado o processo para a compra de 150 milhões de unidades dos mesmos itens. Seja por amadorismo ou por má fé – ou por um misto dos dois –, os erros daqueles que comandaram o Ministério da Saúde na pior crise sanitária da história têm que ser investigados e, seus responsáveis, punidos.
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