Foto: TSE/Ascom"Não há sequer um caso comprovado de fraude ou de tentativa de fraude que chegou próximo a ter sucesso"

‘A urna eletrônica é à prova de invasão’

Ex-secretário de Tecnologia do TSE, Giuseppe Janino, considerado o pai da urna eletrônica, diz por que o equipamento é 100% seguro e afirma que o voto impresso fará o Brasil retroceder a um período de fraudes eleitorais
09.07.21

Se a paternidade cabe a quem cria, como diz o ditado popular, Giuseppe Janino aceita o título de “pai da urna eletrônica” que lhe é atribuído. Primeiro analista de sistemas concursado do Tribunal Superior Eleitoral, o matemático participou diretamente da equipe que formulou, em 1996, o equipamento responsável por uma revolução no processo eleitoral brasileiro.

Faz 25 anos que Janino trabalha pelo desenvolvimento e aprimoramento de sua “cria“, o que não impediu que ela se tornasse alvo de ataques. Os questionamentos, que hoje ecoam principalmente pela voz do presidente Jair Bolsonaro, põem em xeque a credibilidade da urna eletrônica, sem a apresentação de nenhuma prova concreta, e pregam a volta do voto impresso ou “auditável”.

Em junho, Janino recebeu juntamente com os ministros do TSE os deputados da comissão especial que discute na Câmara a aprovação da PEC do voto impresso já para as eleições do ano que vem. Na conversa, ele garantiu a segurança e a confiabilidade das urnas eletrônicas, detalhadas em um livro que pretende lançar ainda este mês. Ele disse ainda que não seria trivial modificar o sistema digital em vigor há mais de duas décadas em tempo hábil para o pleito de 2022.

Nesta entrevista a Crusoé, o matemático que comandou a Secretaria de Tecnologia da Informação do TSE detalha como o aparelho funciona e é testado por hackers antes da votação, conta os motivos de outros países não terem importado o modelo brasileiro e por que a tese da urna auditável é uma “grande falácia”. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Como o sr. participou do processo de criação da urna eletrônica?
Eu fiz parte da equipe de engenharia que desenvolveu o projeto da urna eletrônica, sob o ministro Carlos Velloso (ex-ministro do STF e presidente do TSE entre 1994 e 1996). Muitas pessoas se envolveram nesse projeto que transformou o processo eleitoral brasileiro de um paradigma convencional em um paradigma digital. Eu fui o primeiro colocado do primeiro concurso para o Tribunal Superior Eleitoral, em 1995, e fui designado para uma equipe de consultores que estava desenvolvendo o projeto de engenharia da urna. Ingressei nesse grupo e, a partir daí, acompanhei o desenvolvimento do processo eletrônico de votação, que iniciou efetivamente nas eleições municipais de 1996. Tive a oportunidade, nesses 25 anos de trajetória na Justiça Eleitoral, de estar bem perto do desenvolvimento do projeto. O que posso dizer é que, se pai é quem cria, acompanha o desenvolvimento da criança, eu até aceito essa consideração de ser o pai da urna, partindo do princípio de que acompanhei o desenvolvimento da urna eletrônica desde o seu nascimento.

Quais eram os tipos de fraudes mais comuns antes da adoção da urna eletrônica?
A urna eletrônica brasileira surgiu pelas características do processo eleitoral que tínhamos no Brasil há 30 anos, que era convencional, com muita intervenção humana, muitos erros e muitas fraudes, justamente pela possibilidade de o ser humano manipular a informação. Nós tínhamos um portfólio de fraudes muito bem conhecido, como a “urna embrenhada”, que já vinha pesadinha, com votos dentro dela antes do início do processo de votação. Tinha o “voto formiguinha”, em que um despachante ficava na porta do colégio eleitoral e comprava o voto dos eleitores. Ele entregava um papel qualquer para o eleitor que chegava e depositava na urna e pedia para que ele saísse com a cédula oficial em branco. Daí, ele preenchia e entregava para eleitor seguinte, que depositava aquela cédula na urna e trazia a cédula que ele recebia na cabine de votação em branco de volta. E havia as fraudes na apuração, quando se colocavam os votos em cima das famosas mesas apuradoras para se fazer a contagem. Inclusive, essa é a nossa grande preocupação com o voto impresso.

“Até agora, ninguém conseguiu efetivamente adulterar um voto com sucesso ou quebrar o sigilo do voto”
Por quê?
É muito fácil subtrair ou incluir um voto nesse processo, não precisa de muita inteligência, basta um pouquinho de habilidade. Principalmente, quando tem uma cédula em branco e a pessoa pode preencher durante a apuração na mesa. Tinha gente que colocava até grafite debaixo da unha para conseguir preencher o voto em branco. Sem contar a interpretação que se dava para o número preenchido à mão na cédula. Era um caldeirão de fraudes. E depois, quando esses votos eram lançados nas planilhas, ainda ocorriam os acertos. O processo demorava semanas até a apresentação do resultado, que era sempre acompanhado de muita suspeição. Esse foi o grande impulsionador de uma mudança radical de paradigma para mitigar a mão do homem nesse processo, com a inclusão da tecnologia. Naquele momento, nós batemos no fundo do poço da credibilidade do nosso processo eleitoral.

