Lucas Figueiredo/CBFIndicado pela OAB, o advogado Otávio de Noronha, filho do ex-presidente do STJ João Otávio de Noronha, é um dos parentes de ministros no STJD

Não é por esporte

Como a parentada de ministros de tribunais superiores se apoderou do Superior Tribunal de Justiça Desportiva para fazer negócios, se aproximar de outros magistrados e estreitar relações com bancas de advocacia estreladas
09.07.21

No mundo dos esportes, há conflitos que não podem ser resolvidos dentro de campo. Erros de arbitragem que impactaram o resultado de uma partida, irregularidades na escalação de atletas, queixas de clubes contra decisões de suas confederações e outras questões administrativas e disciplinares são julgados pela Justiça Desportiva. Trata-se de uma entidade privada, que não faz parte do Poder Judiciário nem remunera seus juízes. Os julgadores são indicados pela OAB, pelos clubes, sindicatos de atletas e pelas entidades federativas. Cada modalidade tem sua própria corte e, para todas elas, a última instância de apelação é o Superior Tribunal de Justiça Desportiva, o STJD.

Casos de grande repercussão para clubes, competições e patrocinadores, todos envolvidos em investimentos milionários, passam pelas mãos dos integrantes desses colegiados. No futebol, por exemplo, o STJD rejeitou recentemente um apelo do Flamengo para paralisar o Campeonato Brasileiro enquanto durasse a Copa América, que se encerra neste sábado, 10, após um mês de torneio. O time se diz prejudicado por ter cinco de seus principais atletas convocados para disputar o torneio. Em outro processo, no ano passado, a corte máxima do vôlei puniu, com multa e afastamento, a atleta Carol Solberg, que gritou “Fora, Bolsonaro após a partida em que se sagrou medalhista do circuito nacional de vôlei de praia. No STJD, ela conseguiu virar o jogo e foi absolvida por 5 a 4.

É nessas cortes de juízes voluntários, cujas decisões mexem com a paixão de milhões de torcedores por seus clubes e seleções, que se estreitam algumas das velhas e indigestas relações do Judiciário. Dominada pelo apadrinhamento político de filhos, sobrinhos e irmãos de ministros dos tribunais superiores de Brasília, a Justiça Desportiva tem servido de cenário para a aproximação entre magistrados, empresas privadas e bancas de advocacia. Os dois julgamentos mencionados no início desta reportagem exemplificam esse mecanismo. No caso Carol Solberg, o relator foi o vice-presidente do STJD, Eduardo Mello, de 36 anos, filho do ministro Marco Aurélio Mello, que está se aposentando do Supremo Tribunal Federal. Ele votou contra a atleta com o argumento de que o ato político fere o regulamento da competição e deveria ter sido feito em “forma e local” adequados. Já o pedido do Flamengo foi rejeitado liminarmente por Otávio de Noronha, de 37 anos, presidente da corte máxima do futebol e filho do ministro João Otávio de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça.

Daniela Lameira / Divulgação STJDDaniela Lameira / Divulgação STJDFilho do ministro Marco Aurélio, Eduardo Mello integra o STJD desde 2016
Eduardo Mello foi indicado pela Comissão de Arbitragem de vôlei. Já Otávio de Noronha, pela OAB. Nos bastidores da entidade, os dois chegaram a disputar, no ano passado, uma mesma vaga no plenário do STJD do futebol, que acabou ficando com o filho do ex-presidente do STJ. Além de vice-presidente do STJD do vôlei, o filho de Marco Aurélio é auditor de uma comissão disciplinar do futebol, o equivalente à primeira instância da Justiça Desportiva. Dudu e Tavinho, como são conhecidos, pertencem a uma geração de filhos de magistrados indicados ao STJD. Para se ter uma ideia, há duas décadas, herdeiros de magistrados têm se revezado nas comissões de primeira instância, no plenário e na presidência do tribunal.

Desde os anos 90 até 2014, a corte foi dominada pelo clã do desembargador Luiz Zveiter, filho do ex-ministro do STJ Waldemar Zveiter. O magistrado foi indicado em 1996 em razão da amizade com o então presidente da CBF, Ricardo Teixeira, hoje banido do futebol sob a acusação de corrupção na entidade. Seu irmão, Sérgio Zveiter, que depois virou deputado pelo MDB, também presidiu o STJD. Foi em 2000 que o desembargador trouxe às comissões disciplinares seu filho, Flávio, de 19 anos, e Paulo Cesar Salomão Filho, de 20 anos, filho do desembargador Paulo Cesar Salomão e sobrinho do hoje ministro do STJ Luís Felipe Salomão. Ambos não haviam sequer terminado a faculdade. À época, Zveiter disse à imprensa ter sabatinado os novatos para que entrassem no tribunal. Após o fim da dinastia Zveiter, quem assumiu o comando do STJD, em 2014, foi o advogado Caio Rocha, filho do ex-presidente do STJ Cesar Asfor Rocha. Quem também se valeu da influência do pai para chegar à corte desportiva foi o advogado Rodrigo Fux, filho do presidente do STF, Luiz Fux, e ex-auditor do STJD.

