Não é por esporte
No mundo dos esportes, há conflitos que não podem ser resolvidos dentro de campo. Erros de arbitragem que impactaram o resultado de uma partida, irregularidades na escalação de atletas, queixas de clubes contra decisões de suas confederações e outras questões administrativas e disciplinares são julgados pela Justiça Desportiva. Trata-se de uma entidade privada, que não faz parte do Poder Judiciário nem remunera seus juízes. Os julgadores são indicados pela OAB, pelos clubes, sindicatos de atletas e pelas entidades federativas. Cada modalidade tem sua própria corte e, para todas elas, a última instância de apelação é o Superior Tribunal de Justiça Desportiva, o STJD.
Casos de grande repercussão para clubes, competições e patrocinadores, todos envolvidos em investimentos milionários, passam pelas mãos dos integrantes desses colegiados. No futebol, por exemplo, o STJD rejeitou recentemente um apelo do Flamengo para paralisar o Campeonato Brasileiro enquanto durasse a Copa América, que se encerra neste sábado, 10, após um mês de torneio. O time se diz prejudicado por ter cinco de seus principais atletas convocados para disputar o torneio. Em outro processo, no ano passado, a corte máxima do vôlei puniu, com multa e afastamento, a atleta Carol Solberg, que gritou “Fora, Bolsonaro” após a partida em que se sagrou medalhista do circuito nacional de vôlei de praia. No STJD, ela conseguiu virar o jogo e foi absolvida por 5 a 4.
É nessas cortes de juízes voluntários, cujas decisões mexem com a paixão de milhões de torcedores por seus clubes e seleções, que se estreitam algumas das velhas e indigestas relações do Judiciário. Dominada pelo apadrinhamento político de filhos, sobrinhos e irmãos de ministros dos tribunais superiores de Brasília, a Justiça Desportiva tem servido de cenário para a aproximação entre magistrados, empresas privadas e bancas de advocacia. Os dois julgamentos mencionados no início desta reportagem exemplificam esse mecanismo. No caso Carol Solberg, o relator foi o vice-presidente do STJD, Eduardo Mello, de 36 anos, filho do ministro Marco Aurélio Mello, que está se aposentando do Supremo Tribunal Federal. Ele votou contra a atleta com o argumento de que o ato político fere o regulamento da competição e deveria ter sido feito em “forma e local” adequados. Já o pedido do Flamengo foi rejeitado liminarmente por Otávio de Noronha, de 37 anos, presidente da corte máxima do futebol e filho do ministro João Otávio de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça.
Desde os anos 90 até 2014, a corte foi dominada pelo clã do desembargador Luiz Zveiter, filho do ex-ministro do STJ Waldemar Zveiter. O magistrado foi indicado em 1996 em razão da amizade com o então presidente da CBF, Ricardo Teixeira, hoje banido do futebol sob a acusação de corrupção na entidade. Seu irmão, Sérgio Zveiter, que depois virou deputado pelo MDB, também presidiu o STJD. Foi em 2000 que o desembargador trouxe às comissões disciplinares seu filho, Flávio, de 19 anos, e Paulo Cesar Salomão Filho, de 20 anos, filho do desembargador Paulo Cesar Salomão e sobrinho do hoje ministro do STJ Luís Felipe Salomão. Ambos não haviam sequer terminado a faculdade. À época, Zveiter disse à imprensa ter sabatinado os novatos para que entrassem no tribunal. Após o fim da dinastia Zveiter, quem assumiu o comando do STJD, em 2014, foi o advogado Caio Rocha, filho do ex-presidente do STJ Cesar Asfor Rocha. Quem também se valeu da influência do pai para chegar à corte desportiva foi o advogado Rodrigo Fux, filho do presidente do STF, Luiz Fux, e ex-auditor do STJD.
Muitos dos elos entre os clãs que dominam o STJD foram revelados pela Lava Jato do Rio, que investigou Salomão, Zveiter e Asfor Rocha por supostos desvios da Fecomércio fluminense. No inquérito, o Ministério Público Federal afirma que Flávio Zveiter foi escolhido para ser “interposta pessoa para os pagamentos” feitos pela entidade comandada à época por Orlando Diniz ao ex-ministro Asfor Rocha. Os procuradores chamaram a atenção para o fato de Caio ter sido vice de Flávio no STJD entre 2012 e 2014. “O clã Zveiter e o clã Asfor Rocha desempenham funções no STJD, em conjunto, há pelo menos uma década”, afirmou o MPF. As investigações identificaram transações de 5 milhões de reais da Fecomércio com o escritório de Zveiter e rastrearam 281 mil reais que foram repassados por ele para a banca de Asfor Rocha, e de seu filho, Caio, em 2016. De acordo com os procuradores, os repasses tinham o mesmo objetivo: “remunerar a exploração de prestígio”. Na mesma investigação, também foram encontradas transferências entre os escritórios de Djaci Falcão, que não é investigado, e de Paulo César Salomão – eles justificam ser de uma atuação conjunta em outras ações na Justiça comum.
No mundo da bola, Caio Rocha também já fez negócios milionários com a CBF, quando se tornou sócio de uma empresa que ganhou a licitação na entidade para intermediar a venda de direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro fora do país. O contrato de 550 milhões de reais acabou não indo adiante porque a confederação não garantiu exclusividade aos investidores.
Caputo Bastos é fundador e presidente da Academia Nacional de Direito Desportivo, que tem em sua diretoria parentes dos Zveiter, outros magistrados da Justiça Trabalhista e seus filhos. Os bastidores da articulação de um desses eventos foram revelados por interceptações telefônicas da Operação Monte Carlo, que investigou os negócios do bicheiro Carlinhos Cachoeira. O ministro nunca foi alvo da investigação, mas acabou sendo citado em um diálogo de um desembargador que foi condenado no ano passado por receber propinas de Cachoeira. A conversa mostrou que o ministro pediu ajuda para o patrocínio de um laboratório farmacêutico.
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