 Por que países como Estados Unidos, Noruega, Suécia e Alemanha não adotam o voto digital?
Provavelmente porque não passaram pela história que nós passamos, onde houve uma necessidade de resolver um grande problema de fraudes no processo convencional. Essa é nossa história. Tem um pouco de distorção nessa visão, porque pelo menos 25 países no mundo adotam urnas eletrônicas parecidas com as nossas. Os Estados Unidos, que têm um processo eleitoral descentralizado, adotam urnas eletrônicas semelhantes às nossas em 19 dos seus 50 estados. Inclusive, muitos desses estados usam urnas que também não imprimem o voto.

Vivemos uma época de ataques cibernéticos massivos. Vários órgãos públicos já foram alvos de hackers, inclusive o TSE. O nosso processo eleitoral é 100% protegido desses ataques?
A concepção da urna eletrônica teve uma grande sacada que foi fazer o equipamento totalmente autônomo, sem comunicação externa. Tanto que nenhum dos componentes tem wi-fi, bluetooth, nada que viabilize conexão com a internet. Os softwares das urnas também não têm nenhuma possibilidade de comunicação externa. Isso fez com que ela se tornasse um equipamento à prova de ondas de invasão. Essa é uma pergunta recorrente que recebemos: ‘invadem a Nasa, o FBI, o Pentágono, por que não invadem a urna eletrônica?’. É simples, ela está isolada. Para um hacker invadir a urna, ele teria de pegar uma de cada vez e tentar quebrar todas as barreiras de segurança. São barreiras físicas e mais de 30 barreiras digitais. Quando acaba a votação, a urna emite o registro digital, onde são gravados os votos conforme eles são digitados no teclado, mas de forma aleatória, para não permitir o reconhecimento do eleitor pela ordem de votação. Esse registro digital do voto é assinado pela urna eletrônica, com um certificado digital, garantindo a autoria e a integridade daquela informação.

E depois?
Depois disso, a urna imprime o resultado, o chamado boletim de urna, e uma cópia é fixada no local da votação. Isso significa que, no momento em que se encerra a votação, a urna apura e já expõe o resultado. Essa mesma informação é gravada numa mídia digital, de forma criptografada com algoritmos de alta complexidade, e vai para um ponto de transmissão ligado em uma rede privativa da Justiça Eleitoral, que também é criptografada. Ele confirma as assinaturas digitais das urnas e depois transmite as informações para o Data Center do TSE, que fica em uma sala-cofre do tribunal. Vamos supor que alguém consiga vencer as barreiras de segurança, invadir o Data Center do TSE, o que ninguém conseguiu até hoje, e alterar alguma coisa no sistema. O resultado já foi apresentado anteriormente nos boletins de urnas e é completamente verificável.

Foto: TSE/Ascom“A questão de tornar a urna auditável é uma grande falácia”
Nos testes públicos de segurança feitos com hackers ninguém conseguiu quebrar as barreiras de proteção do sistema?
A primeira experiência foi feita em 2009 e nós já realizamos cinco edições. Desde 2015, o TSE se obriga a realizar os testes públicos de segurança antes das eleições. A gente abre o sistema para que qualquer cidadão acima de 18 anos possa se candidatar a executar um plano de ataque à urna eletrônica, tentando quebrar as suas barreiras de segurança. Não é um desafio, é um trabalho colaborativo para testar o quanto o nosso sistema está seguro. São 30 barreiras de segurança digitais. Eles têm acesso a todos os programas, fontes e algoritmos e, no momento em que vão executar os ataques, a gente coloca inclusive urnas com várias barreiras de segurança desativadas para facilitar a ação dos hackers. Algumas barreiras já foram vencidas e, quando isso ocorre, nós fortalecemos o sistema e chamamos o hacker para testar a barreira de novo. O software só vai para a eleição depois que passa por tudo isso. Nessas cinco edições de testes públicos, tivemos mais de 50 planos de ataques à urna eletrônica. Até agora, ninguém conseguiu efetivamente adulterar um voto com sucesso ou quebrar o sigilo do voto.

Uma parcela dos críticos da urna eletrônica reivindica o voto auditável, no qual a urna imprimiria o voto exatamente como ele digitou na urna. Essa demanda faz sentido?
A questão de tornar a urna auditável é uma grande falácia, até porque essa demanda ignora todos os procedimentos que existem hoje de auditoria e que são muito mais confiáveis do que qualquer procedimento convencional ou manual.

