MarioSabino

A questão militar é só caso de polícia

09.07.21

Ontem, quando saiu a nota do ministro da Defesa e dos comandantes das Forças Armadas sobre a fala do presidente da CPI da Covid, Omar Aziz, a respeito do envolvimento de militares com corrupção no governo, a minha primeira reação foi dar um bocejo. A segunda foi dar outro bocejo.

A preguiça é com essa história de tentar criar uma questão militar no Brasil de 2021, como se vivêssemos no Brasil de 1964. Jair Bolsonaro procura nos arrastar para 57 anos atrás, e a oposição e a imprensa estão entrando no jogo. Eu já disse neste espaço que o psiquismo nacional tem forte componente sadomasoquista, o que me faz pensar agora que a atração/repulsão por homens de uniforme faz parte dessa característica. Não vou, contudo, molhar os pés outra vez no raso da superficialidade psicológica nem tentar mergulhar em profundezas para as quais não tenho equipamento de mergulho adequado. Atenho-me ao trivial, bocejando outra vez, antes de fazer a recapitulação que se segue.

Nesta quarta-feira, na sessão da CPI da Covid que interrogou Roberto Dias, ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde, Omar Aziz, além de ordenar a prisão do depoente, fez o seguinte comentário sobre a suposta participação de militares encastelados no governo em esquemas de gatunagem:

 “Os bons das Forças Armadas devem estar muito envergonhados com algumas pessoas que hoje estão na mídia, porque fazia muito tempo, fazia muitos anos que o Brasil não via membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do governo. Eu não tenho nem notícia disso na época da exceção que houve no Brasil, porque o Figueiredo morreu pobre, porque o Geisel morreu pobre, porque a gente conhecia… Uma coisa de que a gente não os acusava era de corrupção, mas, agora, Força Aérea Brasileira, Coronel Guerra, Coronel Elcio, General Pazuello e haja envolvimento de militares…”

Na reportagem de capa desta edição, a Crusoé conta os motivos dessa declaração. Os bastidores são esclarecedores, embora o resultado não seja justificável. O desabafo de Omar Aziz talvez pudesse ser feito no cafezinho do Senado, não sob os holofotes de uma CPI. Como presidente da comissão, ele não poderia antecipar conclusões durante uma inquirição, o que também é ruim para a investigação.

Omar Aziz não segurou a língua e era natural, embora não justificável, que houvesse reação em ambiente tão encharcado de testosterona. Por dever de ofício, acostumei-me a ler as entrelinhas das notas emitidas por integrantes das Forças Armadas desde a redemocratização. As do general Eduardo Villas Bôas eram um primor, com seus recados indiretos para fora e para dentro dos quartéis. A resposta a Omar Aziz, no entanto, traz as patinhas deletérias do ministro da Defesa, Walter Braga Netto, e Jair Bolsonaro, que aproveitaram o episódio para dar outro chute no balde da democracia. Eis a nota:

“O Ministro de Estado da Defesa e os Comandantes da Marinha do Brasil, do Exército Brasileiro e da Força Aérea Brasileira repudiam veementemente as declarações do Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito, Senador Omar Aziz, no dia 07 de julho de 2021, desrespeitando as Forças Armadas e generalizando esquemas de corrupção. Essa narrativa, afastada dos fatos, atinge as Forças Armadas de forma vil e leviana, tratando-se de uma acusação grave, infundada e, sobretudo, irresponsável.

A Marinha do Brasil, o Exército Brasileiro e a Força Aérea Brasileira são instituições pertencentes ao povo brasileiro e que gozam de elevada credibilidade junto à nossa sociedade conquistada ao longo dos séculos.

Por fim, as Forças Armadas do Brasil, ciosas de se constituírem fator essencial da estabilidade do País, pautam-se pela fiel observância da Lei e, acima de tudo, pelo equilíbrio, ponderação e comprometidas, desde o início da pandemia Covid-19, em preservar e salvar vidas.

As Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às Instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro.”

As patinhas de Braga Netto e Jair Bolsonaro estão presentes no parágrafo que diz que “as Forças Armadas do Brasil, ciosas de se constituírem fator essencial da estabilidade do País, pautam-se pela fiel observância da Lei etc”. Usei o etc. porque não vou me debruçar sobre o papel dos militares na pandemia, com a fabricação massiva de cloroquina e a recusa a disponibilizar leitos dos seus hospitais a civis vitimados por Covid. O que importa aqui é a observação “ciosas de se constituírem fator essencial da estabilidade do País”. Ela alarga ambiguamente uma das funções das Forças Armadas, que é o de “garantia dos poderes constitucionais”, como está escrito na Cidadã de 1988. Ser “fator essencial da estabilidade do País” é conferir aos militares um Poder Moderador que nunca lhes foi dado.

As alusões ao povo brasileiro também trazem as patinhas do ministro da Defesa e do presidente da República. Em primeiro lugar, as Forças Armadas não são “instituições pertencentes ao povo brasileiro”. São instituições nacionais pertencentes ao estado brasileiro, composto por representantes do povo brasileiro, como requer justamente a democracia re-pre-sen-ta-ti-va. Cancelar a mediação do estado nessa história implica dizer que, em nome do povo brasileiro, os militares estariam livres para voltar-se contra os representantes desse mesmo povo, caso julgassem que eles tivessem traído os objetivos para os quais foram eleitos ou escolhidos por outros critérios estabelecidos pela Constituição.

A afirmação de que “as Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às Instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro” é outra lambancinha da dupla Braga Netto/Jair Bolsonaro. Como elas já haviam repudiado as declarações de Omar Aziz no primeiro parágrafo da nota, o que significa “não aceitarão”? Que fecharão o Congresso? Jogarão Omar Aziz numa masmorra? E esse negócio de que “defendem a liberdade do povo brasileiro” é francamente um contrabando. Quem deu essa atribuição às Forças Armadas? A Constituição fala em “defesa da Pátria, garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Os militares não têm nenhuma missão “libertadora”. Isso aí é eufemismo para golpe.

O leitor deve estar se perguntando como, diante dessa análise, posso bocejar e achar que não existe uma questão militar no Brasil. É que, como também já disse, jamais houve golpe na história nacional sem adesão de grande parte da população, em especial da classe média, de boa porção da imprensa e do Congresso. E tais condições não estão dadas. Esses comandantes que assinaram a nota, como o do Exército, que livrou a cara de Eduardo Pazuello por pressão de Jair Bolsonaro, são apenas gente sem muita personalidade que deveria estar preocupada com os sinais que emitem contra a disciplina entre a soldadesca. Acho até que não veem a hora de o presidente da República ser mandado embora, do jeito que for, para submergirem na caserna e se verem dissociados de personagem tão funesto.

Acreditava-se que os militares poderiam controlar o capitão insubordinado, mas eles se mostraram fracos para isso. Sucumbiram às vantagens financeiras e a contrapartida é o desgaste da sua imagem perante a população. O único partido dos milhares de militares que ocupam cargos no governo é o da boquinha dupla — e os que se meteram em esquemas mequetrefes acreditaram que teriam uma bocona. Não há nenhum projeto de poder nisso. O que há é brasilidade. Braga Netto e Jair Bolsonaro querem transformar caso de polícia em questão militar, mas ele será sempre caso de polícia. Corrupto com ou sem patente tem de ser punido, independentemente da opinião do Clube de Bocha Militar. Se houver quartelada lá adiante, como deseja o presidente da República, será restrita e motivo de chacota. Espero que inocentes não sejam feridos por idiotas. Por último, transcrevo o que me disse Heitor de Aquino, figura de proa do regime militar: devemos tomar cuidado é com general que não fala. E os que não falam estão muito longe dessas palhaçadas todas. Mais bocejos.

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