Davidson Tolentino, o "homem da mala" do Progressistas, na época em que decidia sobre o orçamento da Saúde

Os executores

Como funciona a estrutura comandada pelo Centrão que possibilita o assalto aos cofres federais. O Ministério da Saúde é um dos alvos preferenciais da turma
02.07.21

O presidente Jair Bolsonaro foi filiado ao Progressistas, ex-PP, por mais de uma década. Como deputado federal, conviveu com colegas de partido enrolados com o mensalão e a Lava Jato. Ainda que sem protagonismo na legenda, o capitão da reserva testemunhou de perto correligionários como Pedro Corrêa, Arthur Lira, Ciro Nogueira e Ricardo Barros trocarem apoio político por cargos em todos os governos e serem tragados para o centro de escândalos. Depois de chegar à Presidência com um forte discurso de combate à corrupção, rendeu-se à realpolitik e loteou seu governo entre partidos do Centrão. O Progressistas, sua antiga casa, ganhou os quinhões mais generosos e escalou operadores experientes para comandar órgãos e empresas públicas com orçamentos bilionários. As graves denúncias de corrupção envolvendo a compra de vacinas, como a Covaxin, mostram como Bolsonaro escancarou as portas para que conhecidos personagens do submundo de Brasília se mantivessem em atuação sem serem incomodados.

Figuras indicadas pelo Progressistas em outras gestões e que se envolveram em denúncias de desvios no passado ganharam cargos estratégicos em órgãos como o Ministério da Saúde e seguem em operação na Esplanada – e, pior, protagonizando novos casos rumorosos. Além de fraude nas tratativas por vacinas em meio à pandemia, esses personagens atuam na distribuição de verbas e emendas do orçamento paralelo, e controlam contratos bilionários de obras de infraestrutura. Bolsonaro conhecia bem o modus operandi dos ex-correligionários e, ainda assim, lhes deu carta branca para retomar as negociatas. Após a revelação dos indícios de fraude na compra de vacinas, o presidente e seus aliados recorreram ao mesmo discurso adotado por Luiz Inácio Lula da Silva e por Dilma Rousseff no mensalão e na Lava Jato: o de que nada sabiam.

Sob Bolsonaro, operadores do Progressistas e de outros partidos do Centrão voltaram à ativa, em moldes muito semelhantes aos do passado. Para além de Ricardo Barros, o líder do governo que está no centro das suspeitas que envolvem o plano de comprar a vacina indiana Covaxin, há uma vasta estrutura de apadrinhados políticos dele próprio e de outros próceres do Centrão em escalões inferiores do governo que fazem os esquemas acontecerem exatamente conforme o desejo de seus padrinhos. O Ministério da Saúde, com seu orçamento bilionário (a cada ano, a pasta gasta acima da casa dos 120 bilhões de reais), costuma ser um dos alvos preferenciais da cobiça dos partidos fisiológicos porque tem cargos em diversos escalões com grande poder de caneta – por vezes, um negócio gigantesco pode ser travado ou liberado por um servidor aboletado em um cargo de terceiro escalão.

Marcos Oliveira/Agência SenadoMarcos Oliveira/Agência SenadoCiro Nogueira: sempre governo para alojar seus Tolentinos de estimação
Justamente por ter ingerência direta sobre uma parte considerável de tudo que é gasto pelo ministério, o Departamento de Logística, o DLOG, é estratégico. Entra governo, sai governo, o setor é um dos mais visados na distribuição de cargos e, nos últimos anos, tem sido ocupado sistematicamente por gente ligada ao Centrão. É ao diretor do departamento, que não precisa nem ser funcionário de carreira, que cabe a tarefa de coordenar e avaliar as compras de bens e as contratações de serviços feitas pelo ministério. Ele também é responsável por acompanhar e avaliar a elaboração dos contratos e dos aditivos. A depender de sua boa vontade, um contrato importante pode ficar travado ou ser simplesmente facilitado. No ano passado, as despesas relativas à pandemia, por exemplo, somaram 36,5 bilhões de reais. Todos os contratos passaram pelo DLOG. Era justamente na chefia do departamento que, até esta semana, estava lotado Roberto Dias, demitido após ser acusado por um policial militar de Minas Gerais que se dizia representante de uma empresa que oferecia ao governo vacinas que não tinha (leia mais aqui). Dias era apadrinhado por Ricardo Barros e pelo ex-deputado Abelardo Lupion e, segundo funcionários da pasta, contava ainda com a bênção de Davi Alcolumbre, ex-presidente do Senado. Ele nega ter feito o pedido de propina ao policial militar.