Quando se questiona o resultado das eleições, como ocorreu nas eleições presidenciais de 2014, como vocês fazem a auditoria?
Nós temos o registro digital do voto, que é uma tabela onde armazenamos o voto de cada eleitor, que fica disponível aos partidos políticos. De imediato, eles podem fazer a recontagem dos registros digitais de voto e conferir. E, se eles quiserem, podem fazer uma apuração totalmente independente da Justiça Eleitoral com esse registro digital do voto. Existe também uma espécie de caixa preta da urna, assim como existe nas aeronaves, que registra tudo o que acontece com ela. A hora que ela é ligada e desligada, o horário de cada voto digitado, se ela entrou em pane e foi desativada. Se tiver alguma intervenção externa, isso fica registrado. Existe também uma auditoria feita nos códigos. Seis meses antes das eleições, os programas são abertos para os partidos políticos e mais 14 instituições analisarem linha por linha cada um dos programas, tirar dúvidas, fazer sugestões e até impugnar o processo, questionando a função de algum código. Depois disso, os partidos podem participar do processo de lacração, que é uma blindagem desse software que foi analisado. Existe ainda o teste de integridade com eleição paralela. Na véspera da eleição, quando as urnas já estão instaladas nos locais de votação, se faz um sorteio para escolher urnas em todas as unidades federativas. A gente tira a urna do local, traz para o TSE e, com o acompanhamento de uma empresa auditora, um número é digitado na urna diante de uma câmera filmando. No final, verificamos se tudo aquilo que foi digitado saiu impresso no boletim. Esse processo nós fazemos desde 2002 e até hoje não houve nenhuma diferença entre aquilo que se digitou no teclado e o que saiu no resultado.

A comissão da Câmara que discute a PEC do voto impresso solicitou recentemente à Polícia Federal todas as denúncias relacionadas a fraudes nas eleições. O que eles vão encontrar?
Existe sempre uma avalanche de denúncias que não se sustentam. Todas as denúncias que são formalizadas são investigadas por instituições independentes e competentes, como o Ministério Público e a Polícia Federal. E a realidade, apesar de toda essa avalanche de notícias falsas, é que nesses 25 anos de utilização da urna eletrônica, não há sequer um caso comprovado de fraude ou de tentativa de fraude que chegou próximo a ter sucesso. Vão perceber muitas suspeições levantadas sem nenhum fundamento e sem nenhuma evidência fática. 

Antonio Augusto/TSEAntonio Augusto/TSE“O voto impresso tende a aumentar a judicialização”
Caso o Congresso aprove a PEC do voto impresso, haveria tempo hábil para implantar o novo sistema a tempo das eleições de 2022?
O que for decidido, certamente nós vamos seguir com todo o empenho e essa é a nossa missão. Vamos partir para a implementação disso no tempo mais viável e seguro possível. Hoje, não temos condições de fazer essa estimativa da viabilidade. Certamente será um grande desafio. É a construção de um equipamento, um modelo de impressora que não existe no mercado e que deve ter características mínimas de segurança. Será preciso criar uma impressora acoplada à urna eletrônica para que o eleitor veja o voto impresso, sem tocá-lo, e depois esse papel será armazenado em um dispositivo de cédulas físicas. Esse equipamento tem de ter comunicação com a urna eletrônica, ser criptografado, e ainda colocar todos os mecanismos de proteção do voto digital.

O sr. acha que o voto impresso pode trazer de volta o chamado voto de cabresto, onde o eleitor é coagido a votar em determinado candidato?
Sim. Esse foi, inclusive, o entendimento do Supremo quando decidiu que esse tipo de solução é inconstitucional por impactar na questão do sigilo do voto. Na forma como está sendo proposta, o eleitor pode ser coagido a votar em uma certa sequência de candidatos, ou votar em um candidato e o restante nulo, com o argumento de que esse voto será analisado depois pelos fiscais na apuração. Nós já testamos o voto impresso duas vezes, em 1996 e 2002. Essas experiências evidenciaram as nossas preocupações, principalmente na questão operacional. A impressora é um mecanismo eletromecânico que falha muito mais do que um aparelho exclusivamente eletrônico. Isso é potencializado com a nossa logística. A urna viaja quilômetros levando um monte de impacto e poeira. Sem contar que o voto impresso tende a aumentar a judicialização do processo. Imagine quando houver uma divergência entre o número de votos apurados na urna eletrônica e o apurado manualmente no voto impresso? Vamos acreditar em qual? Ou vai anular a votação daquela sessão? Se anular, isso já vira uma outra forma simples de burlar as eleições.

O que o sr. acha das declarações do presidente Jair Bolsonaro que colocam sob suspeição a próxima eleição, caso não tenha voto impresso?
É uma declaração que não contribui para a credibilidade do processo eleitoral, que inclusive elegeu boa parte dos próprios contestadores do modelo atual. Não faz muito sentido. Se houver suspeição, que ela seja realmente verificada.

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