Adriano Machado/Crusoé

Cada vez mais acuado

Como o presidente tenta conter o ímpeto da CPI da Covid. O objetivo agora é evitar que o tiroteio entre o Centrão e a ala militar, que inclui até a produção de dossiês, imploda o governo
09.07.21

Há um traço marcante na personalidade do presidente. Toda vez que se sente acuado, Jair Bolsonaro ataca. Seja ameaçando as instituições, fustigando a imprensa, repetindo a ladainha de que o “meu Exército” estará com ele para o que der e vier, seja lá o que isso signifique, ou mesmo produzindo factoides. O objetivo é sempre o mesmo: o de tentar demonstrar força, apesar das evidências em contrário. Agora, novamente, o presidente está em um daqueles momentos em que se vê encurralado. Não só em razão da velocidade com que sua popularidade derrete, mas porque entende que perdeu o controle sobre os escândalos que se sucedem e já bateram no gabinete presidencial. Só que ao contrário do que ocorreu em outras crises, desta vez, ele escolheu a tática do silêncio. Não o silêncio absoluto – suas bravatas continuam sendo lançadas, dia sim, outro também. Mas Bolsonaro permanece silente sobre aquilo que pode custar o que lhe é mais caro: o mandato de presidente da República.

Nesta sexta-feira, 9, completam-se 14 dias que o mandatário do país não desmente o deputado Luis Miranda. Em entrevista a O Antagonista há duas semanas, Miranda o emparedou, ao revelar que, em encontro no dia 20 de março no Palácio da Alvorada, ao lado do irmão, Luis Ricardo, funcionário do Ministério da Saúde, quando levou a Bolsonaro as suspeitas de corrupção na negociação de compra da vacina indiana Covaxin, o presidente não só disse que já sabia da tramoia como afirmou se tratar de um esquema do líder do governo Ricardo Barros. Mas que se mexesse “nisso aí já viu a m… que vai dar”.

Como Bolsonaro prometeu acionar a Polícia Federal e nada fez, no mínimo, ele prevaricou. O presidente não contradiz Miranda porque teme ser atropelado por um áudio que o deputado insinua ter. Se isso acontecer, o governo implode. Não haverá mais o dia seguinte para Bolsonaro. Por isso, nas duas últimas semanas, o presidente se dedicou quase que exclusivamente a tentar desarmar a bomba-relógio que segue depositada no gabinete presidencial.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéLuis Miranda disse que alertou Bolsonaro sobre a corrupção na Saúde. Duas semanas depois, o presidente ainda não desmentiu o deputado

A tática para segurar Miranda e acalmar Barros

Orientado por Bolsonaro, o Planalto tenta conter danos. O primeiro passo foi escalar emissários para tentar amansar o deputado Luis Miranda. A interlocutores, Miranda jura que não negocia com o Planalto. Se for verdade, que se deixe convencer pela CPI da Covid a entregar o áudio da conversa, uma prova mais do que cabal do crime de prevaricação do presidente da República. Com Ricardo Barros, outro que pode encurtar a permanência de Bolsonaro na cadeira de presidente, caso resolva contar tudo o que sabe, quem trata é o próprio Bolsonaro. Os dois tiveram ao menos três conversas nas últimas semanas. Para proteger o governo, Ricardo Barros admite até deixar a liderança na Câmara. Mas disse para o presidente que ainda reúne condições de virar o jogo e pediu para, pelo menos, ter o benefício, em nome dos serviços prestados ao governo, de tentar se defender na CPI. Por isso, passou as últimas horas tentando antecipar seu depoimento, marcado para o dia 20. Quem acompanha de perto as tratativas, diz que a relação de Ricardo Barros com o presidente é de altos e baixos, mas, por enquanto, sob certo controle – o que, é claro, pode mudar a qualquer momento. “É um casamento em crise, mas ainda é um casamento. Até que uma denúncia os separe de vez”, afirma um parlamentar ligado a Ricardo Barros.