Pelo posto já passou outra figura conhecida como operador do Centrão. Trata-se de Davidson Tolentino, homem da estrita confiança do senador Ciro Nogueira, presidente do Progressistas. Tolentino dirigiu a portentosa DLOG quando Ricardo Barros era ministro da Saúde, no governo Temer. Junto com Barros, ele virou alvo de uma ação de improbidade administrativa por ter pressionado servidores da pasta a liberar pagamentos a uma empresa que vendeu medicamentos, mas nunca os entregou. A firma em questão era a Global Saúde, e seu dono é Francisco Maximiano – o mesmo que agora voltou o noticiário como proprietário da Precisa Medicamentos, que seria intermediária da venda da vacina Covaxin para o governo por 1,6 bilhão de reais, em um negócio que, nos bastidores, era azeitado com a ajuda do mesmo Ricardo Barros.

Davidson Tolentino foi demitido do Ministério da Saúde na gestão Temer após uma reportagem da edição de estreia de Crusoé revelar que ele achacou empresários que tentavam receber faturas em atraso – em uma reunião em um hotel, ele disse aos empresários que poderia liberar os pagamentos desde que topassem fazer um “alinhamento” com o partido. O então diretor do Departamento de Logística ganhou o apelido de “homem da mala”. O nome de Tolentino apareceu em um depoimento de um ex-assessor de Ciro Nogueira que o apontava como responsável por coletar propinas que eram armazenadas em um apartamento em São Paulo. O bunker chegou a armazenar, segundo o relato desse ex-assessor, 5 milhões de reais.

Marcello Casal Jr./Agência BrasilMarcello Casal Jr./Agência BrasilDias, que acaba de ser demitido do Ministério da Saúde: consórcio de padrinhos
O histórico do “homem da mala” é ilustrativo de como agem os operadores do Centrão, que quase sempre são os mesmos, independentemente das áreas onde são lotados por indicação de seus padrinhos. A ordem é fazer a máquina de arrecadação girar. Antes de ir para a Saúde, Tolentino estava, também por indicação do Progressistas, na estatal federal de trens, a Companhia Brasileira de Trens Urbanos. Em uma demonstração inequívoca da confiança dos políticos em seus operadores de estimação, mesmo após a teoricamente vexatória demissão no governo Temer, ele voltou à cena no governo Bolsonaro, novamente por indicação do partido de Ciro Nogueira. Está, neste momento, em um posto relevante com muito dinheiro para gastar: uma das três diretorias da Codevasf, a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba, que vem sendo irrigada com fatias generosas do chamado orçamento paralelo – os valores repassados à empresa saltaram de 225,6 milhões de reais no primeiro semestre de 2020, quando ela ainda não estava sob controle do Centrão, para 729,9 milhões de reais no mesmo período deste ano.

Assim como Tolentino, há outros personagens que se repetem em confusões na companhia de seus padrinhos políticos. É o caso do advogado Tiago Pontes Queiroz, que substituiu Tolentino na DLOG do Ministério da Saúde em 2018 e, de acordo com o Ministério Público, também atuou ao lado de Ricardo Barros para beneficiar a empresa de Francisco Maximiano. Hoje ele comanda a Secretaria Nacional de Mobilidade do Ministério do Desenvolvimento Regional, responsável por empreendimentos também bilionários. Outro personagem denunciado juntamente com Barros por favorecer a Global Saúde, do mesmo dono da empresa intermediária da Covaxin, é o servidor concursado Thiago Fernandes da Costa, que coordenou a área de licitações e contratos de insumos estratégicos quando o hoje líder do governo Bolsonaro era ministro. Ele voltou aos holofotes nesta semana como um dos participantes das tratativas para a compra da vacina indiana. Thiago era simplesmente o gestor do contrato firmado com a Precisa Medicamentos.

Roberto Dias, o chefe da DLOG recém-demitido, tem história ao lado de Ricardo Barros. Antes de chegar a Brasília, ele ocupou cargos no governo paranaense durante a gestão de Cida Borghetti, mulher de Barros. Aos poucos, se transformou em uma figura de confiança dos caciques da sigla. Em outubro do ano passado, quando as vacinas contra a Covid já se revelavam uma potencial fonte de lucros bilionários, Ciro Nogueira tentou emplacá-lo em uma diretoria da Anvisa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, responsável por autorizar o uso de imunizantes no país. Bolsonaro chegou a indicar o nome de Dias ao Senado, mas retirou a mensagem em meio à repercussão negativa de um contrato suspeito assinado por ele no valor de 133 milhões de reais.

Com a vivência que lhe foi proporcionada pelos 28 anos que passou no Congresso como deputado federal e sua proximidade com figuras destacadas do Centrão, Bolsonaro sabia das implicações de abrir para elas as portas de seu governo. “É muito difícil supor que o presidente da República não tinha consciência ou foi pego de surpresa. Não foi. Ele sabia do que se tratava e tinha consciência, porque conhece bem seus antigos colegas do Progressistas”, diz o cientista político Bruno Bolognesi, do Laboratório de Partidos e Sistemas Partidários da Universidade Federal do Paraná. A narrativa de que o presidente é vítima do sistema pode até convencer sua militância mais fiel, mas não faz sentido. O simples fato de que os operadores de rolos milionários de outrora estão aboletados agora no governo por indicação de seus notórios aliados é a prova de que, sim, ele se rendeu alegremente ao assalto.

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