SergioMoro

O Informante

02.07.21

Sou daqueles que apreciam rever bons filmes. Às vezes é um porto mais seguro do que assistir a novos, com qualidade ainda não testada. Então, quando o tempo permite, revejo algumas películas cinematográficas das quais guardo boas lembranças. Pude revê-las graças à proliferação do streaming que tem feito as vezes das antigas videolocadoras, nem sempre com um acervo tão rico.

Recordo-me, para este artigo, do filme O Informante, de 1999, dirigido por Michael Mann e estrelado por Al Pacino e Russell Crowe, então um ator em franca ascensão. A qualidade do filme é ilustrada por ter sido ele indicado para sete prêmios do Oscar, embora não tenha ganhado nenhum.

O filme é baseado em uma história real. Jeffery Wingand, representado por Crowe, é um executivo da indústria de cigarros que revelou que as empresas de tabaco haviam atuado deliberadamente para tornar os seus produtos mais viciantes para o consumidor. Após uma série de incidentes, ele decidiu levar a história a público, inclusive pela imprensa. Com isso, ele e o jornalista que o procurou, Lowell Bergman, passam a enfrentar diversos desafios para conseguir o seu intento, incluindo retaliações contra eles e pressões contra veículos de informação.

Talvez tenha sido a partir deste filme que tive melhor percepção das agruras sofridas pelos assim chamados whistleblowers. São pessoas comuns que, dentro de estruturas governamentais ou corporativas, resolvem, conforme a tradução literal, “soprar o apito”, ou seja, denunciar fraudes ou outros crimes corporativos que, não fossem as suas ações, permaneceriam encobertos.

Casos famosos de whistleblowers são conhecidos mundialmente. Daniel Ellsberg, no caso denominado “Papéis do Pentágono”, revelou análises de inteligência confidenciais acerca da Guerra no Vietnã. Sherron Watkins denunciou a contabilidade criativa da Enron. Cynthia Cooper fez revelações semelhantes sobre a Worldcom. O whistleblower não é um delator, pois ele usualmente não está envolvido em qualquer crime. É como um informante do bem. Ainda assim, muitos sofrem a pecha de dedo-duros ou de traidores, como se guardar segredos sobre fraudes ou crimes fosse algo positivo. Não raramente, eles são alvo de retaliações, às vezes até físicas, embora ataques jurídicos e morais sejam mais comuns. O Informante revela bem as dificuldades sofridas pelos whistleblowers.

Pelo papel importante que exercem, já que crimes ou fraudes praticados no âmbito de organizações públicas ou corporativas complexas não raramente permanecem escondidos salvo se alguém de dentro se dispuser a revelá-las, há uma tendência mundial na edição de leis de proteção aos whistleblowers, por exemplo, proibindo a sua demissão arbitrária pelo empregador denunciado. Alguns países, como os Estados Unidos, foram ainda além. Diante dos dissabores sofridos pelos whistleblowers, foram criados programas que preveem recompensas financeiras significativas para eles, normalmente calculadas em percentual dos valores recuperados através da denúncia ou das multas aplicadas aos infratores. Há quem critique programas de recompensa, mas, em linhas gerais, eles são justificados diante das retaliações impostas aos whistleblower, bem como pelo interesse público nas revelações por ele efetuadas.

No Brasil, a Lei 13.608/2018 contém medidas de proteção aos informantes do bem no âmbito da administração pública. Ela foi aperfeiçoada pela Lei 13.964/2019, originada do projeto de lei anticrime. Entre as medidas, o direito de preservação da identidade do informante – ela só pode ser revelada com o seu consentimento -, a proibição de demissão arbitrária, de alteração de funções ou de atribuições, de retirada de benefícios ou de negativa de fornecimento de referências profissionais positivas. Ainda foi previsto que a prática de retaliação contra o informante sujeitaria o infrator à demissão. Seguindo ainda o modelo norte-americano, consta a previsão de pagamento de recompensa ao informante de até cinco por cento do valor recuperado aos cofres públicos. Apesar da relevante inovação legislativa, há, aparentemente, na administração pública um esquecimento quanto à implementação da lei, especialmente no que diz respeito às recompensas financeiras.

O tema ganhou importância recentemente após um servidor do Ministério da Saúde ter vindo a público para denunciar irregularidades na aquisição de vacinas contra a Covid. O servidor teria se recusado a assinar atos necessários para a consumação de uma compra com características suspeitas e, por esse motivo, teria sofrido ameaças de retaliação dentro da estrutura administrativa. Tudo deve ser apurado com o rigor necessário. De todo modo, a legislação brasileira já proíbe categoricamente qualquer espécie de retaliação jurídica contra um servidor público que, audaciosamente, resolva denunciar indícios de crimes ou fraudes praticados no âmbito da administração pública. Não só proíbe a retaliação como sujeita o infrator, se ele for agente público, à demissão a bem do serviço público. Esses instrumentos precisam ser melhor conhecidos e manejados para o bem de todos. A sociedade precisa contar com aqueles que estejam dispostos a fazer a coisa certa mesmo sabendo dos custos e sacrifícios pessoais. Nosso dever mínimo é, então, o de protegê-los das retaliações que virão. A virtude precisa ser protegida e, até mesmo, recompensada.

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