Centrão, militares e o dossiê

Nos últimos dias, outros bombeiros entraram em cena para evitar um novo estrago. Há uma guerra aberta nos bastidores do poder entre o Centrão e a ala militar do governo, os dois grupos que dividem o butim na Saúde e hoje estão na mira da CPI da Covid. Antes de prestar depoimento na quarta-feira, 7, o ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde Roberto Dias procurou a cúpula da comissão de inquérito dizendo ter informações bombásticas para detonar na CPI. As revelações, segundo ele, haviam sido reunidas em um dossiê cujas cópias foram enviadas a seu primo, o empresário Ronaldo Dias, ex-diretor do laboratório Bahia Farma, que mora hoje em Madrid, na Espanha. O papelório, de acordo com o ex-diretor de Logística, conteria provas de que os ministros Braga Netto, ex-Casa Civil e atual titular da Defesa, e Luiz Eduardo Ramos, ex-Secretaria de Governo e atual Casa Civil, pressionavam os integrantes do Ministério da Saúde a receber os intermediários das vendas de vacinas, num processo já reconhecidamente para lá de sujo. Quem teve acesso aos documentos diz que os militares palacianos teriam afirmado algo na linha “vamos agilizar isso”, deixando claro que a negociação era do interesse da casa. Ou seja, do Planalto. Os mesmos papéis responsabilizariam o coronel Elcio Franco, número dois da gestão de Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde, pelas irregularidades nos contratos da pasta.

Na madrugada anterior ao dia do depoimento de Roberto Dias, no entanto, enviados especiais do governo entraram em cena para evitar que o material – ou ao menos as informações nele contidas – viesse à tona. Entre eles, o senador Ciro Nogueira, expoente do Centrão que ajudou, ao lado de Ricardo Barros, a chancelar Roberto Dias na Saúde, e o próprio general Ramos, um dos alvos do dossiê. Na negociação da madrugada, os emissários do Planalto se comprometeram a destacar a tropa de choque do governo na CPI para protegê-lo durante o depoimento – ao menos foram esses os termos mais republicanos da negociação que atravessou a madrugada. Foi o suficiente para fazer Roberto Dias recuar.

Antonio Cruz/Agência BrasilAntonio Cruz/Agência BrasilUm dos alvos do dossiê de Roberto Dias, o general Luiz Eduardo Ramos atuou para conter a crise
A missão de selar o armistício foi determinada pelo próprio Bolsonaro, em pânico com a hipótese de ser aberta uma rachadura irremediável entre os dois grupos num momento político já extremamente delicado para o Planalto e pessoalmente para ele. Por ora, a bandeira branca está estendida. Resta saber até quando. Durante a audiência na CPI, o ex-diretor de Logística da Saúde até tentou atribuir a Elcio Franco a responsabilidade pela negociação das vacinas, o que levou o relator Renan Calheiros a propor uma acareação entre os dois. Mas não chegou nem próximo do que ele se propôs a revelar. O problema, neste caso para Roberto Dias, é que o presidente da CPI, Omar Aziz, sabia do arsenal em poder do ex-diretor da Saúde e ficou enfurecido com o recuo do depoente.  A mentira sobre as circunstâncias de um encontro para articular uma suposta venda de vacinas, atestada por um áudio, foi apenas um pretexto arrumado por Aziz para determinar a prisão de Dias, que acabou detido por cinco horas pela Polícia Legislativa do Senado até pagar fiança e ser liberado.

Os bastidores do episódio ajudam a explicar a nota emitida pelo Ministério da Defesa e comandantes das Forças Armadas repudiando as declarações do presidente da CPI. Ao mandar prender Dias, Aziz disse que “os bons das Forças Armadas devem estar muito envergonhados com algumas pessoas que hoje estão na mídia”. Na nota, as Forças Armadas acusam o senador de “irresponsável” e “leviano”, além de afirmar que o congressista desrespeitou os militares e generalizou esquemas de corrupção. A questão é que quem ajudou a confeccionar o documento sabia que Aziz, ao mandar prender Dias, tentava na verdade era melar o acordão da madrugada selado entre militares e a quintessência do Centrão.