A família do ex-deputado Sérgio Zveiter dominou o STJD até 2014
No mundo da advocacia, a indicação dos filhos de ministros tem sido vista, no mínimo, como bom negócio para dirigentes da OAB e das confederações, na tentativa de se aproximar de integrantes do STJ e do STF,  uma vez que muitos deles têm causas nas cortes. Esses rebentos já começam a carreira com o título de auditor de tribunais desportivos, o que atrai visibilidade. Para além do prestígio, também há outros motivos. Em meio a uma crise com a CBF, os clubes têm se organizado nos últimos meses para reconstruir o Campeonato Brasileiro sem a entidade. Durante a articulação, valores que chegam a três bilhões de reais foram apresentados como investimento inicial para a construção da nova liga. Quem está à frente de tudo é Flávio Zveiter, ex-presidente do STJD.

Muitos dos elos entre os clãs que dominam o STJD foram revelados pela Lava Jato do Rio, que investigou Salomão, Zveiter e Asfor Rocha por supostos desvios da Fecomércio fluminense. No inquérito, o Ministério Público Federal afirma que Flávio Zveiter foi escolhido para ser “interposta pessoa para os pagamentos” feitos pela entidade comandada à época por Orlando Diniz ao ex-ministro Asfor Rocha. Os procuradores chamaram a atenção para o fato de Caio ter sido vice de Flávio no STJD entre 2012 e 2014. “O clã Zveiter e o clã Asfor Rocha desempenham funções no STJD, em conjunto, há pelo menos uma década”, afirmou o MPF. As investigações identificaram transações de 5 milhões de reais da Fecomércio com o escritório de Zveiter e rastrearam 281 mil reais que foram repassados por ele para a banca de Asfor Rocha, e de seu filho, Caio, em 2016. De acordo com os procuradores, os repasses tinham o mesmo objetivo: “remunerar a exploração de prestígio”. Na mesma investigação, também foram encontradas transferências entre os escritórios de Djaci Falcão, que não é investigado, e de Paulo César Salomão – eles justificam ser de uma atuação conjunta em outras ações na Justiça comum.

No mundo da bola, Caio Rocha também já fez negócios milionários com a CBF, quando se tornou sócio de uma empresa que ganhou a licitação na entidade para intermediar a venda de direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro fora do país. O contrato de 550 milhões de reais acabou não indo adiante porque a confederação não garantiu exclusividade aos investidores.

Divulgação/CBFDivulgação/CBFElos entre os clãs do STJD foram desvendados pela Lava Jato do Rio, que mirou Caio Asfor Rocha
O entrelaçamento de tribunais oficiais e desportivos fica evidente quando se constata que disputas do mundo do esporte não raro vão parar na Justiça comum, como cobrança de dívidas entre clubes e agentes, pedidos de danos morais de torcedores, e brigas entre entidades esportivas e patrocinadores, assim como processos trabalhistas. Além de ser um reduto de parentes de ministros do STJ e do STF, a Justiça Desportiva também tem em seus quadros familiares de magistrados do Tribunal Superior do Trabalho. É o caso, por exemplo, do advogado Gustavo Caputo Bastos, irmão do ministro do TST Guilherme Caputo Bastos. O magistrado é um entusiasta do direito desportivo e organiza há mais de dez anos eventos sobre esta área com a participação de juízes, bancas de advocacia, e patrocínios de empresas.

Caputo Bastos é fundador e presidente da Academia Nacional de Direito Desportivo, que tem em sua diretoria parentes dos Zveiter, outros magistrados da Justiça Trabalhista e seus filhos. Os bastidores da articulação de um desses eventos foram revelados por interceptações telefônicas da Operação Monte Carlo, que investigou os negócios do bicheiro Carlinhos Cachoeira. O ministro nunca foi alvo da investigação, mas acabou sendo citado em um diálogo de um desembargador que foi condenado no ano passado por receber propinas de Cachoeira. A conversa mostrou que o ministro pediu ajuda para o patrocínio de um laboratório farmacêutico.

Empresas com demandas na Justiça trabalhista ajudaram a financiar congressos promovidos pela academia desportiva. Um dos eventos fora do país, por exemplo, teve a companhia aérea Gol como “transportadora oficial”. A empresa pertence a Henrique Constantino, que já foi alvo da Lava Jato por pagamento de propinas a políticos. Em 2015, a companhia aérea firmou um acordo milionário com a Justiça do Trabalho para indenizar funcionários demitidos. O relator do caso foi o próprio ministro Caputo Bastos, que conseguiu o apoio com a ajuda de um parente de Luiz Zveiter. Outro caso semelhante envolve a Uninove, cujo patrocínio foi captado por um ex-sócio do ex-presidente da CBF Marco Polo Del Nero — também banido do futebol por corrupção –, que foi integrante do STJD por influência do cartola. A universidade, recentemente, ganhou um grande passivo trabalhista ao demitir 300 professores por e-mail em meio à pandemia. Procurada por Crusoé, a Uninove não quis informar o valor da contribuição.
Os eventos patrocinados da academia desportiva já levaram ministros para Buenos Aires, Lisboa e Orlando. Todos contaram com a participação de ministros do STJ e do TST e parentes dos magistrados. A CBF, que acumula disputas que ultrapassam a cifra de bilhões de reais no STJ, também apoia parte desses eventos, como um que foi organizado pela academia desportiva na sede do clube Orlando City, nos Estados Unidos. A Crusoé, a academia desportiva afirmou, por meio de nota, que os ministros que participam dos eventos não recebem cachê e que só custeia, integral ou parcialmente, valores com passagens, alimentação, hospedagem para palestrantes, conforme as normas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça.

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