Bolsonaro entende que precisa blindar o Centrão para proteger o governo. E que o chumbo trocado pelos deputados de sua base fisiológica com os militares poderia atingir ele próprio e deputados como Ciro Nogueira e, principalmente, o presidente da Câmara, Arthur Lira, dono da caneta que tem o poder hoje de detonar o início do impeachment. Durante a semana, Lira voltou a dizer que não há justificativas para abertura de processo. Qualquer passo em falso do governo, porém, pode alterar o humor do Centrão. Durante a semana, Bolsonaro chegou a retirar o nome de Paulo Roberto Vanderlei Rebello Filho para o cargo de diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde, mas, para não gerar ruídos, voltou atrás na quarta-feira, 7 – o Senado acabou aprovando seu nome no mesmo dia. Vanderlei Rebello Filho é ex-chefe de gabinete de Ricardo Barros no Ministério da Saúde e foi indicado para a vaga ainda em 2020. No esforço para mostrar exatamente o que o governo não faz, ou seja, agir ao primeiro sinal de corrupção, Bolsonaro ainda mandou o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, demitir Laurício Monteiro Cruz do cargo de diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis da pasta. Perto dos peixes grandes do escândalo das vacinas, Monteiro é o que pode se chamar de bagrinho e, por isso, apenas por isso, acabou sacrificado.

Pablo Valadares/Câmara dos DeputadosPablo Valadares/Câmara dos DeputadosRicardo Barros pediu tempo a Bolsonaro e pretende permanecer na liderança do governo pelo menos até seu depoimento à CPI da Covid

A crise ganha dinâmica própria

 O problema do gerenciamento da crise que engolfa Bolsonaro é justamente os novos fios desencapados que vão surgindo pelo caminho. O presidente amarga hoje os efeitos da clássica lógica que costuma guiar os escândalos brasileiros. Quando a crise atinge determinado ponto, ela ganha uma dinâmica própria. Se tenta segurar de um lado, ela escapa de outro. Foi o que aconteceu durante a semana. Enquanto o presidente se ocupava de tentar serenar os ânimos de Luis Miranda, Ricardo Barros e companhia limitada, surgiram as trocas de mensagens do PM Luiz Paulo Dominguetti, a partir da quebra do sigilo telemático pela CPI.

O improvável Dominguetti surgiu no noticiário como um mero atravessador bolsonarista que tentou vender o que não podia entregar, no caso, as vacinas AstraZeneca ao Ministério da Saúde, na condição de intermediário da empresa Davati. Aparentemente, ele havia sido escalado para jogar uma cortina de fumaça sobre o escândalo da compra da Covaxin durante seu depoimento à CPI, quando tentou desqualificar Miranda –  depois, ao perceber que poderia ser preso, voltou atrás. Ao fim e ao cabo, sem trocadilho com a patente de Dominguetti, o feitiço virou contra o feiticeiro.

No conjunto de mensagens em poder da CPI, há uma em particular quase tão grave quanto o relato de Miranda de que o presidente sabia de tudo e nada fez. Nela, Luiz Paulo Dominguetti afirma a Cristiano Carvalho, tido como um dos representantes da Davati no Brasil, que recebeu um “posicionamento”. “Amanhã até 12h passam o e-mail a ele. Só a quantidade que não tem ainda”, disse ele. Cristiano Carvalho pergunta se a informação veio de um ex-assessor da Saúde. Dominguetti responde: “Gabinete da Presidência da República. Melhor que ele”. Em outro grupo, o cabo da PM afirma que o contrato com o governo federal, no caso de ser assinado, chegaria a render 200 milhões de reais em comissões aos intermediários. E diz a um dos seus interlocutores: “Bora reservar o Jaguar e uma casa em Brasília”.

Com essa revelação, passam a ser dois os casos que conectariam o escândalo diretamente ao presidente: a denúncia de Miranda, até agora não desmentida, e a mensagem no celular de Dominguetti. Ou seja, se o cabo da PM foi “plantado” na CPI para tentar desviar a atenção das denúncias de Luis Miranda, a tática constituiu um tirambaço no pé, porque acabou envolvendo pessoalmente Bolsonaro em duas histórias escabrosas, e não apenas em uma. Em Brasília, já se comenta – e a sério – que seria irônico o presidente eleito em grande parte pelas fake news disseminadas pelo WhatsApp vir a sofrer o impeachment graças às conversas pelo aplicativo.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéO policial militar Luiz Paulo Dominguetti pode ligar o presidente da República diretamente ao escândalo da Covaxin
Mensagens em poder da CPI, a partir da quebra do sigilo do PM , às quais O Antagonista e Crusoé tiveram acesso, mostram que Dominguetti realmente contava com o apoio de Bolsonaro durante as negociações de imunizantes. Em conversa de 16 de março, com um contato identificado no celular de Dominguetti como “Maria Helena Embaixada”, o cabo da PM fala da dificuldade em “segurar as vacinas e nossa parceira Davati”. Maria Helena, então, afirma estar “clamando muito” pela situação e cita um possível encontro entre Bolsonaro e um reverendo. O reverendo seria Amilton Gomes de Paula, um líder religioso ligado à Igreja Batista e apontado como o responsável por abrir as portas do Ministério da Saúde para Dominguetti. “Ontem o reverendo esteve com o presidente”, escreveu Maria Helena na noite daquele dia 16. Em resposta, Dominguetti afirma: “Sim. O problema não é o presidente. Mas o Ministério (da Saúde). Lá é complicado”.

Blanco, um dos homens de Bolsonaro

No mesmo pacote de mensagens extraídas do celular de Dominguetti, aparece mais uma vez um personagem que tem potencial para complicar o presidente: o do tenente-coronel Marcelo Blanco, ex-assessor da Saúde. Em conversa entre ele e o PM, na qual se discutia a venda de vacinas para a rede privada, os dois falam sobre um depósito de “1 milhão de dólares”. A CPI tem indícios de que Blanco pode ser um dos homens de Bolsonaro no Ministério da Saúde. O cara escalado para prestar pequenos favores ao presidente. A CPI suspeita de que o militar seria o fiador da indicação de 10 nomes para hospitais federais no Rio, conforme revelou o ex-governador do Rio Wilson Witzel em tom de denúncia à CPI.

Em seu depoimento, Roberto Dias disse que Blanco foi quem o apresentou a Dominguetti durante um “chope casual” no restaurante Vasto, em um shopping de Brasília. O relato sobre a tal conversa, na qual o PM teria oferecido 400 milhões de doses de vacina, foi o que motivou a prisão de Dias, logo após um áudio deixar claro que o encontro não tinha sido fortuito, como o ex-diretor quis deixar transparecer à CPI.

Para completar, durante a semana, o escândalo da rachadinha voltou a atormentar o Planalto. Uma sequência de áudios atribuídos a Andrea Siqueira Valle, ex-cunhada de Bolsonaro, indica que o presidente da República teria se envolvido diretamente em esquemas de confisco, por parlamentares, de parte dos salários de assessores de gabinete.

Reprodução/FacebookReprodução/FacebookAna Cristina Valle: a família da ex-mulher de Bolsonaro complicou o presidente
Na gravação atribuída a Andrea, a fisiculturista afirma que o irmão André Siqueira Valle foi demitido do cargo de assessor do então deputado federal Jair Bolsonaro porque se recusou a repassar o valor definido. “Tinha que devolver R$ 6 mil, ele devolvia R$ 2 mil, R$ 3 mil. Foi um tempão assim, até que o Jair pegou e falou: ‘Chega. Pode tirar ele porque ele nunca me devolve o dinheiro certo'”, diz Andrea.

A carta da CPI

Como no caso do deputado Luis Miranda, Bolsonaro não tocou no assunto.  A postura do presidente em relação às graves acusações do parlamentar do DEM fez a CPI cobrá-lo formalmente na tarde desta quinta-feira, 8. Em carta encaminhada a Bolsonaro, a cúpula da comissão de inquérito afirmou que o silêncio do presidente da República em relação às acusações de Miranda cria uma “situação perturbadora”. A intenção dos integrantes da comissão de inquérito é que o presidente se pronuncie, oficialmente, sobre as denúncias feitas pelo deputado.

“Solicitamos, em caráter de urgência, diante da gravidade das imputações feitas a uma figura central desta administração, que Vossa Excelência desminta ou confirme o teor das declarações do deputado Luis Miranda”, diz a cúpula da CPI na carta.“Somente Vossa Excelência pode retirar o peso terrível desta suspeição tão grave dos ombros deste experimentado político, o deputado Ricardo Barros, o qual serve seu governo em uma função proeminente”, prosseguem os parlamentares.

Em live na noite desta quinta-feira, 8, Bolsonaro reagiu à ofensiva da CPI ao seu estilo peculiar. “Não vou responder nada para esse tipo de gente. Entregaram um documento para eu responder perguntas da CPI. Sabe qual é minha resposta, pessoal? Caguei. Caguei para a CPI”. O mandatário do país, de fato, “cagou” para pandemia, para a CPI e para a morte de mais de 530 mil brasileiros. Hoje, a única coisa com a qual ele realmente se importa é manter-se no poder.

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